sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Bom senso precisa-se. E bom gosto


Os Estados Unidos da América são realmente uma poderosa nação, de muitos milhões de pessoas, que até se dão ao luxo de aceitar nas suas hostes – e talvez de o promover – um candidato com a espessura mental do seu Trump, espessura alimentada pela imensidão de dólares que tornou o seu espírito imune a quaisquer outras investidas espirituais, até mesmo as da boa educação. Não estávamos habituados a tanta elementaridade de um comportamento absurdo, por descontrolado, inexplicavelmente apoiado por – ver-se-á - metade ou talvez mais, de uma população seduzida pelo ouro do guerreiro que a torna indiferente às grosserias da sua actuação. Isso nos faz pensar na similitude dos comportamentos humanos quer se trate de países poderosos quer de países de ínfima projecção como o nosso, que aceitámos, como candidato presidencial, um Tino de Rans apalhaçado, a botar uns discursos cheios da energia popular da reivindicação esmoler fácil de captar e de aceitar por um povo de tristeza e de pagode.
As perfídias de Trump, Teresa de Sousa as descreve, com o seu saber e lógica habituais, defendendo a candidata Clinton, com um empenhamento feito de conhecimento das políticas mundiais, que assentam nos Estados Unidos, como força motriz no comando das nações. Será disso que os americanos estão fartos para escolherem personagem tão caricata? De resolver problemas alheios, sacrificando os próprios filhos? Mas isso os tornou poderosos, indispensáveis para resolver conflitos que eles, de resto, ajudaram, tantas vezes a criar.
Mas é assim que gira o mundo. Talvez Trump queira mudar isso. Daí, ter abolido os convencionalismos do politicamente correcto. Que Deus nos acuda. Estamos habituados a presidentes estadunidenses com o seu aprumo próprio que lhes vem também da consciência do seu poderio no mundo. O próprio Obama, afável e risonho no seu país, quando desce à Europa, mantém um perfil de superioridade comprovativo dessa consciência do poder.
Um Trump na Europa como será? Mas talvez ele não queira descer à Europa, quando os seus poisaram na Lua  e tão longe mais …
Como combater o populismo?
Público, 18/09/2016
1. Durante uma semana a pneumonia de Hillary apoderou-se da campanha para a Casa Branca. Deu jeito a Donald Trump, que passa a vida a dizer que a sua adversária está doente. Como é seu hábito, vai repetindo uma ideia sem qualquer sustentação, até conseguir que ela crie desconfiança na opinião pública. A questão é outra: por que razão toda a gente quer discutir a pneumonia de Clinton como se fosse a coisa mais importante na escolha de um Presidente? O primeiro argumento não é sobre a gravidade da doença. É sobre o facto de a candidata não ter revelado imediatamente que estava com pneumonia. Ela própria já veio dizer que achou que podia ultrapassar o seu estado de saúde sem deixar a campanha. Bill também já veio pedir desculpa por ter dito que a sua mulher estava apenas constipada. Esta obsessão pela transparência total, muito politicamente correcta, mas também bastante estúpida, afasta a opinião pública daquilo que realmente interessa. É essa, aliás, a estratégia de Trump, que, por sinal, mente dia sim, dia não. Mas o facto é que as sondagens voltaram a apertar o intervalo entre Clinton e Trump. A campanha de Hillary está tudo menos descansada. O próximo desafio são os debates televisivos em que a grosseria e o primarismo de Trump criam um clima inóspito para outro tipo de linguagem e de discurso. O problema de Hillary, escreve Gerald Seib no Wall Street Journal, é o mesmo que levou à derrota os 12 candidatos que disputaram as primárias contra Trump. “Como se corre contra um candidato tão fora dos padrões habituais, tão duro e tão brutal?” Aconselha Hillary a não entrar num combate directo. “Quando Rubio e Cruz decidiram entrar num combate de facas com Trump, acabaram cortados às fatias”. Clinton corre esse risco.
A novidade seguinte foi o inesperado reconhecimento de que Obama tinha nascido, mesmo, na América. Há quatro anos, Trump exigiu que apresentasse a certidão de nascimento. Mas o candidato republicano não faz nada que possa beneficiar o adversário. O que se seguiu foi a insinuação de que tinha sido Clinton há oito anos, nas primárias, quem primeiro levantara a questão. Como é que se responde a uma insinuação destas? É difícil e obriga a adversária, tal como a pneumonia, a desgastar-se em questões de pura chicana política mas que vão fazendo mossa. Ontem, a certidão de nascimento já tinha sido substituída por outro facto, ainda mais grave. Trump desafiou Clinton a tirar as armas aos seus guarda-costas para ver o que aconteceria. Mais uma vez, avança com a insinuação de que lhe pode acontecer alguma coisa. Mais uma vez a distracção perfeita para desestabilizar a campanha da sua adversária. Cortar às fatias, como diz o Journal. Como se sai disto?
2. O lado mais importante das últimas semanas é, no entanto, o programa económico que Trump apresentou, com os condimentos necessários para agradar quer ao eleitorado republicano, quer ao democrata. Trump anunciou que uma das suas principais medidas será uma redução drástica dos impostos, muito ao gosto republicano. Prometeu 4,4 triliões de dólares, depois de ter começado por prometer 10 triliões. A segunda, muito democrata, é “rebobinar” a globalização, devolvendo à América os empregos que andou a exportar para a China ou para o México. Como? Por exemplo, aplicando tarifas de 35 por cento às importações mexicanas e de 45 às chinesas. Como lembra a BBC, um televisor de 100 dólares passaria a custar 135. Quem pagava a factura? A classe média, naturalmente. E lá se ia a poupança nos impostos. O mesmo em relação aos acordos de livre comércio, que quer rasgar ou, na versão mais actual, renegociar. Mas com uma só condição: “a América tem de ganhar”. E os outros perderem? É óbvio que responderão com o mesmo aumento de tarifas para as importações americanas. Quem fica a ganhar? Ninguém. Mas uma parte substancial dos eleitores aceita o que ele diz sem precisar de detalhes. A cereja em cima do bolo foi a promessa de criar em 10 anos 25 milhões de empregos. Parece muito mas não é. Bill Clinton criou em oito anos 22 milhões de empregos e conseguiu transformar o défice em excedente orçamental. É verdade que isso aconteceu noutro tempo. A economia americana, depois de um período de recessão, estava já a inverter o ciclo. A entrada em cena das novas tecnologias foi mais um forte impulso ao crescimento. Mas a verdade é que a economia americana já está hoje a criar perto de 2,5 milhões de empregos por ano, que, multiplicados por dez, chegam à promessa de Trump. Como lembrava Paul Krugman na sua coluna do NYT, os dados da economia americana que acabam de ser revelados provam que a política económica de Obama não foi assim tão má, ainda que esteja nos antípodas de Trump. O desemprego está em valores que rondam os 5 por cento, o rendimento médio das famílias aumentou num ano 5,2 por cento. A economia ganha balanço. Ou seja, se Trump tem um plano para a economia, não será difícil a Clinton apresentar o seu. Até agora, a candidata tem cedido, aqui e ali, à pressão do populismo e ao eco que tem em partes muito significativas do eleitorado. A sua posição é difícil. É fácil dizer que se acaba com todos os acordos de livre comércio internacionais, é difícil explicar às pessoas quais seriam as consequências. É fácil prometer descer impostos, mais difícil garantir que os estímulos à economia não podem ser apenas feitos para beneficiar os mais ricos. A Trump, basta-lhe dizer que um país “que ganhou duas guerras mundiais e pôs um homem na lua” pode tudo. Uma parte dos americanos parece acreditar. Trump explora uma raiva imoderada às elites e ao modo como Washington funciona. Uma recente sondagem do Washington Post indicava que era visto pelos eleitores como o pior candidato em matéria de política externa, mas o melhor para destruir o sistema disfuncional de Washington. Do qual Hillary é um exemplo perfeito ao olhos de muita gente.

