domingo, 2 de outubro de 2016

Somos, realmente, muito de rancores


Valha-nos Deus! Gostamos mesmo de mastigar os nossos ódios, de preservar as nossas pústulas para contaminar os ares das lembranças futuras, dos males passados que poderão atear sempre novos ódios, “num perpétuo movimento” tal como o “sonho”, comparado por António Gedeão ao “bichinho álacre e sedento, de “focinho pontiagudo, que fossa através de tudo”. Mas o sonho compreende-se, que leva ao progresso. Não o ódio, que, no poder, conduz à ferocidade reivindicativa, ao despudor da exigência descontrolada, ao apontar continuado do dedo acusador em vez de disciplinar, educando no sentido da compreensão do significado de uma liberdade consciente das suas limitações, o que só se consegue com a educação, em todos os seus sentidos. Eu compreendo que se preservem os bastiões da glória, os brasões plantados da nossa saga marítima, os monumentos da criatividade, as grutas com os desenhos pré-históricos, as antas e o túmulo de Mausolo, se já não tivesse desaparecido nas ventanias do tempo, os quadros e vestuários dos grandes artistas – da Amália cada vez mais estimada na superioridade do seu engenho, que Taborda da Gama evoca, a propósito da liberdade manietada.
Mas preservar os instrumentos do mal, para quê? A Bastilha foi tomada em 14 de Julho de 1789 e destruída uns meses depois. Fez-se uma revolução a partir dessa tomada, uma revolução desmedida, no ódio e no furor sanguinários que ceifaram vidas, mas destruiu-se essa prisão do Estado, símbolo de um poder absoluto que os filósofos iluministas ajudaram a demolir. Demoliu-se a prisão e celebrou-se a data como festa da nação. E passou-se além. “Outre”, diriam os franceses, que mais do que nós, que não fizemos senão imitá-los, há muito mais tempo deram asas à sua ambição libertária e igualitária.
 Por isso, compreendendo, embora, os sempre hábeis argumentos de João Taborda da Gama, discordo da sua obsessão de manter o símbolo de um poder absoluto que se despreza, muito evocado com a nossa vibratilidade incendiária, e acho, sim, que seria desperdício arrasar o forte de Peniche, engrandecido de um passado, embora severo. Pelo contrário, dar-lhe o destino de lugar aprazível, para refeições à beira-mar, parece-me uma saudável atitude, que leva a preservar o passado com um espírito folgazão, de espaço para bons repastos, em que somos peritos, e para prováveis bailes acompanhando aqueles. Na alegria de uma liberdade consciente, que as salas de museu ao lado ajudarão, provavelmente, a reprimir nos seus excessos, num pensamento de moderação por comparação com  os que a não tiveram.

