A Internet informa que José
Pacheco Pereira está filiado no PSD, embora a sua alma continue a arrastá-lo para
as ideologias que o tornaram biógrafo de Álvaro Cunhal e que o fazem arrasar
figuras que lhe deveriam merecer apoio, tais como Pedro Passos Coelho e, agora,
Marcelo Rebelo de Sousa, o objecto do seu ataque no texto que segue, já em
segunda parte. Durante os míseros quatro anos da governação de Passos Coelho –
e digo míseros, porque para terem efeitos relevantes na nação seriam
necessários, pelo menos, mais outros tantos, que, de resto, lhe foram
usurpados, por manobras matemáticas deficientes, dos nossos Pedro Nunes de
pacotilha, de que Pacheco Pereira foi orientador-mor - nunca Pacheco Pereira
deixou de o cilindrar, de todas as maneiras e feitios, rebaixando-o a ponto de
introduzir – ele e os seus camaradas de apoio, (conquanto as origens
aristocráticas de Pacheco Pereira que remontam ao medievo, também segundo a informação
da Internet, refutem tais familiaridades terminológicas) – a ponto de
introduzir novos esquemas provando que a superioridade de votos significa
derrota, mas tudo isso já passou à história. Agora põe-se o problema de uma
Europa que não exerceu sobre nós as sanções esperadas e o aristocrático Pacheco
Pereira, ao invés de lhe apreciar o gesto, como fez Marcelo, indigna-se e
informa que o facto se deve a uma viragem de posicionamento dos países pobrezinhos
e pedinchas, que, pelo clamor indignado e altivo dos apoiantes de esquerda
exigem referendos e mostram – sem medos! – quanto a nova Europa, de
irregularidade comportamental em relação aos primitivos propósitos da União
Europeia, não está ali para apoiar os pobres mas para se defender deles, o que
está errado. O governo anterior, de Passos e Portas, tudo fez para ir saldando
a dívida, mas isso foi mau porque empobreceu o país e as gentes, e provou que
somos um povo que se rebaixa, sempre de mão estendida, embora a de Passos se
estendesse para pagar a dívida como nos competia, e o país estivesse já a
erguer-se na confiança de povos investidores.
Nunca, que me lembre, Pacheco
Pereira referiu a nobreza de comportamento do governo do PSD-CDS, no esforço
ingente de livrar o país da dívida deixada por Sócrates, à custa de muitos
sacrifícios de todos, de uma austeridade que pouco a pouco ia desaparecendo, como
desapareceu o jugo do FMI, de visitas macabras e imposições. Fundamental, para
ele e os apaniguados – de pacotilha – seria que se continuasse a mamar da vaca
europeia, há muito que isso está dito, vamos a ver se vai continuar a pegar, se
bem que Pacheco Pereira, como os mais dessa esquerda, achem que não precisamos
da Europa, contrariamente à opinião de Marcelo e da maioria, incluindo o PS. Mas a economia espanhola cresce e a nossa
estagnou e vai descer, com as teorias e práticas do actual governo que não se
rebaixa e aponta altivamente os seus direitos a uma reformulação da dívida.
O que não desce é a verborreia
contumaz nem de Pacheco Pereira, nem dos parceiros de uma esquerda ingénua que tão
bem desembucha direitos.
Quanto a Pacheco Pereira, tão
estudioso, tão bem falante, tão superior, porque não abranda a sua sanha contra
o homem determinado do governo anterior - porque é dele que fala quando se
dirige a Marcelo, num dirigismo de opinião que revela inexplicável malquerença?
Lembrei-me da primeira Catilinária
de Cícero, que encontrei na Internet, com a respectiva tradução, que aqui
transponho, não para desfeitear Pacheco Pereira, mas para o homenagear, simbolicamente, com um clássico que lhe
serviu de exemplo nas suas verrinas incansáveis, que, apesar de tudo, são
modelo de uma oratória ou de um articulado que enriquece o nosso país. Não devem
desaparecer. Poderiam, sim, tornar-se mais ponderadas. Eticamente falando.
Até
quando, Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo a tua loucura
há de zombar de nós? A que extremos se há de precipitar a tua desenfreada
audácia? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda noturna da cidade, nem o temor
do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido
para a reunião do Senado, nem a expressão do voto destas pessoas, nada disto
conseguiu perturbar-te? Não te dás conta que os teus planos foram descobertos? Não
vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem? Quem,
dentre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na
precedente, onde estiveste, com quem te encontraste, que decisão tomaste? Oh
tempos, oh costumes!