3. Hillary tem hoje um peso enorme sobre os ombros. Uma boa parte do mundo espera que ela ganhe as eleições porque não saberia o que fazer caso Trump viesse a ser eleito. Mas considerar a NATO uma organização obsoleta, dizer à Coreia do Sul e ao Japão que, se se querem defender da Coreia do Norte, construam as suas próprias armas nucleares em vez de viver a expensas dos EUA não é de molde a tranquilizar ninguém. A não ser aqueles que apostam no enfraquecimento da América. Quando Trump elogia Putin e o desafia a piratear os mails de Clinton, está tudo dito. Clinton chegará à casa Branca com uma experiência e uma preparação de que poucos presidentes se podem gabar. Conhece o mundo inteiro, negociou com o mundo inteiro. Preparou-se para este lugar toda a vida, esperando pela sua vez. Falhou em 2008 porque teve de enfrentar um candidato excepcional. Não pode falhar agora, quando tem de derrotar um populista com preparação zero e com um programa que seria fatal para o poder americano. Joschka Fischer, anterior chefe da diplomacia alemã, dizia numa conferência em Londres que nunca, mas nunca, acreditou que o “Brexit” pudesse alguma vez acontecer. Devemos temer o pior? Para a Europa seria um desastre. Para o mundo seria uma enorme incerteza. Estamos a falar da única superpotência mundial da qual depende, em grande medida, a nossa segurança e a segurança do mundo. É aqui que sentimos um calafrio. Boa sorte para Hillary, é tudo o que podemos desejar.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Uma alegre viuvez


Um artigo de um jornalista que não desiste de querer para o seu país uma consciência cívica que arrume com tanta penúria dela e esse facto é algo reconfortante para quem vai envelhecendo “olhando para trás de si” - olhando em torno de si - “e tendo pena”, mas sempre esperançada numa retoma de valores, que jovens e menos jovens vão revelando, tentando desassombradamente desemaranhar a vasta teia de desmandos a que na sua profissão ou nos seus estudos terão algum  acesso. É o caso deste «Sócrates e os seus viúvos», de João Miguel Tavares - um Sócrates que vai estrebuchando, nadando nas vastas águas indecisas da aceitação pública, que acaba sempre por lhe ser fiel, por conveniência própria dos comparsas, apesar das tentativas justiceiras de uma eterna desmistificação das suas embrulhadas soezes.
E retenho a frase de Sócrates, não o nosso mas o que viveu entre 470 – 399 a. C, numa Grécia pioneira, frase que encima propositadamente a mesma página do artigo referido, e que demonstra como os princípios são “escritos na pedra” para sua eternidade, para serem seguidos por uma Justiça isenta. «Três coisas devem ser feitas por um juiz: ouvir atentamente, considerar sobriamente e decidir imparcialmente».  
A verdade é que os  nossos “super-juízes” que se pretendem isentos, não passam de  patéticas amostras de uma falsa manipulação dessa isenção, na indignação aparente  e vaidosa que esses casos lhes provocam, demonstrada no queixume irónico pueril de um seu representante, em entrevista longamente debatida. Não julgo, pois, que resultem, artigos como este de João Miguel Tavares, numa tessitura social tão extraordinariamente balofa:

Sócrates e os seus viúvos
17/09/2016 - 00:10
Neste país respira-se muito melhor do que em 2008 ou 2009, mas as contas dos anos Sócrates ainda estão por fazer.

