sábado, 30 de julho de 2016

«Não havia necessidade»



Já todos os nobres da escrita expeliram a sua saturação pela abjecta maneira de “patrioteirar”, “patriotar “ ou simplesmente “espatriar” - que qualquer dessas formas serviria para “espremer” o que nos vai na alma amante dos êxitos pátrios, no eterno complexo da nossa mediania, que nos faz exprimir em exaltação e ruído boçais qualquer fuga casual à tal platitude existencial, pretendendo assim demonstrar que também somos alguém, num mundo amplo de realizações e de fugacidade. Os media, que deveriam ser mais moderados, têm culpa, no exibicionismo que possibilitam desse espírito de vanglória vaidoso e pueril, responsáveis que são na educação das massas, e preferindo, pelo contrário, exibir semelhante exaltação insensata e piegas. O  caso do ruído em torno do rapazinho vitorioso consolador espontâneo do jovem francês derrotado – (nítida evocação do episódio com o “pequeno lorde” justificando ingenuamente a sua corrida vitoriosa ao amigo mais alto, perdedor) -  caso chamariz de publicidade turística perversa, pela quebra do efeito destruidor da espontaneidade infantil – constitui pequena amostra desse nosso exibicionismo patrioteiro imoderado a que todas as forças dos comandos da pátria se uniram sem pejo. Alberto Gonçalves é um dos que protesta, de forma exemplar. Não poderia perdê-lo, embora já com atraso. Mas retratos destes são imortais, vão sempre a tempo, embora sem resultado de maior. A que se junta o da desculpabilização do terrorismo, não pela mesma camada patrioteira, afinal inócua, mas pela camada mais perigosa dos generosos amantes e defensores desses terroristas, como seres idealistas, sofredores dos muitos atentados da vida e merecendo, por isso, o acolhimento dos povos mais bem instalados nela.

Quem não chora não é patriota
Alberto Gonçalves
DN, 17/7/16
O vídeo tornou-se viral ou, em língua decente, passou tantas vezes que apetece rachar o televisor a meio: após a final do Euro, uma criança com a camisola da selecção portuguesa consola um adepto da selecção francesa em lágrimas, o adepto aceita o consolo e abraça a criança, toda a gente fica comovidíssima. E o Turismo de Portugal, que poderia ter encenado o momento, convida o adepto choroso a visitar o país, de modo a conhecer a nossa hospitalidade e a nossa tolerância. De seguida, toda a gente volta a insultar os franceses, esses arrogantes e esses bandalhos. Absurdo? Ainda não viram nada. Excepto quem, por viver neste lugar hospitaleiro e tolerante, já viu tudo.
Por mim, já vi uma autarquia dar tolerância de ponto para que os funcionários aplaudissem futebolistas. Já vi - ou ouvi repórteres descreverem jovialmente - médicos e enfermeiros que abandonaram hospitais para aplaudir futebolistas. Já vi o Palácio de Belém dedicado à pândega enquanto, ali pertinho, três militares acabavam de morrer em serviço. Já vi um presidente católico confessar que maçou Nossa Senhora de Fátima para interferir em resultados desportivos e prejudicar terceiros. Já vi governantes e criaturas assim pequeninas esgadanharem-se para obter a melhor selfie com Cristiano Ronaldo. Já vi um alegado ministro das Finanças comparecer a reuniões em Bruxelas com um sorriso atarantado e o cachecol da selecção. E já vi o povo, ou a parte do povo que pode escolher entre o trabalho e a folia, celebrar nas ruas exactamente ao mesmo tempo em que na Europa, na exacta Europa que Portugal acabara de conquistar na metáfora desportiva, uns senhores decidiam o que fazer com um país que, fora das metáforas, é aparentemente inviável.
Dimensões distintas? Sim, como as paralelas que só se encontram no infinito. Felizmente, os grandes poetas conseguem converter o infinito à escala humana. E os poetas minúsculos conseguem "explicar" que "a nossa selecção venceu também por outra Europa, uma Europa de iguais, sem ameaças nem sanções". É escusado dizer que as palavras pertencem a Manuel Alegre, lírico oficial do pontapé na bola, para quem, pelos vistos, o golo de Éder e a estratégia de Fernando Santos provam que merecemos viver irresponsavelmente e à custa dos alemães. Aliás, Alegre confessa que chorou na final, à semelhança de "milhões de portugueses que teimam em ser patriotas". Todos juntos, agora: e quem não chora não é patriota.
A acreditar nas reações indígenas às eventuais sanções, patriotismo não nos falta. O que nos falta é juízo. Não vale a pena descer aos pormenores técnicos do que está em jogo (guardem os cachecóis, que este é um jogo diferente): o detalhe é aborrecido, embora muito menos aborrecido do que as suas consequências. Em descarado resumo, sucede que, para continuar a sustentar-nos, a Europa impõe-nos um valor máximo para o desvario, perdão, o défice. O governo anterior, que graças a umas habilidades discutíveis fora capaz de alguns progressos, graças a habilidades indiscutíveis e ao desejo de ganhar eleições descuidou o orçamento de 2015. Por isso é que, quando não culpa a prepotência de Bruxelas pelas sanções, o governo actual culpa o PSD e o CDS. O governo actual só não culpa a despesa pública em geral, que de resto pretende aumentar até ao limite da sobrevivência política do dr. Costa ou da economia nacional, de acordo com o que falecer primeiro. É a história do sujeito que lamenta as pessoas que atiram cigarros acesos, acusa os tipos que não limpam as propriedades e critica a actuação dos bombeiros - e em simultâneo rega o matagal com gasolina. Bruxelas assusta-se com tamanha irreverência. Principalmente se praticada com a mão estendida, a irreverência é assim assustadora.
Para continuar a existir, o dr. Costa tem de satisfazer as clientelas do seu partido e as clientelas dos partidos que mandam nele. A cavalo do PS, o BE e o PCP regulamentam os costumes, ocupam o Estado, afugentam o investimento e estrafegam o que sobra das débeis contas. O problema português não são as sanções, afinal um sintoma de que alguém se preocupa com o rumo disto. Nem o sr. Schäuble. Nem Bruxelas. O problema a sério virá no dia em que a Europa se canse de corrigir incorrigíveis e nos deixe a passear soberania sozinhos, sem sanções, sem ameaças, sem vigilância, sem empréstimos e sem um lugar onde cair mortos. Aí, bons patriotas, choraremos com razão. E não haverá uma criança a confortar-nos, mesmo contando com Manuel Alegre.
Sexta-feira, 15 de Julho
Enquanto o terror ainda é notícia
Vale a pena ouvir as platitudes genéricas e às vezes perigosas que os estadistas, nacionais e internacionais, produzem após cada chacina do terrorismo islâmico? Vale a pena simpatizar com os ingénuos que declaram em francês ser o que calha e fazem um "gosto" às propostas de vigílias e compreensão e harmonia universal? Vale a pena discutir com os canalhas que arranjam sempre "causas" e "justificações" e "motivações" e "contextos" para a mera vontade de matar? Vale a pena tolerar a lengalenga sobre um islão tão moderado que só se dá por ele na hora de lamentar as vítimas e nunca na hora de evitá-las? Vale a pena alguma coisa? Só isto: perceber que estamos a perder voluntariamente uma guerra travada no curto prazo pela violência e no longo prazo pela demografia. Em qualquer dos casos, trata-se de sangue, e o nosso, pelos vistos, vale pouco.

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