sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Não é preciso escrever




Também reparei, e custou-me a entender. Mas não fiquei tão mal impressionada como João Miguel Tavares. Porque, acima de tudo, senti que era um discurso pronunciado por um homem jovem e valente, desejoso de salvar o seu país como quando começou, agora já com mais certezas de que é capaz, porque já passou pela barreira do fogo e conseguiu escapar, e volta a sentir incendiar-se um país que tanto a custo tentara erguer. Não, não se trata de um Vasquinho da Academia, tão bem descrito nos dois fados do filme “Canção de Lisboa” - alegre, folgazão, namoradeiro, brigão, indisciplinado, irreverente, cábula, sentimental, encantador, que acorda um dia, aparentando, todavia, a mesma alegre irresponsabilidade - imagem de marca do estudante universitário português que fez época:
FADO DO ESTUDANTE (também conhecido pelo nome "fado do Vasquinho")
Que negra sina ver-me assim
Que sorte e vil degradante
Ai que saudades eu sinto em mim
Do meu viver de estudante

Nesse fugaz tempo de Amor
Que de um rapaz é o melhor
Era um audaz conquistador das raparigas
De capa ao ar cabeça ao léu
Sem me ralar vivia eu
A vadiar e tudo mais eram cantigas

Nenhuma delas me prendeu
Deixá-las eu era canja
Até ao dia que apareceu
Essa traidora de franja

Sempre a tinir sem um tostão
Batina a abrir por um rasgão
Botas a rir num bengalão e ar descarado
A malandrar com outros tais
Ia  dançar para os arraiais
Para namorar beber, folgar cantar o fado

Recordo agora com saudade
Os calhamaços que eu lia
Os professores da faculdade
E a mesa da anatomia

Invoco em mim recordações
Que não têm fim dessas lições
Frente ao jardim do velho campo de Santana
Aulas que eu dava se eu estudasse
Onde ainda estava nessa classe
A que eu faltava sete dias por semana

O Fado é toda a minha fé
Embala, encanta e inebria
Dá gosto à gente ouvi-lo até
Na radio - telefonia

Quando é cantado e a rigor
Bem afinado e com fulgor
É belo o Fado, ninguém há quem lhe resista
É a canção mais popular, toda a emoção faz-nos vibrar
Eis a razão de ser Doutor e ser Fadista

Fado “Enfim, Doutor”
Senhoras, tão encantadoras Tanta simpatia, quero agradecer Senhores, se tiverem dores Uma pneumonia, trato-os com prazer Lisboa já tem, agora em mim um doutor Para além de sábio, também, sou inventor Lá estou para os ver, para os injectar, para os abrir Para os retalhar, para os coser, sempre a sorrir A minha satisfação, o meu calor e prosápia Estão nesta minha invenção, alegroterápia Curar a valer, não é para mim conseguir E então morrer por morrer, que seja a rir .

Passos Coelho não corresponde à imagem do Vasquinho da Academia, nem sequer também à do estudante de tempos seguintes, tão condenados, - intelectual que desperta para a política contrária à do seu governo, que luta pelos nobres ideais da liberdade e igualdade de oportunidades para todos, e que, nesse objectivo, não se importaria de inverter os papéis - como fez Mao – deixando, para si, obviamentre, os lugares cimeiros. Passos Coelho já foi descrito muita vez como um jovem arrivista – quem o não foi? –  um oportunista que se soube proteger, não pelo estudo, mas pelo encosto, e assim foi singrando. Mas sério, disciplinado, mostrou bem objectivos definidos: salvar o seu país do desastre. Todos conhecemos a evolução, na política de alianças do governo anterior. Arredado do poder, quando lhe pertencia a vitória eleitoral, continua firme, contudo, apesar do que dele dizem de fragilizado e intimidado pelos aparentes êxitos do actual governo, e por isso trapalhão e tartamudo na sequência discursiva da sua oratória, o que é factor de destituição do cargo para uns tantos.
Não penso assim. As frases repetitivas do seu improviso, parecendo estapafúrdias e de contrassenso - Nós levamos a sério a política. Nós levamos a sério o país. Nós levamos a sério as pessoas. E é porque nos preocupamos com elas e com o seu futuro que faremos o que é difícil, que faremos o que é preciso, e esperamos que o que seja preciso e o que é difícil seja menos do que aquilo que nós podemos fazer, porque podemos fazer mais do que aquilo que é difícil, podemos também fazer aquilo que é necessário para que Portugal possa ser, como a Espanha tem vindo a mostrar, como a Irlanda mostrou também, um país em que no futuro todos querem apostar.”- revelam, antes, a emoção e exaltação de quem ama o seu país e o deseja salvar. São frases não de anão mas de gigante, que se propõe fazer mais do que é difícil e mais do que é necessário para que Portugal seja equiparado a outros, na confiança dos povos.
É claro que Passos Coelho teria em mãos uma tarefa gigantesca, num povo apto a exigir mais do que a cumprir, bem industriado para desfeitear e aproveitando facetas irrisórias, como essa dos papelinhos que aponta João Miguel Tavares, para denegrir ou ironizar, ou, como faz Marques Mendes, na sua seriedade respeitável, para aconselhar publicamente e assim sobressair no palco dos que o escutam.
 Sempre gostei dos improvisos de Passos Coelho, expressão de honradez e amor pátrio – além de os achar bem ordenados, com papelinhos ou sem eles – que, sem se importar com os intelectuais – ou menos - que se esforçam por o derrubar, consegue superiorizar-se a esses, numa indiferença que, naturalmente os mortifica. Não, já não estamos no tempo dos «verba volant, scripta manent». Porque os «verba» ficam gravados hoje, tais como os «scripta» ontem. E embora rebuscadas nos trocadilhos, as palavras de Passos Coelho são entendíveis. Não é necessário ser-se tão maliciosamente exigente. É o que nos perde também.