Toda a gente pergunta como é possível a investigação a José Sócrates estar a demorar tanto tempo. É muito fácil de explicar. Em primeiro lugar, porque o poder político em Portugal nunca se mostrou realmente interessado em combater a corrupção. As leis que regulam o seu combate são péssimas para os polícias e excelentes para os ladrões. Em segundo lugar, porque aquilo que o Ministério Público está a investigar não é uma simples ocorrência, um acto de corrupção, mas sim um método de agir em inúmeros negócios, o que são coisas completamente diferentes. Estamos a falar na possibilidade de Sócrates ser o maior criminoso político da História da democracia portuguesa, coisa que não parece impressionar por aí além todos aqueles que acham mais graves as indirectas de Carlos Alexandre do que as explicações ridículas de José Sócrates sobre a origem do seu dinheiro.
Sócrates dá entrevistas e escreve depoimentos a queixar-se de que o Ministério Público primeiro andava a investigar o favorecimento do grupo Lena, depois o empreendimento de Vale do Lobo e que agora já está na PT. Que é como quem diz: o Ministério Público não encontrou nada e anda desesperado à pesca de qualquer coisa. Estranhamente, ou talvez não, nem José Sócrates nem os seus muitos amigos que continuam espalhados pela política, pelas empresas e pelos jornais admitem a hipótese de não ser “isto ou aquilo”, mas sim de ser “isto e aquilo”. Não se tratam de conjunções alternativas, mas de conjunções copulativas: é o grupo Lena, é Vale do Lobo e é a PT. Como antigamente era a Cova da Beira, era o Freeport e era o Face Oculta. Não há aqui nenhuma novidade. Há muito que muita gente alertava para o percurso, para a postura e para as tentações de José Sócrates. Esta investigação é apenas a confirmação de um infindável rol de suspeitas em relação às quais ele sempre se justificou com os mesmos adjectivos canalhas que continua a utilizar. 
É verdade que o Ministério Público podia ter optado por avançar com uma acusação de fraude fiscal e branqueamento de capitais, para a qual já deve ter prova suficiente. Os investigadores quiseram ser mais ambiciosos e não deixar cair a corrupção – que é obviamente o que está em causa, mas que, se fosse fácil de provar, há muito que dezenas de políticos estariam presos. Não é. A lei portuguesa faz distinções obscenas, como a corrupção para acto lícito e para acto ilícito, apenas para facilitar a prescrição dos processos, e de cada vez que se fala na hipótese da delação premiada, sem a qual jamais haveria operação Lava-Jato, ou na criminalização do enriquecimento ilícito, há mil vestes que se rasgam – as mesmas que depois se queixam dos “casos” e dos “negócios” que morrem nos tribunais.
Neste país respira-se muito melhor do que em 2008 ou 2009, mas as contas dos anos Sócrates ainda estão por fazer. Na política e nos jornais, os seus viúvos continuam por aí, e o número de textos que escrevem a criticar o Ministério Público é proporcional ao número de textos que não escrevem criticando o comportamento de Sócrates ou os anos que levaram a apoiá-lo. Em nome de belos princípios, limitam-se a defender os seus almoços e as suas opiniões entre 2005 e 2011, fazendo todos os dias figas para que a investigação falhe redondamente. A derrota do Ministério Público seria para eles a vitória dos seis anos de mediocridade e autoritarismo que nunca se cansaram de patrocinar. O destino de Sócrates apenas lhes interessa porque é também o seu.

               

Two birthdays


29 de Setembro, este ano, uma quinta-feira:
uma data em duplicado para a família inteira.
Isto é, tudo por junto,
constituída de pais, filhos e avós
já considerando o Pedrinho, que é bisneto,
perfazendo dezanove elementos a sós,
e sem incluir alguns colaterais
que também fazem parte, naturalmente,
na nossa família consistente:
Fazem anos o meu filho Artur e a minha neta Beatriz
E estou feliz.
No postal do Artur, com alguns impressos dizeres,
a aconselhar sabiamente
divertimentos vários,
nos 46 anos e seguintes,
escrevi os meus próprios votos
de bonomia aparente,
escondendo o sentimento
que ficou semeado na passagem
inclemente.
No postal da Beatriz
que tem na capa uma figurinha gorda
embora com peito e cintura finas,
os braços segurando um gatinho com laços,
fez-se referência com a respectiva saliência
aos onze anos da Beatriz
que misturam sagacidade e sã alegria
num todo de simpatia,
perspectivando um futuro
seguro.
Assim:
No postal do Artur:
46 é um “bom bocado” já trilhado
E outros bons bocados trilharás ainda
Numa vida que te desejamos linda.
Parabéns por eles e votos de saúde
A acrescentar à demais virtude.
No postal da Beatriz:
Uma figura redondinha
A parecer joaninha
Voando de flor em flor,
À Maria Beatriz,
Nesta data feliz
De todos nós que olhamos
E nos admiramos
Com o seu tamanho aos onze anos
- Tamanho em muitos ângulos

De esplendor.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Um filho de boa gente


Acho Alberto Gonçalves um escritor de grande riqueza crítica, informada por leituras de apoio às suas teses e suficientemente conhecedor do mundo para tratar os seus temas com destreza, subtileza e muito sentido de humor. Não o pensava participando numa polémica pessoal, mas face à torpeza de quem o atacou, acho que tem o direito de se defender com idêntica virulência, embora sabendo que prega no deserto, o dr. Louçã tendo adeptos devotados e apreciadores dos seus modos coruscantes, embora ultimamente menos  evidenciados televisivamente, suplantado, na representatividade, pelas suas ex-partenaires trepadoras, com os seus jeitos mais gracilmente despejadores de sentenças virtuosas, que quadram ao sentimento do nosso povo amplamente ciente dos seus direitos, e que ataca os ricos, não lhes reconhecendo o esforço e só lhes invejando o taco.
Mas a demonstração aí está, bem urdida, da canalhice do Dr. Louçã, ao considerar que Alberto Gonçalves defendera o livro de José António Saraiva, quando apenas estranhara a actual proeminência de um livro de denúncias e alcovas, tendo ignorado iguais faltas de escrúpulo narrativo numa produção anterior de São José Almeida, sobre gente do Estado Novo, mas que não provocaram, como o último, “as vozes do arruído pela cidade”, que já eram vulgares nos tempos de Leonor Teles, e de Fernão Lopes que os descrevera, e que a sociedade amestrada do novo governo repudia virtuosamente, provavelmente deliciada com os escândalos, mas censurando-os como é de bom tom. De resto, também Alberto Gonçalves o fez, remetendo tudo isso para a categoria de lixo, mas Francisco Louçã preferiu não ver tal, na sua competição de polemista encartado, preferindo mentir na sua denúncia, coisa que Alberto Gonçalves denuncia com a magistralidade de sempre, comprovando a sua arte e saber, com o texto seguinte, desassombrado na crítica, contra, ao que parece, mais um vendedor de banha de cobra que não conheço.

