sábado, 2 de janeiro de 2016

Retratos nacionais



Duas personalidades portuguesas de que o país se deve orgulhar, pela qualidade da sua inteligência crítica e  intelectual - o discurso ético da ponderação e a nobreza da isenção partidária, próprios de Francisco Assis, o propósito satírico geralmente saliente, nas lúcidas análises de Vasco Pulido Valente. Não resisto a transcrevê-los a ambos, nesta análise selectiva que ambos praticam no balanço final do ano:

UM ANO, SEIS PERSONAGENS
Esta legislatura não vai durar quatro anos

António Costa, para ter sucesso, terá de ter condições para escolher o tema e o momento da crise política anunciadora do seu fim.
Várias personagens e múltiplos acontecimentos marcaram o ano que agora finda. Sem a preocupação de um inventário exaustivo cingir-me-ei à apreciação daquelas que me parecem ter sido as personalidades mais relevantes no período em apreço.
António Costa – O Primeiro-Ministro – numa interpretação restritiva da política enquanto actividade associada ao exercício do poder – é, sem qualquer dúvida, a grande personalidade do ano. Depois de ter derrotado o anterior Secretário-Geral do PS nas primeiras primárias abertas realizadas no nosso país assumiu a liderança do partido num contexto reconhecidamente difícil. Três problemas se lhe colocaram de imediato: a exagerada expectativa de caracter sebastiânico-populista projectada na sua figura; a aparente melhoria das condições económico-financeiras do país; a inesperada prisão do antigo Primeiro-Ministro José Sócrates. O percurso de António Costa como líder da oposição teve algo de errático, senão mesmo de contraditório.
No Congresso deu sinais de esquerdização no discurso assumindo uma radical oposição à ideia de qualquer entendimento com os partidos situados à direita e insinuando uma hipotética aproximação às formações partidárias localizadas à esquerda do PS. Aquando da apresentação das bases do programa económico pareceu inflectir para o centro abrindo as portas a propostas inovadoras em áreas tão sensíveis como a regulação do mercado laboral, o financiamento do Estado Providência ou a articulação entre a valorização da oferta e o incremento da procura interna. O documento em causa apontava no sentido de uma renovação da perspectiva social-democrata tendo em consideração a opção de fundo pela permanência na zona euro e pela abertura a um mundo globalizado. Durante a campanha eleitoral as coisas não lhe correram muito bem e o resultado obtido a 4 de Outubro não constituiu surpresa para ninguém. Nessa noite, que poderia ter sido a da sua própria morte política, António Costa renasceu. Proferiu uma declaração enigmática, enunciou um princípio geral de responsabilidade e iniciou uma caminhada rumo ao poder. Para isso contou com uma inédita abertura por parte dos partidos da extrema-esquerda parlamentar que se dispuseram a viabilizar um Governo monopartidário do Partido Socialista. O seu feito suscitou apreciações muito diversas: uns ficaram extasiados com a sua proclamada capacidade de negociação, outros incomodados com a natureza doutrinariamente contraditória e politicamente débil da solução encontrada. A verdade é que, pelo menos momentaneamente, se tornou a principal referência política do país. Como homem profundamente pragmático que é não desconhece as dificuldades que se lhe depararão no futuro próximo. Sabe que sempre que estiverem em causa questões de fundo em matéria económica, financeira, de política europeia ou de reformulação do Estado Providencia não poderá contar com o apoio das forças que tornaram o seu Governo possível. Mas também sabe que poderá confrontar os partidos da direita com as suas responsabilidades passadas e com os seus compromissos programáticos presentes. António Costa, que detém uma experiencia governativa ímpar, bem percebe que o seu destino dependerá da sua capacidade de nunca ficar prisioneiro dos seus aliados de ocasião. Para alcançar tal desiderato terá de governar em permanente estado de tensão procurando uma relação directa com o país, dramatizando deliberadamente os problemas que facilmente poderá antecipar, colocando-se numa dimensão quase suprapartidária. Não será fácil a prossecução de tal tarefa, dada a inimizade visceral da direita e a desconfiança natural da extrema-esquerda. Esta legislatura não vai durar quatro anos dada a estrutural instabilidade da presente composição parlamentar. António Costa, para ter sucesso, terá de ter condições para escolher o tema e o momento da crise política anunciadora do seu fim. É aí que tudo se vai jogar e tal poderá suceder muito mais cedo do que antevêem a maioria dos analistas.
Pedro Passos Coelho – Depois de quatro anos de uma governação difícil conseguiu chegar vivo à liderança da oposição. Era o mais imprevisível dos cenários. Os outros dois eram facilmente imagináveis: permanecer vivo como Primeiro-Ministro ou desaparecer após uma derrota eleitoral. Tem todas as condições para liderar a direita portuguesa. Independentemente da apreciação que cada um faça acerca dos méritos e dos deméritos da sua governação revelou força de carácter e até uma certa obstinação que é própria dos líderes políticos. Dentro da perspectiva doutrinária que é a sua, e daqueles a quem preferencialmente se dirige, o legado que deixa está longe de ser negativo. Depois de algumas hesitações iniciais percebeu bem o seu papel nesta nova fase da política nacional. Proferiu um bom discurso aquando da discussão do Programa de Governo socialista enunciando com clareza o posicionamento do PSD. Claro que vai enfrentar momentos muito difíceis e não lhe será fácil romper em absoluto com um novo Executivo de que se sentirá várias vezes demasiado próximo; confrontar-se-á nessas ocasiões com a contradição entre os seus deveres de homem de Estado e as tentações de chefe partidário. Não será fácil a escolha mas será precisamente nesses instantes que se vai decidir inteiramente o seu futuro.
Paulo Portas – Fez bem em abandonar a liderança do CDS. A questão que agora se coloca é se o partido tem condições para sobreviver sem ele. Por virtude sua creio que terá. Portas tinha tanta consciência de ser conjunturalmente maior que o seu próprio partido que não temia o surgimento de novas figuras no seio daquele. O CDS, e isso é mérito do líder agora demissionário, tem provavelmente a melhor primeira linha parlamentar da Assembleia da República. Nesse sentido, o futuro parece plenamente assegurado. Resta saber que caminho prosseguirá uma nova liderança que terá de optar entre duas opções extremas: um encaminhamento para o centro ou um acantonamento à direita. Estas opções encerram perspectivas doutrinárias radicalmente diferentes – uma implica a consolidação da recente escolha europeísta, outra aponta para um caminho nacionalista. De qualquer modo, Paulo Portas deixa uma herança muito difícil de preencher dadas as suas excepcionais qualidades políticas.
Catarina Martins – Foi talvez a grande surpresa política do ano. Revelou inteligência, imaginação e ousadia. Suceda o que suceder com esta precária maioria, Catarina Martins já adquiriu uma projecção que nos permite augurar-lhe uma sólida inscrição no futuro político do país. Sem ela suspeita-se de que nada do que se está a passar teria sido possível. Resta saber se terá agora a capacidade para liderar um processo de aggiornamento programático capaz de transformar o Bloco de Esquerda num partido com verdadeira capacidade para o exercício do poder numa democracia europeia com a natureza da nossa. Se tiver, acabará por ter um lugar de destaque na história do nosso tempo.
Jerónimo de Sousa – O seu tempo como líder do PCP parece estar a chegar ao fim. Mais do que entusiasmado pareceu sempre sentir-se obrigado a participar num acordo em que notoriamente deposita escassas esperanças. Abomina o BE, essa extravagância de uma pequena e média burguesia urbanas directamente filiada no infantilismo do radicalismo de esquerda, e suspeita das intenções do PS, esse partido inteiramente identificado com a traição histórica social-democrata. Para Jerónimo de Sousa, que lidera um partido que continua a chorar o fim da União Soviética e a clamar a superioridade do modelo leninista, os tempos que correm não são nada felizes.
Cavaco Silva – É ainda demasiado cedo para fazer uma avaliação verdadeiramente objectiva de um homem que marcou de forma determinante os últimos trinta anos da vida política nacional.
Público 31/12/2015
FRANCISCO ASSIS