Prisão política
João Taborda da Gama
DN, 2/10/16
Preservar património é dever. Concessionar monumentos é necessidade. Fazer um hotel no Forte de Peniche é barbárie.
A preservação do património é um dever do Estado, e não é porque está escrito na Constituição. Não se trata de deleite intelectual, de diletantismo estético, de pôr o povo a pagar os luxos dos ricos que adoram ver castros celtas - trata-se do Estado ser o Estado. A existência passada e a ideia de continuidade do Estado, enquanto instituição e comunidade, sente-se nas paredes de um castelo, no interior de um museu, na gravação de um cântico antigo.
Num mundo real, de recursos limitados e de escolhas alternativas, nem todo o património vai poder ser preservado. Há espaço que era ocupado por um lindo palácio que tem de ceder a uma escola, ou a habitação social, ou a uma estrada, vai sempre haver algumas ânforas e cromeleques debaixo de autoestradas. Estas escolhas são a essência da política pública do património, um ato intencional de história em si: a campa do Salazar ou o forte de Peniche? O novo Museu dos Coches ou um museu sobre Portugal e a escravatura? Feitas as escolhas, a equação financeira pode recomendar, para que se preserve mais, melhor ou mais rápido, a junção de privados. Mas nem sempre será fácil em Portugal tendo em conta a fraca tradição de mecenato, a forte tradição de compadrio, e a natural inabilidade lucrativa do património sem se lhe alterar a função. Ou seja, a medida anunciada pelo governo de concessionar a privados a recuperação e rentabilização de património é positiva, sobretudo num contexto de muito turismo e pouco dinheiro, mas a inclusão do forte de Peniche é injustificável.
No fundo é sempre a questão do papel e das fronteiras do Estado: se deve promover o maior investimento privado na recuperação das cidades (muitas vezes basta sair da frente e deixar as pessoas dizerem o que querem fazer com as suas casas), por outro lado deve ser firme, canino, na preservação dos lugares da sua memória, sem hagiografia ideológica mas com sentido de... Estado. Não é coerente querer limitar a quem pode a família de Alfama arrendar o quarto dos fundos e enfiar um hotel de cinco estrelas no Forte de Peniche.
E não é apenas pela memória direta dos que lá estiveram presos e dos seus que voltam mais ou menos a Peniche, na medida da sua paz com a sua própria história. É precisamente porque Peniche os ultrapassa, é mais do que todos os que lá estiveram presos, as suas famílias de sangue e políticas, que o Estado não deve, não pode abrir mão do forte a troco de uns cobres que serão patacos no gigante orçamental. Estes dois níveis, pessoal e transpessoal, da luta política é maravilhosamente retratado na entrevista feita em 2008 por Anabela Mota Ribeiro a Saldanha Sanches e Maria José Morgado, em que contam o episódio de uma camisa com buracos de bala e sangue de Saldanha Sanches que às tantas é deitada para o lixo, alegadamente por ter traça, mas naquilo que parece um ato de renúncia a qualquer hagiografia (neste sentido também a entrevista de Mário Crespo a Saldanha Sanches em Peniche, que pode ser vista na internet).
Peniche era uma prisão. E mais do que uma vala comum, uma câmara de tortura, um campo de concentração, uma prisão de presos políticos é o símbolo mais forte da fragilidade da liberdade. Peniche era uma prisão onde se cumpriam penas, penas que estavam escritas na lei, na lei escrita por juristas, ensinados por professores de Direito, penas aplicadas por juízes em julgamentos com prazos, data marcada, processos, papéis, carimbos. Uma prisão como Peniche epitomiza a facilidade com que a lei cobre e permite tudo.
Pouco importa se no Le Peniche, ou The Peniche, ambos nomes fortíssimos, se mantém do outro lado da sala dos pequenos-almoços o pequeno museu, se ficam algumas das celas com a decoração de origem de fronte para as suites com jacuzzi, se o parlatório, intacto, continua preservado por debaixo do The Blue Peniche Spa. Tudo isso é irrelevante perante a necessidade de manter aquele colosso branco tal qual está. Podia estar melhor o museu, podia estar mais bem recuperado, mas nem sei se seria melhor. Colossal, branco e húmido, como imortalizado pela lente de João Pina na capa do Por Teu Livre Pensamento (Assírio e Alvim, 2007). O título do livro é a primeira estrofe do poema de David Mourão Ferreira, cantado por Amália, conhecido como Fado de Peniche. O título é Abandono, uma mulher que conta a noite que fica depois de o terem levado para longe, por seu livre pensamento, o silêncio. E a história da democracia está também nesse ligeiro desleixo que se sente hoje no forte, como em outros lugares de resistência, porque o sentido da revolução foi também esse, de abrir todas as cadeias, como no poema de Manuel Alegre já não sei em que fado da Amália. Hoje o abandono já não vive nela, mas no forte.
É preciso poder ir ao forte, estar por lá, deambular nas celas, no recreio, sem bares de gin tónico nem massagens ayurvédicas, ouvir o vento, ouvir o mar, como ao menos ouviam os que lá estavam, e perceber, por fim, a irredutibilidade da liberdade. O que queremos do Estado é pouco, mas é muito, é que se limite a manter o colosso branco na sua mão, as portas abertas, as celas vazias.

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