Mais depressa se apanha o dr. Louçã do que um coxo
Alberto Gonçalves
DN, 25 /9/16
Há oito dias, escrevi aqui sobre o livro Homossexuais no Estado Novo, onde a "jornalista" São José Almeida inventariou, sem o consentimento dos próprios e com alegada legitimidade académica, a orientação sexual de diversas figuras mais ou menos ligadas ao regime anterior. A coisa veio a propósito de um livro recente de José António Saraiva, Eu e os Políticos, nova colectânea de mexericos (a acreditar na imprensa) que deu brado principalmente por causa da anunciada, e entretanto cancelada, apresentação a cargo de Pedro Passos Coelho. No fundo, limitei-me a notar que, excepto pelas inclinações ideológicas dos autores, não compreendia o escândalo provocado pela segunda "obra" face à indiferença ou à exaltação suscitadas pela primeira.
Pois bem. Num blogue que mantém no Expresso (Tudo Menos Economia), Francisco Louçã resolve proclamar que o opúsculo do arq. Saraiva foi "defendido naturalmente por um cavalheiro do mesmo calibre que dá pelo nome de Alberto Gonçalves, no DN, e porventura por ninguém mais". Na mesma página, em resposta a um leitor que discordava da afirmação, o dr. Louçã acrescenta: "Que bem que lhe fica defender o Gonçalves, que defende o Saraiva como pode e mais não consegue." Abaixo, em resposta a outro leitor, o Louçã, perdão, o dr. Louçã (não quero intimidades com gente dessa) aconselha: "Leia todo o artigo do Gonçalves para ver como ele banaliza o feito do Saraiva." Questionado por um terceiro leitor acerca do Homossexuais no Estado Novo, afinal a referência que permitiria determinar a "banalização", o dr. Louçã esclarece: "Não li."
Regresso à crónica da semana passada para lembrar a minha "defesa" arrebatada do Eu e os Políticos, da qual sinceramente não fazia ideia. Talvez por não ter existido. Fundamentado nas citações e alusões que saíram nos jornais, chamei-lhe "baldinho de lixo", e garanti não duvidar de que se tratava de "uma porcaria". É certo que não cheguei a exigir a lapidação ou o enforcamento do arq. Saraiva, mas isso deve-se apenas à brandura do meu carácter. Em qualquer dos casos, suponho, "lixo" e "porcaria" não são epítetos habitualmente utilizados na defesa seja do que for. Em qualquer dos casos, ou o dr. Louçã é demasiado burgesso até para os padrões do Bloco de Esquerda ou, para recorrer à deprimente retórica parlamentar, o dr. Louçã faltou à verdade. Em português, palpita-me que o dr. Louçã mentiu. E mentiu de maneira tão tosca, no sentido em que a verdade é tão fácil de repor, que o facto só tem uma explicação.
Ao longo da sua curiosa carreira, o dr. Louçã contou sempre com uma plateia de bonequinhos amestrados que levam a sério os incontáveis disparates que regularmente profere. Se a criatura se alivia de uma mentira pequenina, os bonequinhos acreditam. Se a mentira é grande, os bonequinhos acreditam também. Há muito que a criatura percebeu não valer a pena enfeitar as absurdas intrujices que diz, um produto com procura suficiente para, no estado bruto, permitir-lhe ganhar a vida sem preocupações. À semelhança dos correligionários dele, o dr. Louçã é, literalmente, um mentiroso profissional, ofício para cúmulo favorecido pela reverência dos media, a indigência da universidade que o emprega e o enviesado primarismo do nosso "debate" público. E como mentiroso profissional é incansável: se o dr. Louçã dá os bons-dias, é garantido que está a chover.
Admito que nada disto possui particular importância. Simplesmente não gosto que me acusem de proezas que não pratiquei. Por uma vez, convém que as desastradas mentiras do dr. Louçã não fiquem impunes. Por uma vez, uma singela vez, é higiénico avisar que tudo o que sai da cabecinha daquela criatura não passa - vamos lá rever a matéria - de um lixo e de uma porcaria. E agora espero encarecidamente que o dr. Louçã não me acuse de defendê-lo a ele, uma inominável vergonha e uma calúnia ainda maior do que a da defesa do arq. Saraiva.

Quinta-feira, 22 de setembro
Outro economista de nível
O americano Joseph Stiglitz, economista e Nobel do ramo, elogia portugueses, gregos e espanhóis por, cito o DN, "terem melhores noções de economia do que a troika" e derrotarem nas urnas "os governos defensores da austeridade depois de 2008".
Em primeiro lugar, convém explicar ao homem que, Grécia discutivelmente à parte, Portugal elegeu um governo alegadamente "austeritário" em 2011 - e, descontadas moscambilhas parlamentares, voltou a elegê-lo em 2015 -, e a Espanha continua, na medida do possível, sob um governo do PP. Em segundo lugar, acredito que portugueses, gregos, espanhóis, guatemaltecos e curdos tenham melhores noções de economia do que o sr. Stiglitz.
Em 2007, este portento andava por Caracas a prever a irreversibilidade do "sustentável" (sic) crescimento local, a admirar o nível de vida vigente e a declarar irrelevante a elevada inflação. Em 2016, enquanto vende utilíssimos conselhos ao Sul, assegura ainda que a Alemanha está aqui, está na miséria.
Para a semana, aposto que o sr. Stiglitz vai anunciar que a Irlanda, que cresceu 26% em 2015, não sai da cepa torta. Esperem lá: já anunciou, em Janeiro passado. Ou seja, em economia, história, actualidades e no que calha, o sr. Stiglitz é bem capaz de ser o indivíduo mais à nora e menos esclarecido do mundo. Aparentemente, o homem só é óptimo a esconder de uns tantos a sua prodigiosa incompetência. E isso, sim, merecia um Nobel.