Os melhores do ano
Público, 26/12/2015
Pedro Passos Coelho – Pelo que fez nestes quatro anos. Foram anos para muita gente de sofrimento e miséria. Mas tudo teria sido pior sem a tranquilidade e constância do primeiro-ministro. Não houve nada que a esquerda não dissesse sobre ele: não houve insulto, nem calúnia, nem mentira que não saísse da sua habitual grosseria e desonestidade. Passos Coelho aguentou tudo e transmitiu ao país, no meio da catástrofe em que o meteu o PS, alguma confiança e algum ânimo. Merece o nosso respeito.
Paulo Portas – Equilibrou a coligação, quando ela começava a deslizar para a incoerência, e conduziu a sua política sem se perturbar com os limites que lhe punha o azedume do PSD e o frenesim da esquerda.
Mariana Mortágua – A inteligência e a sobriedade com que se comportou na comissão de inquérito ao grupo Espírito Santo deu ao parlamento algum prestígio (de que urgentemente precisa) e aos portugueses muito prazer.
José Manuel Fernandes, Rui Ramos, David Dinis – Criaram o primeiro grande jornal online, o “Observador”. Numa altura em que toda a gente fala numa língua que não chega a ser português, é bom saber que ainda aparece quem escreva português e, às vezes mesmo, bom português.
Henrique Medina Carreira – Continua a explicar com uma exemplar clareza a situação do país. Mas não perdeu o humor, nem a rudeza que ajuda a compreender a verdade.
Catarina Martins – Sem nada: sem saber economia ou finanças; sem um pensamento político pertinente e organizado; sem um passado que a impusesse ao público; sem qualquer prestígio fora da agremiação exótica a que pertence, Catarina Martins conseguiu atrair os votos de uma imensa quantidade de portugueses. E, não contente com isto, também ajudou à formação do governo de António Costa. É o símbolo da vitória da insignificância.
Ricardo Araújo Pereira – Finalmente, já ninguém lhe acha graça.
Adolfo Mesquita Nunes – Aos 38 anos presidiu ao maior aumento do turismo em Portugal. Só que não gostou da política. Não se candidatou a uma carreira de ócio como deputado e, quando o governo caiu, voltou alegremente à sua profissão.

