domingo, 13 de março de 2016

«E AS MÃES QUE O SOM TERRÍBIL ESCUITARAM»



Somos mesmo assim, como nos descreve Camões, a propósito de uma trombeta castelhana a dar um sinal de guerra, que fez que as tais mães – portuguesas de origem -“aos peitos os filhinhos apertaram” ao ouvi-lo “horrendo, fero, ingente e temeroso”. Somos mesmo assim, temerosas do mundo, protectoras dos filhos desde tenrinha idade, mães-galinhas como nos acusam, embora os media nos informem do aumento das excepções em cada dia que passa, com crianças sofrendo destinos estapafúrdios que jamais se pensaria pudessem acontecer por cá. Mas o nosso Governo vê-se que é do estilo dessas mães de Aljubarrota, pelo menos segundo o subentende Clara Ferreira Alves em ira com o facto, no seu artigo de 27/3/16, ela que assistiu, com certeza, a cenas chocantes lá pelo Médio Oriente – ainda não se falava nas migrações de agora - que o seu “Pai Nosso” deixa antever, no seu estilo simultaneamente sóbrio nas frases curtas e alucinante de abundância de dados, espécie de pontilhismo, na profusão das referências a sentimentos e a factos, por vezes apenas pressentidos, com multiplicidade de acontecimentos e espaços, e originalidade da imagem simples e drástica, e em que as sequências conflituais nem sempre são facilmente deslindáveis, o propósito narrativo não sendo o de facilitar a percepção, mas o de baralhar as pistas, tanto na expressão narrativa como na sequência referencial, nos palcos de guerra e outros, de dados profundamente embaraçados, das suas muitas viagens e experiências no mundo.  E toda esta experiência lhe fornece a sagacidade para criticar, comparando.
 Retomando, pois, o tema, na questão dos afectos maternos portugueses não podemos também ignorar os desvelos das mães medievais pelas filhas sofrendo de amores, a que o próprio D Dinis foi sensível:  «De que morredes, filha, a do corpo velido? ―Madre, moiro d' amores que mi deu meu amigo; («Alva é, vai liero»)» ou os versos de Bulhão Pato, que confirmam, em estilo ultra romântico, a nossa idiossincrasia materna, de susto e protecção contínuos, e até sem qualquer estilo literário de monta:
A mãe e o filho morto
A pobre da mãe cuidava
Que o filhinho inda vivia,
E nos braços o apertava!
O coração que batia
Era o dela, e não do filho,
Que já no sono da morte
Havia instantes dormia.
Olhei, e fiquei absorto
Na dor daquela mulher
Que tinha, sem o saber,
Nos braços o filho morto!
Rezava, e do fundo d'alma!
Enquanto a infeliz rezava
O pobre infante esfriava!
Quando gelado o sentira,
O grito que ela soltou,
Meu Deus! — que dor expressou!
Pensei então: a mulher
Para alcançar o perdão
De quantos crimes tiver,
Na fervorosa oração,
Basta que possa dizer:
"Tive um filhinho, Senhor,
E o filho do meu amor
Nos braços o vi morrer!"
Creio que são esses exemplos de comovida sensibilidade que o nosso Governo autopromovido segue, protegendo os filhos que o Governo anterior condenou à inactividade, forçando estes a asilarem-se em casa dos pais, em vez de irem à vida, o que nem sempre é fácil, é necessário jeito, a Clara sabe-o bem. Mas ela é uma lutadora, com ideias fortes de determinação e muito saber, e naturalmente despreza a inacção e o parasitismo que o Estado-Providência democraticamente gerou, por formas várias antecedentes, e não só essa que cita da abrangência da ADSE dos pais aos filhos “sem trabalho, maiores de trinta anos”.
 O artigo de Clara Ferreira Alves é claro e ditado por cólera muitos dirão que justa. Mas eu, que sou do estilo das mães de Aljubarrota, e mesmo das do nosso lirismo medieval, só estranho o motivo de não se prolongar a ADSE dos pais aos filhos “sem trabalho, maiores de mais de trinta anos” a viver ou não em casa deles, valha-nos S. Pisco abade - apelo hierático que ouvia a um colega já idoso, no liceu de Aveiro, quando comecei a retribuir em impostos ao Estado – na altura menos galinha e mais galo exigente da paga – os custos do ensino que ele me fornecera antes, os quais, aliás, o meu pai também contribuía para ressarcir, com os descontos das suas obrigações tributárias. O tempo passa depressa e, ao que se diz, a situação de «sem trabalho» tende a prolongar-se, dos trinta aos quarenta é um pulo e as doenças acompanham o ritmo do tempo. Além de que poderemos sempre pensar que, se António Costa está a oferecer oportunidades aos migrantes em fuga, abrindo-lhes solidariamente os braços, não poderá desamparar os nacionais, não pareceria bem, na Grécia parece que este Estado de sítio ainda é mais participado, ora essa! Para que serve então a solidariedade? Não andam os meus dois filhos mais velhos mais o meu genro Quim na senda da distribuição aos sem abrigo? Não participa a Santa Casa da Misericórdia nessas ajudas fraternas? Não colaboro eu e tantos outros em todas as recolhas de donativos para as causas sociais, nos dias próprios? Que mal tem que o Estado providencie? Às vezes também o faz a Providência Divina. Há dias, posso-me gabar,  até me saíram 200 euros numa lotaria da Santa Casa. Temos que ser uns para os outros. Ajudei a Santa Casa, comprando-lhe um bilhete para ajudar os desabrigados. A Providência ajudou-me a mim que às vezes também me sinto desabrigada. Estado-Providência, eis um bonito nome. E mãe é sempre mãe.