Europa
vista pelo Presidente da República – (2) O lado de dentro
Público, 30/07/2016
Voltando à intervenção do Presidente da República há duas
semanas e acrescentando-lhe várias outras declarações entretanto feitas sobre a
mesma matéria — Marcelo produz declarações a um ritmo, digamos, de forma
eufemística, acelerado —, vamos agora ver o “lado de dentro” dessas
declarações, ou seja, o que elas revelam sobre Portugal e a União. Este é,
aliás, o aspecto pior dessas declarações, visto que Marcelo acaba por ser o
porta-voz do atentismo voluntarista que explica por que razão a nossa consciência
crítica e a nossa vontade cívica soçobram face àquilo que hoje a Europa é
contra os interesses nacionais, insisto, contra os interesses nacionais.
Eu
sou mais europeísta do que eles, porque estou consciente do caminho para o
desastre que se está a seguir e mais próximo da Europa dos fundadores, que de
há muito renegaram. E, sim, o facto de não haver sanções não justifica nenhum
dos elogios que estão a ser feitos à União, porque eles assentam numa análise
asséptica das razões por que não houve sanções.
O
facto de não haver sanções foi o resultado de um combate político que se fez
exactamente contra a Europa dos europeístas, em vez da atitude de submissão que
era e é a norma. Se há mérito, não é da Europa das “regras”, mas do Governo
português, que a contestou, mesmo que não o diga. Este combate travado pela
primeira vez por um governo do lado débil do Sul é em si uma novidade, mas está
longe de significar uma mudança qualitativa da União.
Se
este sucesso tem continuidade, é o que se vai ver, espero que sim, mas duvido
que tenha, em particular pela reafirmação do garrote do Tratado Orçamental, um
instrumento contra o desenvolvimento económico dos países da Europa que mais
precisam de alguma folga prudente, consistente mas continuada. Aliás, é com
ironia que vejo o FMI juntar-se aos perigosos esquerdistas que falavam da
reestruturação da dívida e do desastre que foi o programa da troika e, por
maioria de razão, o modo como foi aplicado em Portugal. O recente documento do
FMI é um libelo contra as políticas do Tratado Orçamental impostas pelo
Eurogrupo e apoiadas com entusiasmo pelo Governo PSD-CDS, que queria, de forma
pouco disfarçada, que Portugal sofresse sanções... pela política de 2016.
Usar
o facto de não ter havido sanções para crer em intervenções avulsas, do
Presidente, do ministro de Negócios Estrangeiros e até de dirigentes
europeístas de partidos como o Livre, pretender que isso significa que a
Europa afinal funciona “bem” e os que a criticam não tem razão é mais uma
cegueira a acrescentar a muitas outras que se repetem há quinze anos.
Aliás,
se, nesta matéria, só houvesse direito a falar caso se tivesse acertado nalguma
coisinha nestes últimos anos, nenhum europeísta teria sequer a possibilidade de
dizer alguma coisa. Em democracia, há o direito de errar, mas a credibilidade
dos europeístas é muito escassa. Desde pelo menos o célebre discurso de Joschka
Fischer de 2000, o caminho é errado, só tem conduzido a desastres sobre
desastres e falar de cegueira tem todo o sentido.
A
cegueira de ter contribuído para o enfraquecimento da Comissão em detrimento do
fortalecimento do Parlamento e do Conselho, a cegueira da Constituição Europeia
vencida pelo “canalizador polaco”, a cegueira das discussões egoístas do
Tratado de Nice, aquele que está debaixo do tapete, a cegueira de um tratado
como o de Lisboa que não serviu para nada nestes anos de crise, a cegueira de
ir tornando a cada dia que passa a União mais desigual, mais reduzida a
directórios e por fim a um só poder, a cegueira da gestão do euro, a cegueira
de ter tornado a solidariedade entre os países mais ricos a favor dos mais
pobres num conflito entre diligentes e preguiçosos, a cegueira de ter aberto a
crise das dívidas soberanas, a cegueira e, pior do que isso, a política da
canhoneira, com a Grécia, a cegueira do Tratado Orçamental, a cegueira
criminosa de querer ter uma política externa agressiva sem forças armadas, na
Ucrânia, na Líbia, na Síria, a cegueira de engolir uma burocracia cada vez mais
arrogante, que usa e abusa das fugas de informação, a cegueira de aceitar
presidentes da Comissão cada vez mais fracos, — em todos estes passos houve
quem criticasse e dissesse quais eram as consequências. Foram isolados como
reaccionários face à marcha progressista da engenharia política europeia, apelidados
de soberanistas (agora é um insulto), nacionalistas e extremistas. De cada vez
que ganham um referendo, são apelidados de populistas, face à elite das elites
iluminadas, que os perde. E as consequências previstas verificaram-se todas.
