terça-feira, 2 de agosto de 2016

Buraco negro



Também Álvaro de Campos deu pontapés no equilíbrio gramatical e rítmico, tal como o fez no lirismo convencional que jamais nenhum poeta se atrevera a adulterar em temáticas ultrapassando o belo ou o abstracto da expressão dos sentimentos, segundo o modelo clássico greco-latino. Dessacralização da arte, se chamou a uma nova forma gritante de exprimir os ruídos e as violências do progresso contemporâneo, material, dinâmico, brutal. Retomo um passo da Ode Triunfal, exemplificativo dessa técnica poética interjectiva e alucinante:

…Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!

Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

 E no entanto, Fernando Pessoa não inventou o processo dessa técnica futurista, foi-o buscar, inteligentemente, ao “Manifesto Futurista” do italiano Marinetti, de que transponho um significativo passo da Internet:

« … E o que mais se pode ver, num velho quadro, senão a fatigante contorção do artista que se esforçou
para infringir as insuperáveis barreiras opostas ao desejo de exprimir inteiramente seu sonho?...
Admirar um quadro antigo equivale a despejar nossa sensibilidade numa urna funerária, no lugar de
projetá-la longe, em violentos jatos de criação e de ação.
Vocês querem, pois, desperdiçar todas as suas melhores forças nesta eterna e inútil admiração do
passado, da qual vocês só podem sair fatalmente exaustos, diminuídos e pisados?
Em verdade eu lhes declaro que a frequência diária aos museus, às bibliotecas e às academias
(cemitérios de esforços vãos, calvários de sonhos crucificados, registro de arremessos truncados!...)
é para os artistas tão prejudicial, quanto a tutela prolongada dos pais para certos jovens ébrios de
engenho e de vontade ambiciosa. Para os moribundos, para os enfermos, para os prisioneiros, vá lá:
- o admirável passado é, quiçá, um bálsamo para seus males, visto que para eles o porvir está
trancado... Mas nós não queremos nada com o passado, nós, jovens e fortes futuristas!
E venham, pois, os alegres incendiários de dedos carbonizados! Ei-los! Ei-los!... Vamos! Ateiem
fogo às estantes das bibliotecas!... Desviem o curso dos canais, para inundar os museus!... Oh! a
alegria de ver boiar à deriva, laceradas e desbotadas sobre aquelas águas, as velhas telas gloriosas!...
Empunhem as picaretas, os machados, os martelos e destruam sem piedade as cidades veneradas!
Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em:

As odes futuristas de Álvaro de Campos são, pois, resultado de leituras e experiências alheias, que logo captou e tomou como suas, mais por efeito de leituras sobre o desenvolvimento industrial exterior do que interno, num país decadente, como fez sentir na 3ª parte da sua Mensagem.
O  AO90, na sua hediondez tenebrosa, que nenhum chefe de Estado se propõe eliminar, mau grado as tentativas das pessoas gradas que já demonstraram centenas de vezes o erro da imposição de regras escritas que adulterarão irremediavelmente a fonética da língua, abastardou-a no lamaçal de uma profunda e trafulha ignorância, e desonrou o país dessa língua, como se fossem primitivos de um país de instintos e uivos amacacados, cada vez mais decadente e arruinado, apesar de amostras de evolução em alguns “lances” produtivos actuais.
O texto « AO90, a fórmula do desastre», do professor linguista Fernando Venâncio, alerta para as anomalias dessa ortografia e a mudança, dela resultante, na oralidade, além do caricato tantas vezes paradoxal da respectiva escrita.
Um texto que devia ser fundamental para esclarecer as obtusidades dos tais fazedores do acordo que vão prometendo rever, mas sem compromisso, na cobardia de enfrentar um cenário que irremediavelmente os apouque. Connosco é assim e manda quem pode, não quem sabe. Como já muitos disseram, e o sentimos a cada passo, valemos pouco e o país cada vez menos. Que importância pode ter essa coisa chamada língua num mísero país cuja escrita e pronúncia podemos adaptar… ao calhas?

AO90, a fórmula do desastre
FERNANDO VENÂNCIO 
Público, 01/08/2016
Este Acordo surgiu da ingénua convicção de que a grafia do português europeu era ordenável a nosso bel-prazer. Não é. Mas podem, e devem, atalhar-se desordens maiores. Hoje. Já. Cada dia perdido, o desastre aumenta.

