terça-feira, 5 de julho de 2016

O nosso “fúlgido e rubro ruído contemporâneo”



«Tratar o destino com os pés» é o título da crónica de Alberto Gonçalves, como sempre dura e profunda, na sua tentativa de melhor penetrar a espessura dos nossos espíritos mais versados no estrondo da matéria física, visível e audível, donde se segue que o futebol esteja na berra, para nós, desde sempre, e mais agora, em que o vil metal tilinta em força e as rivalidades e sabedorias clubísticas se desfazem em ironias recíprocas de trejeitos igualmente estridentes, que o audiovisual protege e estimula, de modo desafiante. Também as figuras do Bloco da Esquerda se aproveitam da época marulhante para estimular o mesmo audiovisual e os elementos governativos a quem estão ligados, com as propostas altissonantes da sua saloia ambição que, essa sim, terá efeito penetrante na fibra da nossa espessura mental. São os temas da crónica de Alberto Gonçalves.
Mas estou a ouvir o noticiário, e por entre as explosões assassinas dispersas pelo mundo, de que se fala nos noticiários, ouço, abismada, a notícia de que o  candidato do Partido da Independência do Reino Unido desde 2010, Nigel Farage, apresentou a sua demissão do cargo, Pilatos lavando as suas mãos, depois de ter conduzido o seu UKIP à vitória do BREXIT, ou Quixote enganado na questão da Dulcineia, estatelado ao comprido (por moto próprio), depois da luta contra os moinhos de vento.
Entre os aspectos positivos de que tratam hoje os noticiários – como exemplo, a próxima entrada de uma sonda espacial da NASA – Juno – na atmosfera de Júpiter, para pesquisas específicas que produzirão novos conceitos – (e entre nós a notícia da participação na construção de um avião militar, o que atesta o desenvolvimento da nossa indústria aeroespacial - que criou outrora uma Passarola e mais tarde realizou a primeira travessia aérea do Atlântico Sul) – e os cenários negativos em maioria, onde sobressaem os actos de terrorismo e os abusos vários de ordem social, económica ou política, como nos habituámos a  observar – na vastidão desses cenários, pois, chocou-me, sobremaneira, a atitude desse Pilatos britânico que semeou os ventos e cautelosamente se esquiva a enfrentar as tempestades. Parece-me desprezível a sua atitude. Se fosse por cá, creio que lhe cairia em cima pelo menos o Carmo, a pusilanimidade a que somos atreitos poupando talvez a igreja da Trindade. É certo que nunca as coisas se passariam entre nós de igual modo, nunca repeliríamos um cargo governativo, tão afeiçoados que somos ao poder que preferimos mesmo extorqui-lo, quando não nos cabe em sorte. Mas parece-me cobarde - ou tão só pedante - esta atitude de Nigel Farage, talvez inspirado na peça de Óscar Wilde – Um Marido Ideal – de um herói pretendendo renunciar à carreira política para manter a aparência de impecabilidade moral. Que os súbditos britânicos têm imensos exemplos literários a aconselhá-los dignamente. Não é como nós que só temos o Júlio Dinis ou os simpáticos trechos de João de Deus a conduzir-nos pela vereda da virtude.