segunda-feira, 26 de setembro de 2016

A tristeza do Sicut erat in principio


Um artigo de António Barreto que corresponde a um sentimento de frustração há muito por nós badalado, sobretudo no café de domingo, com igual indignação, embora menor expressividade discursiva, acerca da lamechice torpe das notícias que se quer a todo o custo sensacionalistas, com muito apelo ao sentimento e tolas entrevistas a lesados, colaborantes na simpatia para desabafo televisivo da sua dor. Se for estrangeiro perdido na serra, pede-se que este conte a sua história, destacando a gratidão pelo povo prestável. Somos assim, até mesmo um fidalgo - Gonçalo Mendes Ramires, da «Ilustre Casa de Ramires» - combinava em matéria de carácter, uma simpatia afectuosa e manobras leoninas escondendo cobardias, as ambições enroladas em espertezas de menor escrúpulo, um todo de inércia e bondade, de arroubos e desistências, de insatisfação e boa camaradagem, e era fidalgo e escritor. Eça ressalva-lhe a bondade, no final do livro, e Eça sabia quanto a bondade é necessária nas relações humanas. Mas também o espírito.
Mas António Barreto, ao pôr a descoberto a crescente mediocridade dos nossos noticiários – e não só esses – aponta a grave crise da nossa educação que não há meio de arrancar, apesar das muitas tentativas e das vozes críticas bem armadilhadas, como a deste artigo de António Barreto.

As notícias na televisão
António Barreto
DN, 25/9/16
Os directos excitantes, sem matéria de excitação, são a jóia de qualquer serviço. Por tudo e nada, sai um directo
É simplesmente desmoralizante. Ver e ouvir os serviços de notícias das três ou quatro estações de televisão é pena capital. A banalidade reina. O lugar-comum impera. A linguagem é automática. A preguiça é virtude. O tosco é arte. A brutalidade passa por emoção. A vulgaridade é sinal de verdade. A boçalidade é prova do que é genuíno. A submissão ao poder e aos partidos é democracia. A falta de cultura e de inteligência é isenção profissional.
Os serviços de notícias de uma hora ou hora e meia, às vezes duas, quase únicos no mundo, são assim porque não se pode gastar dinheiro, não se quer ou não sabe trabalhar na redacção, porque não há quem estude nem quem pense. Os alinhamentos são idênticos de canal para canal. Quem marca a agenda dos noticiários são os partidos, os ministros e os treinadores de futebol. Quem estabelece os horários são as conferências de imprensa, as inaugurações, as visitas de ministros e os jogadores de futebol.
Os directos excitantes, sem matéria de excitação, são a jóia de qualquer serviço. Por tudo e nada, sai um directo. Figurão no aeroporto, comboio atrasado, treinador de futebol maldisposto, incêndio numa floresta, assassinato de criança e acidente com camião: sai um directo, com jornalista aprendiz a falar como se estivesse no meio da guerra civil, a fim de dar emoção e fazer humano.
Jornalistas em directo gaguejam palavreado sobre qualquer assunto: importante e humano é o directo, não editado, não pensado, não trabalhado, inculto, mal dito, mal soletrado, mal organizado, inútil, vago e vazio, mas sempre dito de um só fôlego para dar emoção! Repetem-se quilómetros de filme e horas de conversa tosca sobre incêndios de florestas e futebol. É o reino da preguiça e da estupidez.
É absoluto o desprezo por tudo quanto é estrangeiro, a não ser que haja muitos mortos e algum terrorismo pelo caminho. As questões políticas internacionais quase não existem ou são despejadas no fim. Outras, incluindo científicas e artísticas, são esquecidas. Quase não há comentadores isentos, ou especialistas competentes, mas há partidários fixos e políticos no activo, autarcas, deputados, o que for, incluindo políticos na reserva, políticos na espera e candidatos a qualquer coisa! Cultura? Será o ministro da dita. Ciência? Vai ser o secretário de Estado respectivo. Arte? Um director-geral chega.
Repetem-se as cenas pungentes, com lágrima de mãe, choro de criança, esgares de pai e tremores de voz de toda a gente. Não há respeito pela privacidade. Não há decoro nem pudor. Tudo em nome da informação em directo. Tudo supostamente por uma informação humanizada, quando o que se faz é puramente selvagem e predador. Assassinatos de familiares, raptos de crianças e mulheres, infanticídios, uxoricídios e outros homicídios ocupam horas de serviços.
A falta de critério profissional, inteligente e culto é proverbial. Qualquer tema importante, assunto de relevo ou notícia interessante pode ser interrompido por um treinador que fala, um jogador que chega, um futebolista que rosna ou um adepto que divaga.
A concepção do pluralismo é de uma total indigência: se uma notícia for comentada por cinco ou seis representantes dos partidos, há pluralismo!


Procuram-se presidentes e ministros nos corredores dos palácios, à entrada de tascas, à saída de reuniões e à porta de inaugurações. Dá-se a palavra passivamente a tudo quanto parece ter poder, ministro de preferência, responsável partidário a seguir. Os partidos fazem as notícias, quase as lêem e comentam-nas. Um pequeno partido de menos de 10% comanda canais e serviços de notícias.
A concepção do pluralismo é de uma total indigência: se uma notícia for comentada por cinco ou seis representantes dos partidos, há pluralismo! O mesmo pode repetir-se três ou quatro vezes no mesmo serviço de notícias! É o pluralismo dos papagaios no seu melhor!
Uma consolação: nisto, governos e partidos parecem-se uns com os outros. Como os canais de televisão.


