sexta-feira, 22 de julho de 2016

Parece que foi ontem



Não, não vivemos mais ao ritmo do tempo elíptico e sem história que lemos em Eça, no final d’Os Maias  «E esse ano passou. Gente nasceu, gente morreu. Searas amadureceram, arvoredos murcharam. Outros anos passaram.», embora seja verdadeiro e bonito de se ler, na sequência dos seus paralelismos e contrastes, deixando antever que das pessoas felizes não reza a história ou que essas pessoas não contam, pois se trata de ficção.
Mas as pessoas reais também não contam, embora deixando marcas na convulsão dos dias. É o que mostra este artigo de Pedro Jordão, que nos traz lembranças aparentemente recentes, no mistério deste galgar do tempo tão próximo, e já soterrado nos escombros das violências que desses factos narrados foram consequência, e que estamos vivendo hoje, sem adivinharmos ainda os percursos que esta vertigem temporal nos vai trazer a seguir. Vivemos tudo isso que ele nos conta, lembramos a “primavera árabe”, o “imolado pelo fogo” e as suas consequências no desencadear do terrorismo, temos presente ainda a macacada da tenda onde Khadafi e os seus dormiam, em Oeiras, perto do forte de S. Julião, mas tudo isso são nadas que passaram, das caricaturas trágicas da vida. Pedro Jordão mostra no seu artigo as consequências da intervenção do Ocidente no Oriente petrolífero, a destruição de países e culturas, a criação do Estado Islâmico  aterrador, uma Europa a ser penetrada por gente que foge alucinada, e por gente que a quer em frangalhos. Uma lição para rever, enquanto por aqui andamos. No terror do amanhã para os nossos.
Primavera Árabe – o romantismo e o horror
Pedro Jordão
Público, 11/07/2016


Parece óbvio que devemos contribuir para a erradicação de regimes totalitários. É uma sensação romântica e generosa, porque acreditamos que o fim desses regimes traz inerentemente a paz, os direitos humanos, a liberdade. Mas o que devemos concluir se, derrubando tais regimes, abrirmos as portas a regimes muito mais opressores, mais sanguinários? Nesse caso contribuímos para um maior sofrimento dos povos. É esse o caso da Primavera Árabe. Do romantismo inicial da libertação passou-se a resultados que são de puro horror. E o Ocidente pode ter sido, designadamente nos casos da Síria e da Líbia, profundamente irresponsável.
Os regimes árabes sempre foram predominantemente autoritários. É algo quase estrutural em sociedades pulverizadas por fidelidades e ódios tribais que é difícil compatibilizar num mesmo país. No final de 2010, um vendedor de rua tunisino imolou-se pelo fogo, em protesto contra as arbitrariedades do estado, a falta de oportunidades e a falta de respeito por direitos humanos básicos. O que distinguiu aquele caso foi a rápida disseminação do drama pessoal através das omnipresentes redes sociais, gerando uma crescente adesão popular ao protesto, que em semanas alastrou a outros países do Norte de África e do Médio Oriente. Esta foi a fase romântica e nobre deste processo.
Rapidamente, regimes autocratas como os da Tunísia e do Egipto foram derrubados. Como em muitas situações no mundo, mudar pode ser fácil. Mas mudar apenas é sensato se se muda para melhor. Com a excepção da Tunísia, as novas realidades tornaram-se, afinal, muitíssimo mais brutais do que as anteriores. Egipto, Síria, Iraque e Iémen são disso exemplo. Vejamos os novos horrores que ajudámos a semear nos 5 anos do curso da “Primavera” Árabe.
Poucos meses após o início da contestação popular, o Ocidente “decidiu” que o presidente sírio, o médico oftalmologista que exerceu em Londres, Bashar al-Assad, teria que ser derrubado. O regime era duro e autocrata, mas as alternativas imediatas seriam muito piores, como escrevi nessa altura, tal como o referi sobre a Líbia. Foi o apoio ocidental que viabilizou rebeldes que destruíram o país e o futuro dos sírios. Vejamos o resultado desta pouco inteligente obstinação ocidental.
Na Síria alimentámos uma brutal guerra civil. Em consequência, morreram 400 mil pessoas. Mais de 11 milhões de sírios tiveram que abandonar as suas casas, incluindo mais de 4 milhões que abandonaram o país. Cerca de 10% destes procuraram fixar-se na Europa, gerando parte do problema europeu dos refugiados e dos milhares que morreram afogados no Mediterrâneo. Mais de 13 milhões de pessoas carecem de apoio humanitário na Síria, incluindo 400 mil em locais onde essa ajuda não consegue chegar. O país, que era um dos mais desenvolvidos e modernos da região, está em ruínas. Metade das cidades está arrasada. Antiguidades deslumbrantes, e para sempre insubstituíveis na herança da Humanidade, foram destruídas. Dois anos após o início desta guerra civil síria foi aí formado o “Estado Islâmico”, cujo legado conhecemos nos atentados em todo o mundo, na decapitação massiva de seres humanos, na queima de pessoas regadas com gasolina dentro de jaulas em frente de público. Os mesmos repetem estes horrores no Iraque, onde a população Yazidi é sujeita a um genocídio. Mulheres não islâmicas são raptadas para serem violadas porque os islamitas acreditam que assim as tornam muçulmanas. Populações femininas de povoações inteiras foram escravizadas e vendidas como escravas sexuais. Apesar do totalitarismo de Assad todo este cenário é brutalmente pior. A “Primavera” de que acabámos por ser co-autores tornou-se num horror que marcará gerações de sírios.
Sou, desde sempre, um apoiante da NATO, mas considero uma aberração que esta tenha operado militarmente na Líbia para derrubar Khadafi. Este, um personagem repugnante, foi, no passado, um motor do terrorismo internacional até que os americanos bombardearam a Líbia. A partir desse momento, Khadafi tornou-se progressivamente num dos principais aliados muçulmanos na luta ocidental contra o terrorismo e o radicalismo islâmico. Khadafi tornou-se num aliado da NATO. Foi recebido e visitado por chefes de estado e governantes europeus de primeira linha. Mas, subitamente, ele é atacado, sem convincente justificação. Por que motivo um dos seus aliados europeus, o presidente francês Sarkozy, pareceu tão empenhado em derrubá-lo? Este foi um outro grande erro do Ocidente. Khadafi desapareceu mas no lugar da Líbia aliada na luta antiterrorista agora temos um país controlado por terroristas e bárbaros islamitas, distribuídos por 500 milícias registadas num país sem lei, uma anarquia total para onde o Estado Islâmico pode vir a transferir a sua “capital” e em cujas praias mediterrânicas se fazem massivas decapitações.
Dificilmente se vislumbra uma “primavera” nesta convulsão brutal. A maioria dos países em causa encontra-se em situações perante as quais, em comparação, os autoritários regimes anteriores pareceriam um quase paraíso.

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