Tratar o destino com os pés
Alberto Gonçalves
DN, 3/7/16
Até agora, vi a maioria dos jogos da dita selecção nacional no campeonato em curso. Ao estilo (digamos) apresentado, os comentadores chamam "jogo de paciência". Se se referem à paciência necessária para o espectador aturar aquilo, acertam em cheio: o próprio Job tentaria cortar os pulsos após vinte ou trinta minutos de futebol tão lento e destrambelhado. Embora os jogadores me pareçam fracotes, e o "melhor do mundo" fora de forma, fica a impressão de que, entretida a reformular penteados ou a estreitar laços com a "diáspora", a equipa não treinou nada, excepto a estratégia para adormecer adversários ainda menos dotados (os quais são prévia e constantemente considerados prodigiosos de modo a alimentar o patriotismo). Não tem corrido mal: Portugal não perdeu um jogo. Acontece que também não ganhou nenhum, apenas seguindo em frente graças às sucessivas atenuantes nos regulamentos da bola, da "repescagem" aos "penáltis", passando pelo "prolongamento". É isto um drama? Nem por sombras. Como se diz no jargão, é futebol, e o futebol, apesar da histeria alusiva, é uma suprema irrelevância.
Dramáticas, ou, vá lá, relevantes, são as legitimações subjacentes. Em embaraçosas conferências de imprensa, futebolistas e treinador juram que o essencial é vencer de qualquer forma, mesmo, presumo, que esta inclua o desempate por moeda ao ar, o suborno ou o tiroteio nos balneários. Nas televisões, "especialistas" subscrevem o método. Nas tribunas, as excelências que alegadamente nos governam e representam (mas que de facto vivem em estádios franceses) aplaudem-no. Nas ruas, o povo entra em júbilo frenético a cada eliminatória humilhante. "Somos os maiores", berra-se sem ironia.
No futebol, talvez se conquistem glórias sem mérito. Na vida real, não é tão provável. Para desgraça de todos nós, somos propensos a estender à vida real a jovialidade com que se troca trabalho, rigor e exigência pela hipótese de um triunfo inútil e, fora dos relvados, imaginário. Queremos bons salários sem produtividade, prosperidade sem esforço, riqueza com dinheiro alemão. Queremos, em suma, as vantagens; dispensamos os aborrecimentos intermédios e necessários. Para não recuar muito, eis a história da recente "austeridade": sem nunca se perceber o respectivo significado, começou por celebrar-se os governos que a tornaram inevitável, abominou-se o governo que a aplicou e voltou a festejar-se a nomenclatura de borlistas que fingiu exterminá-la por decreto, quando o extermínio em causa será na verdade o do país enquanto nação residualmente remediada e soberana. No futebol, cantando e rindo e mancando e aproveitando artimanhas, pode chegar-se à final. No mundo que importa, chega-se ao fim. Não admira que o dr. Costa e o prof. Marcelo se empenhem em não se distinguir dos iludidos adeptos comuns: a ilusão é o ofício deles. Aceitá-la é o nosso.
Na quinta-feira, imediatamente antes do penálti decisivo, o locutor da RTP afirmava, com típica inconsciência, que o sr. Quaresma tinha "o destino de um país nos pés". O destino não tardou a levar um chuto. Portugal. Portugal. Portugal. Pobre Portugal.
Domingo, 26 de Junho
Convenções
Acho interessantíssimo que o Bloco de Esquerda agite as bandeiras do arco-íris e do combate à violência doméstica e, na sua convenção, aplauda de pé (cito os jornais) um Movimento pelos Direitos do Povo Palestino. Não comento o tratamento dispensado pelo "povo palestino" a homossexuais e mulheres. Limito-me a sugerir que, em convenções futuras, o BE organize um churrasco de vitela para criticar as touradas e proteste aos tiros o acesso de civis a armas de fogo.
Porém, o grande momento da pândega "bloquista" foi a ameaça de referendarmos a "Europa" caso esta nos castigue por causa do défice. Para facilidade de conversa, admita-se que a dona Catarina fala pelo governo (o que não é uma hipótese absurda), que o governo possui a última palavra em matérias assim (desde que seja para o lado "correcto", a sagrada Constituição aldraba-se sem problemas) e que o presidente da República permitiria a brincadeira (depois da dança étnica e dos comentários da bola, o prof. Marcelo já provou ser um brincalhão). Ultrapassadas estas irrelevâncias, qual seria o impacto de uma chantagem que no fundo consiste em informar o credor que não se volta a pedir-lhe dinheiro? Qual é a parte do desastre grego que a dona Catarina não percebeu? Como se imagina, Angela Merkel não voltaria a dormir descansada - de tanto rir. Até o PCP se riu.
E eu sinto-me ridículo só de escrever a propósito. Afinal, é esse o mérito (digamos) do BE: pôr as pessoas a discutir "ideias" que antigamente não se toleravam a crianças com mais de 7 anos. Ouvir o bando é o mesmo que promover um seminário sobre física de partículas moderado por Isabel Alçada e realizado na sala de actividades da creche. É gente que diz o que sabe e não sabe o que diz. Enquanto terapia de grupo, parece-me excelente. Enquanto outra coisa qualquer, parece-me uma tristeza pegada.
É triste o jornalismo que leva aquilo a sério e são tristes os eleitores que levam aquilo a sério. E é tristíssimo um governo que por desmesurado oportunismo e desmesurada irresponsabilidade obedece a uma anedota imberbe a que apenas por convenção se pode chamar partido.

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