segunda-feira, 30 de maio de 2016

Estranha sanha



Nos meus tempos do liceu, chegávamos a casa esfomeadas, a minha irmã e eu e devorávamos a sopa e os guisados ou o peixe frito tão saborosos que a nossa mãe cozinhava. O nosso pai já tinha almoçado, mas esperava religiosamente por nós, para contarmos da escola, antes de ir “passar pelas brasas”, dez minutos que fossem, antes de partir para o “serviço”. Não me lembro de críticas aos professores, para ele os professores eram “sagrados”, reconhecia-lhes a importância numa sociedade que o estudo ajuda a elevar. E não foram todos tão bons, os meus professores, mas cada um dava o seu contributo para a nossa formação e alguns preservo na memória e no respeito. Neles e nos livros e nos meus pais aprendi a ser. Não o supra sumo, mas alguém com valores, como somos todos, neste processar de uma marcha de repetição e renovação contínuas, átomo que ocupa o seu espaço e deu origem a outros átomos renovadores. Tudo tão simples, afinal, de entender, na voracidade dos mundos, em que nada somos e somos tudo, revendo-nos nos versos de Reinaldo Ferreira, até mesmo aqueles que parecem nada querer da vida mas o afirmam e se afirmam ao dizê-lo: Mínimo sou, / Mas quando ao Nada empresto / A minha elementar realidade, / O Nada é só o resto.
O nosso mundo português deu um trambolhão, é certo, e mesmo no ensino, e mesmo na educação, que as teorias libertadoras ajudaram a complicar, dificultando o trabalho dos professores, não apoiados pela disciplina anterior – a qual não foi toda tão severa como se quer fazer crer, para justificar o radicalismo das mudanças, que não corresponderam a uma efectiva responsabilização, mas antes ao ruído e ao caos.  Por isso os professores merecem mais do que nunca  respeito e apoio, julgo, dadas as condições deprimentes  de um ensino degradado na disparidade das suas muitas frentes de trabalho e competências. Por isso não compreendi o azedume de Alberto Gonçalves neste seu artigo «A escola do crime».
Mas talvez seja esse o motivo. O facto de não ter filhos nem vocação para os ter que produziu um tão dilacerante grito de ódio. Por tudo e por todos. Como gosto da sagacidade crítica com que geralmente descodifica os motivos e as contradições que movem os cordelinhos da política, senti pena por este texto de escândalo imprudente para si próprio. Tão superior se julga que não aceita as fraquezas alheias? Mas também isso é fraqueza. Quanto à questão dos colégios, são contos largos, que, se não justificam as piscinas com os apoios do Estado, em termos ideais poderão significar uma maior ordem e disciplina para os pais que as desejam, e nos seus impostos contribuem para estabelecer esses contratos de apoio estatal.
Também nisso, o meu pai era a favor do ensino público, mais rigoroso na aferição das capacidades, os colégios não tão rigorosos nessa aferição, porque acima de tudo lhes importava o dinheiro dos pais. Embora isso sejam águas passadas, os colégios, sem apoio estatal, eram só para quem os podia pagar, o que não traduzia, como agora se pretende, necessariamente um mérito de excelência.
A escola do crime
Por falta de vocação, não tenho filhos. Se tivesse filhos, gostaria que estudassem em países menos carnavalescos. Se tivesse filhos e não tivesse meios para pô-los lá fora, em princípio ensinava-os em casa. Se não tivesse vagar para ensiná-los, se calhar deixava-os à solta, ranhosos e ilegais, que quase tudo é preferível a submeter crianças à aquisição de "valências" e à lavagem cerebral que aqui passa frequentemente por ensino público - aliás o único que conheço, da primeira classe à tese de licenciatura.
Resultado? Descontada a esforçada dona Julieta da "primária" e talvez meia dúzia de docentes do liceu, nenhum professor me "transmitiu" grande coisa, excepto a impressão de que por ali não ia longe, ou a importância do autodidactismo. E agora é de certeza pior: principalmente na área das "humanidades" (nas ciências "duras" os charlatães penetram com maior dificuldade, pelo que certos bioquímicos se mudam para a política), um mocinho é capaz de concluir a "secundária" convencido de que Mia Couto é um escritor, de que a globalização é responsável pela pobreza na Terra e de que os graffiti são uma expressão artística.