Não mais “A Encomendinha” de Trindade Coelho


Eu até acredito que quem faz a sua escolaridade inicial com a família pode conseguir melhores resultados do que os alunos sujeitos a cargas horárias distribuídas por grande espaço do dia a professores com maior ou menor competência pedagógica e de empatia, a turmas com uma massa escolar extremamente diversificada, num laxismo de turbulência inconcebível, dificilmente propiciador de estímulo para a aquisição de conhecimento ou mesmo para uma saudável competitividade. Ainda nestas férias, por alturas dos exames, contou-me a minha filha sobre o exame oral de uma aluna preparada em casa, realmente prestando boas provas, mas extremamente convicta da sua importância, ao considerar com desprezo, para alguém, que a mãe dela sabia mais do que as professoras da escola onde, humilhantemente, era sujeita às mesmas provas dos alunos da escola que não frequentara. Como diz João Taborda da Gama, um acompanhamento inteligente em casa por pais qualificados e estimulando a leitura como meio mais eficaz para o desenvolvimento cultural e mental é muito válido. Ainda bem que agora as Ls. já poderão desenvolver os seus raciocínios e destrezas linguísticas no remanso disciplinado, sem o afobamento dos meninos que têm que se levantar mais cedo para irem ser deixados na escola pela mãe ou pelo pai que vão para os seus serviços. Oxalá haja muitas Ls. nessas condições, orientadas pelas mães que não precisam de trabalhar fora, os pais ganhando o suficiente para prover às necessidades da família, a casa e o seu recheio já pagos, no melhor dos mundos de bom gosto e sabedoria.
Não deixo de ter pena das crianças educadas em casa, sem os recreios para a brincadeira e a comunicação, mas convenho que, se se arranjarem amiguinhos para os espaços de brincadeira, as Ls. têm todas as hipóteses de fazer um bom percurso escolar nas calmas. Nos países com maior nível cultural e económico, as mães ficam em casa nos primeiros tempos para acompanharem melhor a educação dos filhos. Dificilmente isso poderia passar-se connosco, dados os condicionalismos conhecidos. Lembro-me duma aula em que, em momento de pausa, para esclarecer os alunos de uma turma sobre a  subida do custo de vida, lhes contei os meus primeiros tempos de professora, em que alugara uma casa a estrear, que me custava 700#00 de renda, o que correspondia a 1/3 do meu vencimento de professora. Fora isto nos anos 57-59, em Aveiro, mesmo ao pé do liceu, (palavra já arcaica no nosso país). Trinta e tantos anos depois, um dos vencimentos do casal servia para pagar a casa, tinham ambos os pais que trabalhar para poderem sobreviver. Nos anos de agora, nem já isso chega. Por isso, é uma situação ideal, a referida por João Taborda da Gama. A propósito, tenho muita pena dos professores de agora, que não só enfrentam inúmeros problemas de ensino – em que não é a menos despicienda a complexidade pedante das matérias escolares – e não me refiro só ao ensino básico, em que se retirou a noção de bases  fundamentais, com o auxiliar da memória pela repetição – sofisticadaamente posta de lado como psitacismo embrutecedor, o apelo à inteligência pela compreensão dos fenómenos possuindo eficácia mais decisiva no alargamento das competências…. Dizia eu que admiro os professores de agora, vítimas de imposições de exigências  que nada têm a ver com o curso que tiraram. Tanto que eu gostava de estudar e ensinar as literaturas, na sua progressão cronológica enquadrada numa visão histórica! Que pena tenho dos professores chamados a ensinar alunos que mal sabem ler e escrever ou sequer falar, e nunca aprenderão, nos agrupamentos de escolas para retirar elitismos e cada vez mais massificar aprendizagens. E os discentes. Mas estou longe disso agora, talvez me engane. Toda esta elegia a propósito do convidativo artigo “Ficar em casa”, de João Taborda da Gama, cuja tese, em todo o caso, me parece um pouco castradora para as Ls.

Ficar em casa
João Taborda da Gama
DN 25/9/16
Neste regresso à escola, a L. não regressou à escola. Vai fazer a quarta classe em casa, a casa como escola, a mãe como professora, a mesa da cozinha como carteira, a rua como recreio. Mas isso pode-se? é legal?, é a primeira pergunta que nos fazem. Sim, a lei prevê que os pais possam educar os seus filhos em casa, e o Estado controla a coisa verificando quem é o encarregado de educação, o plano de estudos seguido e sujeitando a criança a exames. As regras estão espalhadas em vários sítios, mas são relativamente simples.
Mas no fundo, no fundo, quando as pessoas perguntam "isso pode-se", não querem saber se isso se pode ou não, porque presumem que se possa, que os pais, que até são ambos juristas, tenham visto bem isso e não queiram que a Segurança Social lhes retire a filha. No fundo, esta pergunta é mais para ganhar balanço para a que vem normalmente logo a seguir, o porquê? A L. estava na escola, mas a verdade é que não adorava. Gostava muito dos colegas, mas não de todos. Gostava da professora, das auxiliares, sem dúvida. Mas, sem ingratidão, gosta mais da mãe do que das professoras, de ler Um Atalho no Tempo quando lhe apetece, do que apenas no fim do dia cheia de sono, depois da escola, da guerra civil do deitar, do arrumar a mochila; gosta mais de cozinhar o almoço do que comer do refeitório. E ter tempo para aprender outras coisas, ao seu ritmo, trabalhar mais o que tem mais falta e o que mais gosta.
O Ministério da Educação explica: "As modalidades de ensino doméstico e a distância revestem-se de carácter excecional e visam responder a solicitações de famílias que, por razões de mobilidade profissional e outras de natureza estritamente pessoal, pretendem escolher os métodos de ensino mais apropriados para os seus educandos." É uma solicitação, e são razões de natureza estritamente pessoal - quem diz é o ministério. E são. Pessoalmente achamos que a ideia de escola é muito bonita, sem ironia, que sem escolas nada havia, e que é por isso que é bom pagar impostos, e por isso os nossos outros filhos continuam na (mesma) escola. Mas também achamos que momentos, circunstâncias e crianças diferentes recomendam caminhos diferentes.
O sistema educativo é mais do que uma escola-parede e professor - é também este sistema que permite espaços de maior liberdade em relação ao próprio Estado, em que o Estado recua ao essencial, se remete à verificação da capacidade dos pais para educar segundo um programa. Um Estado que deixa que os pais sejam plenamente o que naturalmente são, educadores, com as suas virtudes, os seus defeitos. Um Estado que deixa os filhos estarem mais tempo com os pais, mais tempo em casa. Os horários da escola, cada vez mais amplos para acudirem às necessidades profissionais sufocantes dos pais, deixam pouco tempo para coisas que não são menos importantes do que a aula de Educação Física. Almoçar e passar uma tarde com os avós, ir ao Pingo Doce, andar de bicicleta - três coisas que uma criança na quarta classe tem hoje dificuldade em fazer sem estar a faltar a qualquer coisa. Que sentido faz isto?
Há sempre o fantasma da socialização, se ela não vai sentir falta dos amigos. Temos começado por esclarecer que não a vamos fechar numa cave como o Sr. Fritzl, nem vamos viver para o Parque Natural de Montesinho, que a L. vai continuar a viver numa casa com cinco irmãos, numa rua com pessoas, que vai continuar a fazer muitas horas de desporto por semana e outras atividades. E que as amigas da escola vão continuar a falar com ela e a poderem ir lá a casa, mesmo depois dos pais lhes dizerem, quando elas lhes pediram para também ficarem em casa como a L, que a L. e os pais da L. não são bons da cabeça.
E tudo é reversível, se a coisa não correr bem, se deixarmos de achar que é o melhor, se ela deixar de querer está lá sempre a escola, o Estado, o colégio, tudo como rede, e os amigos, a família, a darem imenso apoio, com "told you" escrito na testa.
Claro que para fazer isto é preciso poder, poder ter um dos pais em casa, e que esse pai queira ensinar, e que a criança queira ficar em casa. Mas querendo e podendo, só há uma razão para não fazer, o medo do que os outros possam pensar, o desconforto, o ter de explicar, o receio de ser diferente, ou, pior ainda, de assumir e viver essa diferença. E só por isso, por essa libertação, que também queremos que seja parte da lição da L., já valeu a pena.