Ó Passos, escreve os discursos!
Público, 16/08/2016
Acreditem ou não — e, de facto, custa a acreditar — isto foi o que Pedro Passos Coelho disse no domingo, na recta final do seu discurso no Pontal: “Nós levamos a sério a política. Nós levamos a sério o país. Nós levamos a sério as pessoas. E é porque nos preocupamos com elas e com o seu futuro que faremos o que é difícil, que faremos o que é preciso, e esperamos que o que seja preciso e o que é difícil seja menos do que aquilo que nós podemos fazer, porque podemos fazer mais do que aquilo que é difícil, podemos também fazer aquilo que é necessário para que Portugal possa ser, como a Espanha tem vindo a mostrar, como a Irlanda mostrou também, um país em que no futuro todos querem apostar.
Não estou a brincar — esta é a transcrição exacta das suas palavras. “Lutaremos por esta visão de Portugal!”, disse ele de seguida. Mas qual visão? Ninguém percebeu nada. Não admira que no final do discurso a plateia tenha ficado hipnotizada a olhar para ele, e o próprio Passos tenha sentido necessidade de gritar “viva Portugal!” duas ou três vezes para que o público percebesse que o discurso tinha acabado e que era simpático dispensar uma pequena salva de palmas, para efeitos televisivos. Admito que metade das pessoas estivesse já a dormir; a outra metade estaria possivelmente a tentar controlar a reacção vagal, após três ou quatro loops acerca do que é difícil, do que é necessário e daquilo que nós podemos fazer.
Ali estava Passos, torrado e cansado, a desmentir-se em directo. “Nós levamos a sério a política”, garantiu ele. Não. Mentira. Se Passos levasse a sério a política, ele escrevia os seus discursos — ou algum dos seus assessores por ele —; trabalhava os textos até ao mais ínfimo pormenor; e, no final, quando já estivesse tudo aprontado e vistoso, lia os discursos em dois bonitos telepontos transparentes, como fazem os políticos profissionais. Cada vez que o vejo subir a um palanque com uns papelinhos na mão — atenção: António Costa faz o mesmo — fico nervoso. Mas o que é aquilo? Improvisos? O jazz aplicado à política? Não, não, senhores que mandam no PSD. Se eu quiser ouvir bons improvisos ponho a tocar John Coltrane. Não quero improvisos de um primeiro-ministro, de um Presidente da República ou de um líder partidário. Improvisos em datas oficiais, seja o 25 de Abril, o 10 de Junho ou a festa do Pontal, não são improvisos — é puro amadorismo.
Não percebo. Juro que não percebo. Nós temos um líder da oposição que foi primeiro-ministro durante quatro duríssimos anos. Como é óbvio, está desgastado. Um terço do país gosta dele. Metade do país não o pode ver. E sobra um sexto do país, que o PSD precisa desesperadamente reconquistar, ou tão depressa não voltará a pôr os pés em São Bento. Esse mesmo PSD está a preparar a rentrée política num ano crucial, em que muitos acham que o governo talvez aguente, mas o país não. E o que faz Passos Coelho? Rabisca uns papelinhos. Precisa de um discurso motivador, empolgante, surpreendente, que anime as plateias e dê alguma esperança ao país. E ele? Rabisca mais uns papelinhos. Marques Mendes, o novo oráculo laranja, tinha acabado de lhe enfiar violentas caneladas na SIC, dizendo que são precisas caras frescas no PSD para que não haja “uma indesejável crise interna”. E Passos, o que faz? Lê os seus papelinhos rabiscados durante trinta horríveis minutos. Assim, de facto, é difícil. E desnecessário. E não se pode fazer. 

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