terça-feira, 19 de abril de 2016

Paninhos quentes



Estávamos bem no meio de lucubrações pessimistas, a minha irmã chegando mesmo a lembrar que qualquer dia, como já poderíamos partir de armas e bagagens para outro planeta, não nos devíamos preocupar tanto, o que me deixou toda arrepiada, a lançar para os idos de S. Nunca tal hipótese de mudança. Mas com frieza ela ainda acrescentou: -Oxalá seja num planeta onde seja possível viver sem dinheiro.
Estas coisas desestabilizam-me, pois ainda não desisti da minha ambição de ser agraciada com largo maná de euros em notas daquelas que nunca vi e protestei arduamente ante a hipótese de deixar este paraíso azul, com mosquitos penosos, é certo, e ruídos vários, mas nosso. Mudar de planeta? E sem dinheiro? Que prazer haveria na vida? Retornar ao Éden? Que sensaboria! Até me lembrei da Ilha Ogígia onde Ulisses gastou dez anos de imortalidade apática junto da divina Calipso e cujo regresso a Ítaca e à Penélope Eça descreve, no final do seu conto “A Perfeição”:

Depois de arrumadas e ligadas sob o largo banco as alfaias preciosas, o impaciente Herói, arrebatando o machado, cortou a corda que prendia a jangada ao tronco dum roble, e saltou para o alto bordo que a espuma envolvia. Mas então recordou que nem beijara a generosa e ilustre Calipso! Rápido, arremessando o manto, pulou através da espuma, correu pela areia e pousou um beijo sereno na fronte aureolada da Deusa. Ela segurou de leve o seu ombro robusto: Quantos males te esperam, oh desgraçado! Antes ficasses, para toda a imortalidade, na minha Ilha perfeita, entre os meus braços perfeitos...
Ulisses recuou, com um brado magnífico: Oh Deusa, o irreparável e supremo mal está na tua perfeição! E, através da vaga, fugiu, trepou sofregamente à jangada, soltou a vela, fendeu o mar, partiu para os trabalhos, para as tormentas, para as misérias - para a delícias das coisas imperfeitas!

Mas reconheço que não temos safa. Agora que tantas coisas se descobriram, aterradoras, sobre o Universo, e fazendo um flash-back sobre as histórias bíblicas e outros mitos estranhos que nos levam às origens e onde temos assinalados os fins apocalípticos, acho que só podemos reconhecer a ideia da nossa dimensão mínima, num Universo fatal, sempre em mudança. Mas, optimisticamente, augurámos essa mudança para daqui a biliões de anos e considerámos quanto os estudos têm o  pendão de procurarem lenha para nos queimarmos todos.
A nossa amiga, entretanto, falava do papa Francisco de passagem pelos migrantes, nas suas desgraças sem solução à vista, apesar do papel de tantos que tentam remediar, um papa da sua admiração, acorrendo aos países, com a sua palavra de conforto e bênção.
Eu ainda ponderava sobre  a sua disponibilidade de aceitação desse papa, herege como ela é, mas atribuí o facto à sua natureza sensível, sempre em protesto contra os males do mundo mau, e apressei-me a concordar, ficando a saber que o papa levou onze dessas pessoas para o Vaticano, no seu avião.
Já em casa, leio o artigo do frontal Alberto Gonçalves, acusando os comentadores aparentemente ligados à direita, pretensamente isentos, mas na realidade ambíguos nos seus comentários politicamente correctos. Lembrei-me de tempos passados, quando, de repente, os reconhecidos adeptos do governo se passaram de armas e bagagens para os novos orientadores dos destinos da nação e um sem número de adeptos das novas ideologias políticas pululou.
Alberto Gonçalves não se impressiona com os meneios de António Costa e não vai com os seus trejeitos de aparência suave, considerando-o, decididamente, uma “nulidade irresponsável”, que a breve trecho conduzirá o país pelas sendas da perdição. Entretanto, esses comentadores encartados das televisões, querendo parecer responsáveis e sabedores, vão largando sentenças puramente vazias, de nem carne nem peixe, prováveis seguidores modernos de dieta vegetariana, dizendo amen, interesseiramente defendendo o seu posto.
Um homem inteligente denuncia a cobardia:

Aos comentadores de "direita"
Alberto Gonçalves DN, 17/4/16
Oficial e abençoadamente, a austeridade acabou. Talvez por distracção, o que não acabou foi o défice, que será o segundo maior da "zona euro" em 2016. Nem a dívida, que em 2021 promete destacar-se na Europa. Sobre o crescimento, prevê-se que nos arrastemos pelos fundilhos da Terra. As exportações não andam risonhas. O desemprego sobe. O tom dramático dos avisos do FMI também sobe, à semelhança do cepticismo das agências de rating. O investimento estrangeiro ameaça tornar-se uma figura retórica. Principalmente, paira por aí a fatal impressão de que se tende a perder, e depressa, os débeis laços que nos seguravam do lado certo da civilização. Até o sr. Draghi saiu daqui arrepiado.
Porque é que isto acontece? Ninguém faz ideia. Um governo do partido derrotado nas urnas, chefiado por uma nulidade irresponsável, herdeiro da histórica competência do PS, repleto de adolescentes mentais e iluminado pela ponderação do PCP e do BE tinha tudo para funcionar. É a história do maluco que se lançou várias vezes do 3.º andar com consequências aborrecidas - e agora lança-se do 5.º para ver se aterra ileso.
Por estes dias, Alexis Tsipras, que salvou a Grécia da austeridade para a enfiar no caos, recebeu em êxtase o dr. Costa e, a título de elogio, chamou-lhe comunista. Não é um bom sinal: é, ou deveria ser, um convite ao pânico. Só que não há pânico algum. Contemplar a querida pátria através dos media, e sobretudo das televisões, é suportar intermináveis lengalengas acerca da "normalidade democrática". É ouvir louvores ao "entendimento" da maioria parlamentar. É perceber a resignação, entusiástica ou apática, aos indivíduos que tomaram conta de um país mal-amanhado e, tarde ou cedo, devolverão um destroço irrecuperável. O maluco continua a cair e apenas se debate a limpeza da calçada que o espera.
Os nossos media inclinam-se para a esquerda? Talvez, mas nem é isso que importa. A esquerda, preponderante ou não, cumpre o seu papel. O problema é que a "direita" ou, sem aspas, o que sobra da esquerda não cumpre o dela. Salvo excepções, contemplar os alegados adversários do poder em vigor é descobrir uma realidade às avessas. Quem são os comentadores da "direita"? São os que se fingem sociais--democratas para catequizar as massas com puro terceiro-mundismo. Ou os que se dizem do PSD para conferir peculiar "legitimidade" à veneração do PS. Ou os incapazes de criticar qualquer estalinista ou similar sem primeiro anunciarem o "enorme respeito" que lhe dedicam. Ou os que quase se envergonham por defender vagamente, muito vagamente, a propriedade privada ou a concorrência ou a globalização. Ou os que não referem as evidentes vantagens do capitalismo sem acrescentar de imediato a necessidade do respectivo controlo. Ou os que se declaram à direita na economia e, a fim de exibir credenciais (e de facto exibindo estupidez), à esquerda nas "questões sociais". Ou os que se orgulham de ter "amigos" cujas convicções, se plenamente aplicadas, incluem a abolição de fraternidades assim.
Em suma, estamos num país onde a esquerda não tolera a existência de "reaccionários" ou "neoliberais" (convém simplificar para não perturbar os analfabetos). E onde a "direita" pede licença, e frequentemente desculpa, por existir. Uns possuem uma visão sectária e senhorial do regime, os outros suspeitam ser inquilinos a prazo. Uns determinam os limites admissíveis do discurso, os restantes vivem receosos de ultrapassá-los. Este desequilíbrio essencial perverte a discussão pública e promove um estado de alucinação contínua.
Normalidade democrática? Não é nada normal que uma autarquia socialista convoque uma homenagem ao falecido tiranete da Venezuela. Não é normal que um ministro ofereça um par de bofetadas a colunistas e um par de deputadas intimide colunistas em tribunal. Não é normal que o primeiro-ministro redistribua jovialmente os impostos de todos pelo "melhor amigo". Não é normal que se "compreenda" o terror islâmico enquanto se luta para mudar a designação do Cartão de Cidadão por ofensa às cidadãs. Não é normal que governantes consumidores de Luso e de Mercedes aconselhem a ralé a beber água da torneira e a deslocar-se na Carris. Não é normal que o PM grego nos apresente como exemplo de sucesso e o PM irlandês como exemplo de tragédia. Não é normal que um governo não perca a oportunidade de se envolver descaradamente em negociatas privadas. Não é normal que um ministro da Defesa desfile a "irreverência" dos rústicos perante a tropa. Não é normal que um ministro da Educação se empenhe a combater a dita. Não seria normal que o sr. Centeno fosse sequer tesoureiro de uma mesa de Monopoly. E não será normal que uma democracia ocidental acabe tomada por uma federação de interesses pouquíssimo democráticos.
Se acharem que é normal, por favor inscrevam-se de vez no PS ou num workshop do BE, participem em vigílias pelos refugiados e em manifestações contra o "jugo alemão", passeiem as T-shirts do "Che" e o amor a Lula e as obras completas do Boaventura, berrem pelo Luaty ou de acordo com as conveniências esqueçam o Luaty, excitem-se com os Papéis do Panamá e condenem as escutas de Sócrates, assinem mais 600 artigos a reprovar Passos Coelho e a exaltar a "capacidade negociadora" do inacreditável dr. Costa, aplaudam o dr. Costa e escandalizem-se com os avanços do sr. Trump, enfim façam o que quiserem.
Mas se acharem que não é normal, digam.

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