E, sim, vamos continuar a vacinar os miúdos.

domingo, 25 de setembro de 2016

C’est selon…



Nos anos sessenta a humanidade confrontou-se com perguntas novas, escreve mansamente Rui Tavares, que começa por informar sobre as quedas do espaço em terreno estrangeiro, para seguidamente focar o tema grato das descolonizações que não está nos tópicos, mas a que responde com a sigla ONU, que a eles deu resposta, sendo esta, na altura, “o parlamento do mundo”. Por aqui se vê que as unidas nações e em especial os Estados Unidos, tiveram um papel preponderante na atribuição dos territórios africanos aos seus povos primeiros, provavelmente no fito de expulsarem de si os africanos de quem primeiro precisaram e que escravizaram, e que agora lhes convinha que retornassem pacificamente ao habitat de origem, agora de espaços independentes, cada macaco no seu galho, a África para os africanos, a América para os americanos, a Europa para os europeus, a Ásia para os asiáticos e pouco mais, que a Terra até é pequena para tanta gente e qualquer dia falta a água e vai-se a vida, com os excessos demográficos e a redução dos continentes a acompanhar os degelos e a perder húmus com as secas que os incêndios mais desolam.
Rui Tavares mostra, assim, quanto convinham aos países da ONU, as independências africanas que ele também apoiou é claro, e bem assim António Guterres. Daí o ataque à actual ONU que já não possui sentimentos tão poderosamente humanitários, a não ser para os seus chefes se mostrarem politicamente correctos, segundo a doutrina democrática, posição por vezes posta em causa. É claro que Guterres segue-a sempre, afagando os pobres desprotegidos dos novos desentendimentos bélicos e já se esqueceu daquela coisa da Declaração dos Direitos de cada macaco no galho respectivo. Agora, toca de abrir os braços aos desprotegidos invasores da Europa, o que a Angela Merkel também faz e bem que se trama, pessoalmente falando, mas também trama todos os que acham que com tal invasão, a que sobretudo a Europa costuma ser atreita, desde os tempos pré-históricos, agora é que não haverá safa por cá. Guterres até é dos que fica bem na foto, protegendo os escorraçados da Ásia e da África, e assim Rui Tavares o defende, porque tendo ganho por quatro vezes para Secretário-Geral da ONU, a sua escolha ainda não está segura, o Conselho de Segurança tendo a última palavra sobre o caso. Daí o receio de Rui Tavares e o ataque à batota: «Parte disso é culpa própria: se antes a ONU discutia o que fazer quando os humanos fossem à lua, hoje tem dificuldades em entender que um homem que ganhou quatro votações destacadas para Secretário-Geral da ONU é provavelmente o melhor Secretário-Geral para a ONU. A verdade é que, para Rui Tavares, e Guterres, naturalmente, seria necessária a «emissão de um Passaporte Internacional Humanitário que desse segurança física e legal aos refugiados. Ideias que, à partida, qualquer Conselho de Segurança chumbaria.»
E assim se explica a simpática defesa de Rui Tavares do, outrora, aparentemente  adversário político.

Para que serve a ONU?
21/09/2016
A ONU já foi, em tempos, o parlamento do mundo. E hoje não tem a mesma relevância.
Nos anos sessenta, a humanidade confrontou-se com perguntas novas. Como por exemplo: o que fazer quando um astronauta cai do espaço num país que não é o seu?
O lugar óbvio para lhes dar resposta era a Organização das Nações Unidas. Durante anos, uma comissão especializada da ONU foi avaliando este e outros casos até chegar ao Tratado sobre o Espaço Exterior, “incluindo a Lua e outros Corpos Celestiais”. E chegou no tempo certo: no dia em que foi assinado, 27 de janeiro de 1967, ocorreu um acidente na Apolo I em que pela primeira vez morreram três astronautas.
Em terra, a missão mais complicada era a descolonização, e Portugal estava num dos lugares mais desconfortáveis (depois de o nosso país chegar tarde à ONU porque Salazar desconfiava de internacionalismos). A Comissão da Descolonização dedicou muito do seu trabalho aos territórios sob administração portuguesa. Em 1975, após o 25 de Abril, mudou-se para Lisboa e acompanhou o estado do debate entre os movimentos de libertação e o novo governo democrático em Portugal.
De cada vez que um país africano se tornava independente, muitas vezes com apoio norte-americano, dava-se um ricochete: os movimentos negros insistiam com os seus camaradas nos novos países para que estes denunciassem na ONU o estado das questões raciais nos EUA. Malcolm X usou essa tática. Martin Luther King discursou em frente ao seu edifício em Nova Iorque para pressionar o governo do seu país perante as consciências do mundo.
Em resumo: a ONU já foi, em tempos, o parlamento do mundo. E hoje não tem a mesma relevância.
Parte disso é culpa própria: se antes a ONU discutia o que fazer quando os humanos fossem à lua, hoje tem dificuldades em entender que um homem que ganhou quatro votações destacadas para Secretário-Geral da ONU é provavelmente o melhor Secretário-Geral para a ONU. Toda a gente sabe que as regras desatualizadas do Conselho de Segurança são um problema para a ONU, mas quem o admitir está excluído à partida de tentar melhorar a situação.
A ONU é também vítima, por assim dizer, dos seus sucessos (e das organizações que o seu internacionalismo inspirou). A descolonização está, em grande medida, feita. A missão da paz na Europa foi transferida para a UE e mantida de forma mais duradoura do que nunca. As crises que há para resolver hoje, como a das alterações climáticas, passam por negociações multilaterais que a ONU facilita sem centralizar. A ONU tem ainda uma enorme importância; mas ela é menos visível e menos relevante — e isso é um problema.
Para a ONU voltar ao lugar que já teve nas imaginações da humanidade seria preciso mudá-la por dentro. Isso poderia passar pela criação de uma Assembleia Parlamentar das Nações Unidas, um Tribunal Internacional contra os crimes ambientais e pela emissão de um Passaporte Internacional Humanitário que desse segurança física e legal aos refugiados. Ideias que, à partida, qualquer Conselho de Segurança chumbaria.
Precisamente por isso — e porque precisamos da ONU mais do que nunca — é necessário um Secretário-Geral com a visão e a experiência necessárias para por as coisas a andar. Convinha era o Conselho de Segurança perceber que já o escolheu.