1. Alguma vez um anti-acordista disse sobre o Acordo Ortográfico de 1990 qualquer coisa boa, mesmo boa? Pois aqui vai uma magnífica. O AO90, ao qual se deseja uma rápida e humana morte, terá deixado um precedente deveras valioso. Pela primeira vez no nosso secular debate ortográfico, a Pronúncia é feita critério decisivo da grafia, assim destronando a Etimologia do topo do pódio, invertendo beneficamente a hierarquia. Mas foi mais sorte que esperteza, já que nunca os autores e promotores do Acordo reivindicaram o cometimento. Só que, no momento de ser aplicada a Portugal essa sã primazia da Pronúncia, as coisas correram mal. Já lá iremos.

2. Houve um momento, por 1990, em que fomos colectivamente patetas. Ou, em versão atenuada, deixámos a patetice à solta. Tínhamos tido, é certo, o discernimento de rejeitar sem perdão o Acordo Ortográfico de 1986. Era um produto desconchavado, a pingar óleo por todos os lados, um absurdo de alto requinte. Mandava, pois, a mais singela chispa de inteligência que lembrássemos bem alto, a quem de direito, que nem um só dos artífices da façanha pensasse em propor mais o que quer que fosse. Quem concebera o monstro de 86 jamais seria de confiar. Sabe-se o que aconteceu. Aos mesmos exactos e impreparados senhores foi estendida de novo a passadeira vermelha, só se lhes pedindo, por deferência, que apresentassem qualquer coisinha menos repugnante. Pagámo-lo como se viu.

3. A coisa ortográfica é, hoje, gerida por duas instituições de que não se conhecem mútuos entendimentos: o ILTEC (Instituto de Linguística Teórica e Computacional), encarregado pelo Estado de definir as formas a adoptar, e a ACL (Academia das Ciências de Lisboa), que se declara instância competente para "elaboração e publicação" do Vocabulário Ortográfico do idioma. As suas propostas divergem, às vezes do modo mais arbitrário. Dois exemplos por recente consulta online.
Ambos os institutos admitem as grafias (e pronúncias)  perfeccionismo, perfeccionista,  perfectível, mas só o ILTEC patrocina  perfecionismo, perfecionista,  perfetível. Os dois dão a cara por conceptista, conceptual econceptualizar, os dois negam a variante  concepcional, mas conceptualmente conceptível admitem-se só no ILTEC e conceptivo só na ACL.

4. Não resolvendo nenhum real problema, o Acordo veio agravá-los. Mais alguns exemplos, sempre em estrito cenário europeu. O vocabulário do ILTEC e o da ACL avançam conectar como forma única (excluindo portanto conetar).
 Mas, surpreendentemente, permitem conectividade  e conetividade, conectivo e conetivo, conector conetor.

Não existirá, então, conetar? Os bem informados dicionários online da Priberam e da Porto Editora acham que sim, e neles figuram conectar e conetar.
Para nos orientarmos neste sombrio mundo, tomamos o Dicionário da ACL, organizado por João Malaca Casteleiro (um "dicionário de autor", no fino dizer de Ivo Castro), que fornece pronúncias e se pretende "normalizador", publicado em 2001, com o AO90 já no terreno. Aí achamos, sempre com som k, só conectarconectivoconector.
Agora em movimento contrário, pesquisamos os casos de séptico asséptico. O dicionário de Malaca Casteleiro grafa-os assim, mas só em séptico o p aparece audível. A ACL de hoje apadrinha asséptico assético, mas só inculca séptico. O oficial ILTEC, esse, avaliza todas as grafias (e portanto pronúncias): séptico e asséptico, sético e assético.
Situações destas multiplicam-se por dezenas. E recordemos que o panorama brasileiro (que o leitor português frequenta, mesmo quando só lhe cai sob os olhos) está longe de coincidir com qualquer destes. Que teria feito, pois, gente sensata? Não teria feito nada. Manter-se-ia longe deste vespeiro, e nunca certamente se meteria a esgaravatar nele.
Tudo isso se fez invocando uma "pronúncia culta", outra novidade conceptual do AO90, não decerto disparatada, mas de aplicação factualmente leviana. A simples realidade é esta: o sistema português das consoantes etimológicas encontra-se, desde há séculos, em profunda instabilidade, digamos tudo, em estado caótico, e não se lhe vislumbra melhoria. Podemos lamentá-lo, podemos tentar abrir aqui e ali corta-fogos, mas a instabilidade veio para ficar. E que fez este AO? Tirou-nos duma situação em si suportável, e introduziu-nos, sem ganho nenhum, num emaranhado de perplexidades.

