sábado, 27 de fevereiro de 2016

As “baixas prisões”



Mais um daqueles artigos desempoeirados do sociólogo Alberto Gonçalves que, porque leu sobre os homens, sabe que nem o próprio Adão se assumiu em liberdade, amassado que foi do barro e logo preso nas artimanhas de Eva mais da serpente, que acorrentaram os nossos pais primeiros definitivamente ao pó da Terra. E apesar disso, outros houve que, desinteressados do pó, cuidaram que a alma era suficiente para a sua libertação, adoptando parâmetros de compostura e honra que os tornaram seres livres, atidos ao lema de que o pensamento e a razão se impunham nos considerandos de uma liberdade sem os “baixos afectos” materiais condicionantes. Mas isso era nos tempos da “aurea mediocritas” que foram idos, mesmo os nobres ideais de agora têm subjacente a importância da matéria para a concretização desses ideais.
Por isso, Alberto Gonçalves discorda da criação de um partido liberal entre nós, como alguns propõem, por partir da constatação de que, neste país de sol amaciador, dificilmente se poderá aspirar a tal, divididos que estamos em três partidos principais, de submissão a interesses manipuladores dos afectos, de um materialismo prático:  os que pertencem ao governo do Estado,  os que vivem do Estado, os que gostariam de pertencer ao Estado, como local de mais fácil acesso na senda do armazenar sem esforço.
Quanto ao artigo seguinte, sobre as eleições americanas, ele é demonstrativo da empatia com um país onde tudo é enorme, espaços, realizações, paixões, e até mesmo a revelação de seres adversos ao comedimento discursivo, na demonstração de que a posse da tal matéria manipuladora dos interesses, quando se torna o alfa e o ómega de certas vidas “humanas” deslumbradas. pode destruir o edifício do soi-disant equilíbrio anterior que nesse país tem combatido os radicalismos, para se tornar em algo de monstruoso a evitar. Em nome da Terra.

A liberdade nunca passou por aqui
21 DE FEVEREIRO DE 2016 00:02
Alberto Gonçalves
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DN, 21/2/16Partilha
De repente, não imagino porquê, boa parte dos meus amigos do Facebook desataram a discutir a criação de um partido liberal. Quase de certeza, estão a brincar. Dado que não são de esquerda, possuem por definição a lucidez suficiente para perceber que a ausência de um partido liberal indígena se deve a um motivo assaz trivial: não há público. Ou há o público necessário para que a comissão política, o conselho nacional, os participantes nas arruadas e os eleitores do hipotético PL se possam deslocar no mesmo autocarro - e ainda oferecer boleia a dois transeuntes particularmente afectados pela subida dos combustíveis. É a simples lei da oferta e da procura, que os liberais, mais do que os outros, compreendem.
Por cá, as convicções políticas dividem os cidadãos em três grupos principais: os que mandam no Estado, os que vivem ou sobrevivem à custa do Estado e os que gostariam de pertencer ao primeiro grupo ou, no mínimo, ao segundo. Uma longa tradição de pobreza, material e de espírito, impede os portugueses de experimentarem qualquer vestígio de simpatia pela liberdade, conceito que de resto lhes é tão estranho quanto o frio para um habitante do Iucatão. Entre nós, a liberdade é um penduricalho que fica impecável em discursos épicos e cançonetas medonhas. No mundo real, é coisa impensável. Onde já se viu que um indivíduo possa tentar determinar o próprio destino sem trela nem amparo?
Não é à toa que o nosso quadro partidário percorre todo o espectro ideológico de A a B, leia--se do mal dissimulado socialismo da ridiculamente chamada direita ao socialismo orgulhoso da espantosa esquerda, que inclui, sem destoar, seitas leninistas e estalinistas, admiradores da Coreia do Norte e promotores de merchandising do Che. Um governo que aumenta descaradamente os impostos, mantém a máquina pública essencialmente intacta e não enfia o país na bancarrota em seis meses já é "neoliberal" e um perigoso lacaio dos mercados. A alternativa, o saque fiscal a benefício das clientelas, "investimento" público, corrupção escancarada e desastre iminente é o padrão aceite pela generalidade da opinião pública e publicada. E tende a piorar. Para regressar às graças do povo, o CDS entregou-se a uma adversária da iniciativa privada. O PSD busca popularidade através de declarações apaixonadas à social-democracia. E o PS resiste no poder com típica brutalidade e um renovado amor pelo marxismo. No desgraçado Portugal destes dias, o PCP propõe taxar os "ricos" a 75% e ninguém se dá ao luxo de achar a proposta uma alucinação divertida, como a cientologia ou o criacionismo: a loucura tornou-se mesmo plausível. E com frequência desejável.
E é isto. Dos "trabalhadores" aos "empresários", uma desmesurada parcela da população enfiou na cabeça o direito de ser sustentada pelos "ricos", ou pela Europa, ou pelos meros contribuintes. E o papel do Estado consiste, na metade do tempo, em zelar para que assim aconteça. Na metade que sobra, cabe ao Estado decretar comportamentos, na medida em que irresponsáveis económicos padecem igualmente de irresponsabilidade cívica. Neste rectângulo repleto de crianças crescidas, não faltam fumadores entusiasmados com medidas antitabágicas. É aqui que o liberalismo conta prosperar? Boa sorte.
Por mim, e por pura curiosidade, aceito convites para um almoço conspirativo do PL, mas julgo que basta reservar a mesa do canto. A menos que eu esteja enganado. Espero estar enganado.

Sábado, 20 de Fevereiro
Ameaças globais
Desde 2006 que passo pelo menos uma ou duas semanas por ano na América. Gosto das possibilidades de Nova Iorque, da música nas ruas de Nova Orleães, Nashville e certos lugarejos do Mississippi, das estradas do Novo México, das paisagens do Arizona e do Utah, dos desertos da Califórnia e do Nevada, da comida dos texanos e da simpatia de estranhos.
E se há na América coisas de que não gosto, não chegam para me remover a impressão, não sei se fundamentada, de que um dia ficarei por lá de vez. O redundante travo "europeu" da Nova Inglaterra é largamente compensado por um pequeno-almoço numa espelunca do Tennessee. A aridez imperial de Washington é esquecida a cada conversa com amigos feitos há meia hora num café de Albuquerque. A melancólica padronização da main street nas pequenas cidades não apaga a absurda exuberância do Monument Valley. A desagradável ênfase nas questões raciais não mancha o improvável sucesso daquele caldo cultural. Sobretudo a repugnante obsessão com a ideia de celebridade não impede a América de ser o lugar mais conveniente ao voluntário e abençoado isolamento.
Por tudo isto, tenho evitado escrever, ou sequer pensar, nas próximas eleições presidenciais. Os candidatos "tradicionais" de ambos os partidos, fossem Rubio ou Cruz, fosse Hillary, eram deprimentes quanto baste. Os candidatos "surpresa" são outra coisa completamente diferente. Enquanto sociedade, o grande mérito da América tem sido a capacidade de enfraquecer os diversos radicalismos em prol de uma alternativa civilizacional eficaz. É um lugar de equilíbrios, que sempre reagiu às rupturas sociais com decência e rapidez. A orientação para o "centro", com os inúmeros defeitos deste, poupou a América a arrebatamentos totalitários. Hoje, por razões que não cabem aqui, os senhores Trump e Sanders elegeram o "centro" como o inimigo. Se os americanos elegerem um deles, a América que conhecemos está em risco. E o mundo, pelo menos o meu, também.

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