sábado, 24 de setembro de 2016

A sebe



Numa das muitas antologias literárias que me passaram pelas mãos, fixei a quadra inicial de um  poema mais ou menos narrativo de António Feliciano de Castilho, sobre uns amores de dois adolescentes, “cena Romeu e Julieta estás a ver?” – amores proibidos pelos respectivos progenitores – mas terminando alegremente com a perspectiva da destruição da sebe das roseiras para um final feliz («Mas queiras tu, queira eu…» - creio que assim começa a última quadra, sem que me lembre do resto, que, com grande pena, não encontro na Internet, e há muito perdi o rasto da antologia antiga, Castilho naturalmente arrumado dos programas escolares, como objecto de curiosidade, quando muito  referido de passagem por conta da Questão Coimbrã, polémica que marcou uma viragem literária, contrária certamente a uma sua literatura mais ou menos artificial, apesar da graciosidade de alguns quadros bucólicos que descreveu, como o poema que a Internet revela “Treze Anos”: “Já tenho treze anos /Que os fiz por Janeiro/ Madrinha casai-me / Com Pedro Gaiteiro” ). Começava assim o poema de Castilho, de que me lembrei a propósito da Quadratura do Círculo desta semana:
Há entre os nossos quintais
Duas sebes de roseiras
Foi posta por nossos pais
Para servir de fronteiras.

Na verdade, a imagem da sebe me veio à ideia - a “cena” dos muros sendo demasiado pretensiosa no caso presente - com Pacheco Pereira a convidar os amigos das disputas habituais a irem abrir os três a janela diante do mar, para a lufada de ar da maresia, após as informações esplendorosas de Jorge Coelho de que o investimento se vai mesmo realizar em Portugal - com a injecção de capital exterior para isso - o que, aliás, explica a alegre confiança e ironia de António Costa contra os do Restelo que lhe desfazem na “geringonça”, desconhecedores da injecção, ao contrário de Jorge Coelho, que a conhece e sabe dar valor às carências nacionais, condenando decididamente as políticas anteriores de Passos, (esquecido dos condicionalismos em que navegava a nau deste).
Mas, retomando a sebe, de facto, existe uma entre os três da quadratura, não por oposição de parentes contrariados, mas por incompatibilidades próprias, resultantes das ideologias pessoais, sebe, aliás, bastante florida de rosas também, os espinhos, quando eriçados, logo retomando os punhos de renda das civilidades, que se me perdoe o surrealismo da imagem. Mas nunca, como hoje, a sebe fora tão esplendidamente anulada, no geral regozijo que sucedeu à informação do opositor socialista, adepto inquestionável das virtudes governativas de  António Costa.
O debate hoje iniciou-se a respeito da escaramuça altissonante causada pela proposta do Bloco de Esquerda de taxar o imobiliário com que os ricos disfarçam a sua riqueza escondida nos tais paraísos fiscais, isenta dos impostos pátrios, e criando nessas mansões o seu próprio paraíso vivencial, saboreando da pátria o bom clima e o saboroso alimento, que ainda é o que se leva desta vida, além da brincadeira, ai, ai. É claro que os ricos não gostaram da graça e António Costa teve que pôr água na fervura, explicando que não era tanto assim, como o Bloco dizia que queria que fosse, com Mariana Mortágua a explicar e dizendo verdades muito justas e muito sentidas que, de resto, Pacheco Pereira, que não perde a ocasião de cascar em Passos Coelho,  apoiou, afirmando que o que ela disse já Passos o propusera, bem claro - taxar as casas dos ricos, por conta dos dinheiros resguardados fora, para buscar as côdeas dos remendos pecuniários de que Costa precisa para o seu acordo com Bruxelas, para Bruxelas não se zangar connosco, continuando a servir-nos e a taxar-nos, como é justo, mas cada vez mais excessivamente, por conta da insignificância dos investimentos cá.
Não importa continuar o relato sobre os temas disputados na Quadratura, cada um a seu modo, com a perspicácia e a orientação específicas, Pacheco Pereira, como sempre lançando as garras (linguagem surrealista) sobre o pobre Passos Coelho, com pano para mangas, secundado desta vez por Lobo Xavier, por causa do tal livro que se comprometeu a apresentar mas de que se escusou posteriormente, o que também lhe não é perdoado, no empolamento da moralidade para os bons costumes. Quanto a Jorge Coelho, gostei que se escusasse à lavagem da roupa suja, e em vez disso tirasse o tal coelho da cartola, a respeito da veracidade dos investimentos, como bom prestidigitador, o que fez terminar o debate sem sebe e com o perfume da maresia, sugerido por Pacheco Pereira.