Os piores do ano
Cavaco Silva – É triste pensar que este homem dominou 20 anos da democracia, que nós queríamos que mudasse Portugal e o transformasse num país moderno e, até onde possível, próspero. Com um espírito estreito e uma indescritível arrogância, percebeu quase tudo mal, tanto como primeiro-ministro, como Presidente da República. A sua reforma, anunciada para Março, é um peso que a Constituição nos tira de cima.
António Costa – Correu brutalmente com Seguro do PS e depois da derrota de 4 de Outubro formou um governo de extrema-esquerda, que só pode dar mau resultado para os portugueses, para o PS e para ele. Não percebe os limites da penúria a que chegámos, nem os remédios que a podem, com sorte, atenuar. Quando se for embora, vai deixar o país num caos, do qual nada sairá de bom.
Ricardo Salgado – Como conseguiu o responsável pelo banco e pelo Grupo Espírito Santo levar à ruina e ao tribunal uma potência que se julgava inexpugnável? É preciso uma espécie de génio para se conseguir uma proeza destas. Génio e a subserviência da família e da gente que trabalhava com ele. Nós, por uma vez, vimos directamente na comissão da Assembleia da República a falta de carácter e de vergonha dos comparsas de Ricardo Salgado. Bastava isso para se impor à banca uma regulamentação selvagem.
Paula Teixeira da Cruz – Um desastre ambulante e um melancólico pretexto para deixar a Justiça na mesma.
Pilotos da TAP – A greve que fizeram não tem desculpa. Contribuíram para a desgraça da companhia e começaram um suicídio lento, que arrastará consigo centenas de inocentes.
José Rodrigues dos Santos – A cada ano que passa aumenta a sua colecção de graçolas sem graça e de trejeitos que só conseguem enojar ou irritar. Que nos quer ele dizer com a piscadela com que acaba o Telejornal? Que nós somos cúmplices do estado do mundo? Que não nos devemos preocupar com o estado do mundo? Que é melhor partilhar com ele a sobranceria e a vaidade de uma cabeça oca?
José Sócrates – Reapareceu em cena no seu papel de vítima; vítima do Ministério Público, de 30 e tal juízes, de campanhas conduzidas por uma “força oculta”, da direita, do PS e da humanidade. Não percebe que uns meses mais desta vexatória farsa o levarão ao desprezo universal e daqui a pouco nem com uma vara alguém se atreverá a tocar nele.

O conhecimento humanístico que Vasco Pulido Valente detém o levam a tratar as suas figuras com maior ou menor dimensão crítica, de acordo, naturalmente, com a sua sensibilidade e empatia. É o caso de Cavaco Silva, de quem ninguém se atreve a dizer bem – Francisco  Assis abstendo-se, por delicadeza, talvez, Pulido Valente malhando nele com o fervor do repúdio. Atrevendo-me a expor o meu parecer, e apenas com o conhecimento da própria vivência, lembro o ministro que admirei, que ajudou a modernizar o país nas autoestradas que rasgou, com a minha amiga sempre barafustando por ter feito demorar tanto, surpreendentemente, a do Algarve, que traria turismo e lucro. Um homem que parece apático, mas que de repente se apresenta – pelo menos assim o vejo – defensor inquebrantável do seu país, nas palavras de zelo que pronuncia, seguro no seu posto e indiferente aos apupos da multidão que o despreza na sua velhice, só aparentemente inerte e tacanha. É claro que a velhice, sobretudo quando pueril – caso da referência  às compras que fez com a mulher num qualquer país europeu – o tornam alvo das chufas desdenhosas dos que no chefe apenas querem admirar o ícone hierático que inspira respeito, não a estátua de pés de barro. Mas Cavaco Silva, parecendo tacanho, sabe bem o que quer e não se deixa vergar pelos apupos dos que intimamente considerará invejosos e impotentes. Para mim Cavaco Silva será sempre um homem que, acima de tudo,  respeitou a sua pátria.  
Quanto a Passos Coelho, outro abocanhado pelas alarvidades de quem só viu nele o que quis ver, desprezando as contingências da sua actuação, é, para mim, a figura maior do ano que passou.  
Só não entendo por que Vasco Pulido Valente, enfiando Catarina Martins entre os melhores, o faz pela negativa – “símbolo da vitória da insignificância. O mesmo relativamente a Ricardo Araújo Pereira, considerando que “Já ninguém lhe acha graça”. Por essa forma, os que considera os piores, como José Sócrates, mestre na arte da vitimização e parolice, deveriam ser postos entre os melhores. Catarina Martins lembra-me um fogo fátuo, um meteoro que risca o céu e facilmente se desintegra, por falta de luz própria.
Mas posso estar enganada, que a parolice nacional ainda nos faz hoje rastejar em Fátima.

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