Há alternativas? Há o ensino particular propriamente dito, presumivelmente mais competente e mais caro. E há as escolas privadas com "contratos de associação". Ou havia, até ao momento em que o senhor ministro do ramo descobriu uma piscina olímpica num colégio na Vila da Feira e resolveu acabar com a brincadeira. Num instante, hordas de indivíduos apaixonados pelo ensino público e que inscrevem a descendência no privado levantaram-se para aplaudir. De seguida, a título de verdades incontestáveis, desataram a repetir uma série de incontestáveis aldrabices: ao financiar as escolas privadas com "contratos de associação", o Estado prejudica as escolas públicas; as escolas privadas com "contratos de associação" ficam caríssimas ao contribuinte por comparação com o ensino gratuito; as escolas privadas com "contratos de associação" exibem sinais exteriores de riqueza, ao passo que as escolas públicas se limitam ao essencial; as escolas privadas com "contratos de associação" são para ricos e egoístas em geral, enquanto as escolas públicas são para os pobres e as pessoas com consciência social; ao contrário da iniciativa privada, cega pela vertigem do lucro, o Estado vela pelo bem comum; etc.
Uma pessoa ouve estas erudições e pergunta-se se os respectivos autores as cometem por idiotia terminal ou má-fé. Na primeira hipótese, convinha averiguar qual o tipo de ensino que frequentaram, de maneira a encerrá-lo com urgência. Na segunda, convinha determinar clinicamente o perigo de semelhantes sociopatas para a comunidade. Em qualquer dos casos, até dói ter de lembrar duas ou três evidências.
Desde logo, o ensino gratuito custa um dinheirão, pago à força pelo contribuinte, que não só não consegue decidir o destino dos seus impostos como, de brinde, está proibido de decidir o destino da sua prole (o "quem quer que pague" é de facto o "paga quem não quer"). Depois, abundam por aí provas de que, para o Estado, o gasto por aluno nas escolas privadas em causa é inferior ao de um aluno nas escolas públicas. Do mesmo modo, o luxo repugnante do colégio que "atraiu a atenção" do intrépido ministro traduz-se na qualidade das instalações (salas de informática e multimédia, laboratórios, campo de squash e a tal piscina), construídas ao longo de 25 anos mediante financiamentos similares aos de um liceu comum - a atenção de governantes sem distúrbios hormonais teria sido atraída pelos sinais exteriores de desleixo dos estabelecimentos estatais: onde foram parar as verbas? De resto, se somadas, as despesas com os "contratos de associação" arrancam decisivos 0,11% do orçamento do ME. Por fim, a ideia de um Estado quimicamente puro, imune a grupos de pressão, chantagem e cobiça, não merece comentários.
No fundo, a questão deveria ser simples. Se cabe ao Estado alguma intervenção no assunto - matéria também discutível - será a de facilitar a escolha das famílias, aquelas que não conseguem chegar às escolas desejadas sem ajuda. É absurdo, além de dispendioso, que se patrocinem escolas privadas e públicas em vez de se patrocinar os cidadãos. Sucede que a preocupação dos devotos da escola pública não é, obviamente, o dinheiro. Nem a educação das criancinhas. Nem a justiça, a igualdade, a moral e demais conceitos assim impecáveis.
Materialmente, há que consagrar o poder dos sindicatos no ensino, que há muito se sobrepõe à tutela e hoje dispensa-a por completo. Ideologicamente, é importante controlar a ascensão social, e domesticar as almas de modo a subjugá-las às demências vigentes. Sobretudo importa arrasar qualquer vestígio de respeito pela liberdade alheia, e mostrar quem manda. Nisto, manda um "professor" com estágio no despotismo e carreira no ressentimento. Em sectores diferentes do país inteiro, mandam ou candidatam-se a mandar tiranetes diferentes, todos juntinhos num projecto totalitário que o Dr. Costa acha "claro, coerente e estável". E o pior é que tem razão. O melhor é que não tenho filhos: o crime em curso não carece de novas vítimas.

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