Voltando
ao discurso presidencial, um dos seus pontos-chave é o ataque à proposta de
referendo que foi feita pelo BE, caso houvesse sanções. O BE andou para trás e
para a frente com a proposta, deixou-se enredar nas críticas do Presidente e do
PCP sobre a não possibilidade de haver referendos a tratados internacionais.
Claro que a questão não precisa de ser constitucional ou a pergunta ser sobre
um tratado, até porque há muitas maneiras de perguntar ao povo português sobre
a Europa sem violar a Constituição. Marcelo deve conhecer pelo menos vinte.
O
problema é outro: é a demonização do referendo cuja proposta, seja sob que
forma for, é considerado quase uma proposta criminosa e antinacional, própria
de fascistas, nacionalistas, comunistas e diversos extremistas. É irónico que
Marcelo seja hoje um porta-voz dessa demonização, ele que fez parte do partido
com mais tradição referendária e que propôs ele próprio pelo menos um
referendo. É irónico, insisto, que seja alguém do PSD que acha que fazer um
referendo é quase um crime, quando uma das reivindicações históricas do PPD e
depois do PSD foi a realização de um referendo em matérias constitucionais, e
que homens como Alberto João Jardim regularmente proponham um referendo, na
tradição, aliás, de Sá Carneiro. E que se esqueça que não passou muito tempo
desde que PSD e PS foram a votos com a promessa de levar a referendo qualquer
novo tratado europeu que implicasse alterações na Constituição, promessa que
abandonaram pela porta baixa quando os franceses queriam ultrapassar o chumbo
da Constituição, para fazer a fraude que é incluir no Tratado de Lisboa aquilo
que tinha sido rejeitado na França e na Holanda.
Este
aspecto da crise democrática da União, que desde essa altura não fez mais do
que se agravar, é algo de que os europeístas não falam nem têm em consideração.
E bastava isso para olharmos com um olhar muito crítico a actual União,
entregue a um efectivo poder de uma só nação e dos seus aliados, ou seja,
exactamente aquilo que os fundadores da Europa não queriam que acontecesse.
A
perda de poderes dos parlamentos nacionais e dos governos mais frágeis da
União, substituídos pela burocracia de Bruxelas, aumentou insidiosamente na
última década e meia sob um pano de fundo doloso e de mentira. Sobre isso os
europeístas entregaram a reivindicação soberana aos extremos, coisa para que
nunca ninguém lhes deu mandato, nem tem qualquer sentido no modelo igualitário
com que se construiu a União.
Aliás,
por que razão é que pensam que a reivindicação referendária tem crescido, a não
ser pela consciência crescente de que o bloco PPE-PSE que domina a Europa
retira o pluralismo da discussão política da União para o entregar a maiorias
pouco sadias, e de costas cada vez mais voltadas para a opinião popular? É por
saberem que partidos como o PS e o PSD, assim como os seus congéneres europeus,
não entram em conta com o crescente sentimento hostil à União Europeia, e que
nenhuma discussão parlamentar exprime os seus ponto de vista a não ser
rotulando-os de nacionalistas, extremistas, quiçá fascistas, que a pressão
referendária aumenta.
À
medida que a democracia nacional é sugada pela burocracia de Bruxelas e pelos
países mais poderosos, que os parlamentos enfraquecidos e subordinados se
transformam em entidades vazias, apenas resta às pessoas a exigência
referendária. Se a democracia parlamentar funcionasse como devia, representando
as opiniões reais e não directórios partidários, e o Parlamento tivesse os
poderes de dizer que não em muitas matérias em que foi desapossado desse poder
sub-repticiamente, a pressão referendária era menor.
Foi
o que aconteceu no Reino Unido, é o que acontece por regra quando se leva ao
voto popular medidas propostas pela União, que ou chumbam, ou passam ao
milímetro quando não tem de se repetir referendos até dar o resultado “certo”. A
deslegitimação democrática do processo europeu é a fonte da pressão
referendária.
E
não, senhor Presidente, Portugal não “se sente bem na União Europeia”.
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