sexta-feira, 8 de abril de 2016

«Don’t cry for me...»



«Lula e a negação de si mesmo» é o título de um artigo de Manuel Carvalho (Público, 16/3/16) sobre um homem que parece ter sido descomunal, ao prometer erradicar a pobreza do seu país, e cumprindo-o em parte, para justificar a sua própria ascensão, de escapado dos tentáculos da pobreza em que vivera, ultrapassando o imaginário do decoro moral, de tal modo enriqueceu, embrulhado na confusão dos negócios, o que hoje lhe é imputado acusadoramente e punitivamente, mas mais uma vez pretendendo escapar fraudulentamente, desta vez dos tentáculos da Justiça, e ao que parece indiferente aos males que poderá provocar à amiga que lhe estende a mão .
Não julgo, pois, que se tornou a negação de si mesmo, vendedor que foi, antes, de banha de cobra para atrair mentecaptos ou ingénuos, prestidigitador acenando com  o mundo de maravilha que apetece à criança, ou ao pobre que anseia o mundo de bem-estar que lhe está interdito, e entretanto senhor do poder, manipulando malabaristicamente em sua direcção os objectos por si apetecidos.
De esquerda se chamou, a tal esquerda que desde sempre se concebeu indignada com as disparidades sociais, geralmente no efeito fácil de as referir nos outros, quer por demonstração de sentimento, quer por demonstração de seguidismo intelectual que favorece a nossa imagem, enquanto nós mesmos não penetramos nas esferas superiores – essas sim – do poder económico.
Não, Lula da Silva nunca me pareceu mais que um arrivista, que usou a sua cordialidade bonacheirona - tão expressiva no povo brasileiro - na conquista desse povo, para na sombra, como todo o ser finório, trabalhar em seu próprio proveito, que a nova condição social lhe permitia. Sem escrúpulo.  Como tantos mais. Vendedor da banha…

Lula e a negação de si mesmo
Público, 16/03/2016
O que é feito daquele líder político que vindo da pobreza extrema do Nordeste conquistou o Brasil com a promessa de que “a esperança vence o medo”? O que é feito desse fenómeno de popularidade que naquela madrugada de 28 de Outubro de 2002 encheu as principais praças das cidades brasileiras com a crença de que, com ele no poder, todas as crianças teriam pão e leite todos os dias, que o Brasil enterraria, finalmente, as clivagens entre a casa grande e a senzala e garantiria a todos as mesmas oportunidades da cidadania plena? O que é feito do Presidente que tirou 42 milhões de brasileiros da pobreza, que alargou a classe média, que tornou os centros urbanos lugares habitáveis, que fez da outorga da dignidade aos mais pobres uma bandeira, que levou ao mundo a crença de que a esquerda estava de regresso às suas origens históricas, feitas de ideias progressistas e de esperança?
Luís Inácio Lula da Silva aceitou agora ser ministro. Com essa escolha criou para si um estatuto especial de imunidade perante a lei. E com esse estatuto desfez todo o seu legado político. Deixou de ser o que foi e, politicamente, passou a ser coisa nenhuma. Quem o viu fotografado de tez suada nos combates sindicais do final dos anos 70 em São Paulo, no vale do Jequitinhonha a proclamar o fim da pobreza ou, em 1999, na Marcha dos 100 mil, a pedir “ética na política”, olha para ele por estes dias e vê apenas uma figura patética empenhada na insensatez da sua desconstrução.
Lula não se imolou, apenas: afundou o governo de Dilma Rousseff e arrasou o crédito dessa máquina partidária transversal, criativa e poderosa que foi o PT. Se as suas explicações sobre o triplex do complexo de luxo de Guarujá pareciam erráticas e inconsistentes, a sua tentativa de escapar ao foro da procuradoria de São Paulo acaba por provar a sua incapacidade de se rever na pele de um cidadão igual aos outros. O Lula que criou a sua aura mitológica na luta contra os privilégios já não habita o território dos “fraquinhos” que o Estado teria de apoiar, dos sem terra, dos sem tecto ou simplesmente dos operários. Lula passou-se para o lado dos intocáveis que sempre combateu. Estatelou-se nas suas próprias contradições. Explodiu na banal apetência do poder. Tornou-se uma figura de plástico, um insulto para os milhões de pessoas que acreditaram nele, uma prova viva de que na política não há lugar para as crenças nos amanhãs que cantam. 
O caminho da autodestruição de Lula como símbolo político não o afasta por completo do alcance da Justiça – José Dirceu, que ocupou exactamente o mesmo Ministério da Casa Civil que Lula se prepara para ocupar acabou condenado e preso pelo Supremo Tribunal Federal na sequência do caso do Mensalão. E fá-lo transportar o vírus da suspeição para o interior do Governo. No planalto de Brasília, Lula será visto não pelo que foi, mas pelo que se tornou: um político acossado que se refugia no Governo.
Dilma, que parecia resistir à interminável vaga de delações da Operação Lava-Jato, surge neste cenário como a principal vítima colateral. Já não é a primeira magistrada da República; ao acolher Lula tornou-se uma tarefeira ao serviço dos interesses do seu partido. A Presidente tornar-se-á na criatura sem espaço nem poder para disputar o protagonismo do seu criador, que certamente tenderá a acabar com as políticas de ajuste fiscal e a optar por medidas expansionistas que podem agravar o tumulto financeiro – os sinais dos mercados nos últimos dias são a esse propósito esclarecedores. E a oposição e o povo não deixarão de aumentar a pressão sobre um Governo em dificuldades. O serviço em bandeja de um pântano moral há-de agravar a intolerância e o radicalismo que ameaçam erodir ainda mais as instituições e a democracia brasileira.
Custa a perceber como pode o Brasil segurar em tantas pontas soltas e resgatar os consensos mínimos que fizeram a prosperidade do país entre o colapso de Collor de Mello e o segundo governo de Dilma. A delação de Delcídio do Amaral alarga ainda mais as suspeitas de corrupção, que envolvem agora Lula, o vice-presidente, um ministro, os presidentes do Senado e da Câmara de Deputados ou o líder do principal partido da oposição, Aécio Neves. Junte-se a isso a mais grave crise financeira das últimas décadas e perceba-se o grau de dificuldade que o Brasil atravessa. Uma dificuldade que não se supera apenas com os vastos recursos naturais ou com uma sociedade e uma economia dinâmicas. O problema maior do Brasil de hoje, já se sabia, é de natureza moral. E Lula da Silva, o profeta da ética, veio reforçá-lo. O homem que nos seus anos de luta dizia que os pobres iam para a cadeia e os ricos para o governo, fez a sua opção de classe. Décadas de promessas e de discursos a favor da igualdade de direitos e de oportunidades num dos países mais injustos do mundo tornaram-se de súbito numa sórdida mentira.  

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