A Pluma Caprichosa
Clara Ferreira Alves
E, 27/2/16
FILHOS DE UM ESTADO-GALINHA
Uma das medidas mais extraordinárias deste Governo, ou mais estupidamente extraordinárias, é a da extensão da ADSE, o subsistema de Saúde dos funcionários públicos, a filhos até aos 30 anos. Em que consiste exatamente, para efeitos de proteção social, a figura do “filho” de 30 anos? Qual a sociedade avançada, ou mesmo a sociedade primitiva e tribal, em que um adulto de pleno direito, com idade para ser pai/mãe de família, e que deveria ser idealmente pai/mãe de família, deva ser considerado um filho-família, dependente do sistema de Saúde dos pais? Bom, parece que será apenas, para efeitos restritos, um filho de trinta anos que viva em casa dos pais e que não exerça actividade remunerada. Foi o que li em todas as notícias. Ou seja, um desempregado que vive à custa dos pais e que não foi encorajado a deixar de depender dos pais. E não estamos a falar, penso, de filhos com deficiências ou incapacidades que geram dependência e sim de filhos adultos sem modo de vida autónomo. Ou com modo de vida sem escape ao controlo da lei, o que não será difícil. Todos sabemos que a crise e a austeridade geraram modelos abstrusos de convivência social em que filhos de trinta anos vivem em casa dos pais e à conta dos pais, e mesmo das pensões dos pais, mas não podemos culpar a crise e a austeridade de um estado de coisas que em Portugal é socialmente aceite como normal há décadas. A do filho que não mexe uma palha para se desenvencilhar, não arranjou emprego, não tentou arranjar emprego, não emigrou, não se safou. Se aos 30 anos não saiu de casa, é menos provável que venha a sair aos 35 ou aos 40 anos. Em muitas famílias, a situação é considerada normal e convida-se o filho hiperprotegido, com o seu IPhone e o seu bilhete de concerto rock a deixar-se estar. O Estado, tal como os pais, vela por ele. Na minha geração, como nas anteriores e nas seguintes, os filhos saíam de casa para se casarem ou porque os pais tinham dinheiro para lhes comprar uma casa, depois de terem comprado o primeiro carro. Era socialmente aceitável, num país europeu no final do século XX, que os pais continuassem a pagar as despesas e os luxos do filho além da sua capacidade económica. A alternativa era a permanência em casa. Em Portugal, nunca se encorajou a saída de casa aos 20 anos de idade, nem a partilha de apartamentos ou casas alugadas por jovens que se recusem a ficar em casa dos pais. Isto só acontecia quando os jovens saíam de casa para irem estudar numa universidade longe, obrigando-os a cortar com os maus hábitos, a lavandaria em casa da mãe, a empregada da mãe, a cozinha da mãe e a cama feita pela mãe. Em cidades universitárias de “expatriados” como Coimbra, com as suas repúblicas e lares, muitos adultos foram obrigados a ser adultos pela primeira vez e a cuidar deles próprios. E era visível a diferença de autonomia entre estudantes que viviam em casa e os que viviam fora de casa. Os primeiros tinham mais dinheiro disponível e nunca tinham de se preocupar com nada. Nem administrar nada. A casa familiar era a muralha que os separava e protegia do mundo ingrato. O carro era o do papá, ou era o carro comprado pelo papá. E a primeira casa também. A mamã em Portugal nunca tevce desafogo financeiro suficiente para ser ela a esportular as quantias envolvidas na manutenção destas existências. As classes mais pobres reproduziam a estranha forma de vida, acolhendo os filhos além da idade adulta, estimulando a dependência e a preguiça, cozinhando para eles, lavando para eles, tratando dos assuntos por eles e, de um modo geral, fazendo sacrifícios por eles. Não passava pela cabeça destes pais darem um pontapé no rabo aos filhos e mandarem-nos fazer pela vida. Aqui ou fora daqui. Esta mentalidade matriarcal (encorajada pelas mães) não é condutora do chamado espírito empreendedor, como se calcula. Gerações de adultos foram impedidos de se tornarem responsáveis pela sua vida e pelos seus erros.
Curiosamente, o Estado, empobrecido como está, reproduz a atitude e inclui na sua protecção pessoas de 30 anos que noutros países mais ricos não só são consideradas cidadãos contribuintes e geradores de riqueza como são obrigadas a serem cidadãos capazes de gerar a sua autonomia. Passamos da mãe-galinha para o Estado-galinha.
A medida de “alcance social ”que aumenta a idade de 25 para 30 anos passou sem um sussurro na sociedade portuguesa. Ninguém a achou anacrónica, pouco inteligente e um estímulo à passividade e ao conformismo. Ninguém dos que para aí andam a apalpar buracos no Orçamento, perdeu tempo com isto. Acha-se normal, no Portugal de 2016, que um homem ou uma mulher de 30 anos, com mais do que idade para tratar do seu sistema de saúde , público ou privado, seja abrangido pelo sistema dos “pais” desde que os pais sejam funcionários públicos. Com ou sem aumento de descontos (a situação é confusa) nada disto faz sentido.

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