5. A indecisão da nossa pronúncia não pára no articular de consoantes. As vogais, também elas, e sobretudo o a, podem comportar-se caoticamente. Veja-se o caso da primeira vogal do prefixo para- no vocabulário do ILTEC. É aberta em para-brisas, para-choques, para-raios, para-sol, mas fechada (e repare-se na grafia) em paraquedas. O fechamento em paramédico ou paranormal, podendo explicar-se, continua da ordem do especioso.
Também as vogais que precedem consoantes etimológicas vêm sendo historicamente afectadas. De modo lento, decerto pontual, mas irreversível, mostram um processo de fechamento (de elevação, dizem os linguistas), também ele de tipo caótico. Pronunciamos àtor, mas  âtuar  e crescentemente âtriz.
Dizemos  olfáto mas olfâtivoexáto mas exâtidão. O próprio dicionário de Malaca Casteleiro ensina as pronúncias àção  e  àcionamento, mas âcionado,  âcionar,  âcionista.
Mas há mais extraordinário ainda. Mesmo quando articulamos a consoante, a vogal precedente pode, contra toda a expectativa, fechar-se. Assim, a nossa pronúncia "culta" pede (são meros   exemplos) lácteo mas lâcticínio, capturar càptura  mas  captar,  bactéria  (ou já  bâctéria?) mas bâcteriano,  facto  mas fâctual. É, de novo, o caos em todo o esplendor. Pois bem, num raro pronunciamento público, os fabricadores do AO mostram-se aqui triunfantes. "Estão a ver? As consoantes não fazem serviço nenhum". É uma elaborada forma de cinismo. Em vez de reconhecerem que em sistemas caóticos, ou não se interfere, ou se o faz com tino, apenas esfregam sal na ferida, numa satisfação alarve.

6. Como se tudo isto não bastasse, a aplicação do AO entrou numa dinâmica perversa. Mal informados, desorientados, os utentes refugiam-se no excesso de zelo, cortando consoantes a torto e a direito, em patéticas violações do Acordo em nome do próprio Acordo. De dezenas de casos documentáveis, citem-se atidão,  cócix,  helicótero, núcias, oção, óvio, rétil, sução, tenológico. Nem faltam as soluções invencivelmente criativas como "os fatos consumados", "em idade proveta", "travagem abruta", "pato com o diabo" (em reedição de Saramago), "catação de investimento",  "o entusiasmo elipsou-se", "a mulher latente"

E que fazem os procriadores do Acordo? Encolhem os ombros, sorriem distantes, não é com eles. Há-de passar. Hipercorrecções sempre as houve e haverá. Tirando isso o Acordo é um sucesso. Não lhes ouvimos um público e curial "Não foi isto o que quisemos!", como se até isso os humilhasse.

7. Ao fim de anos e anos de queixas, denúncias, ataques, implorações, os inventores do AO continuam, pois, a festejá-lo. Nunca, porém, a protegê-lo. A sério: jamais se viu defenderem materialmente o seu produto. Não existe um simples artigo em que o AO90 veja defendidas as suas concretas opções, esclarecidas naturais dúvidas, expostas vantagens. Em horas de aperto, vêm promessas de não se negar uma revisãozinha, não senhor, mas só com todas as ratificações no bolso. É a mais transparente das chantagens. Se o empenho numa revisão deveras existisse, o racional seria oferecê-la desde já em troca das ratificações em falta. Mas a questão não se lhes põe sequer. Os guardiães do AO sabem que a mais ténue fresta conduziria à implosão do edifício. Chamem-lhes parvos.

8. Hoje, e de há muito, a eficaz resistência ao Acordo é devedora a autores, a tradutores, a jornalistas e, sim, também a editores. É devedora a ensaístas como António Emiliano (O fim da ortografia, 2008) e Francisco Miguel Valada (Demanda, deriva, desastre, 2009), mais o saudoso Vasco Graça Moura, que puseram em crua luz os abismos de absurdo a que, em matéria de economia linguística, este AO conduzirá. É devedora a professores, gente na primeira linha de fogo, e a muitos, muitos cidadãos. É devedora a activistas na rede como o tradutor João Roque Dias e o colectivo "Tradutores contra o Acordo Ortográfico", que vêm cartografando desmandos, incongruências, arbitrariedades. É devedora ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, que, mesmo acordizante, se fez repositório de quanto sobre o AO se publica. 

Este Acordo surgiu da ingénua convicção de que a grafia do português europeu era ordenável a nosso bel-prazer. Não é. Mas podem, e devem, atalhar-se desordens maiores. Hoje. Já. Cada dia perdido, o desastre aumenta.

Professor e linguista
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