sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

L’Homme de Londres



Um artigo assustador que nos revela quão longe andamos de nos apercebermos do que está a ser forjado no nosso mundo, vulcão prestes a explodir, escórias bombásticas saídas das entranhas incandescentes desta Terra tão igual nos homens como nas coisas. As coisas que parece correrem banais, toscas, iguais na sucessão dos dias, no seu déjà vu de similitudes, com, afinal, o imprevisível desviando repentinamente o ritmo, causando a devastação ou a mudança. A história do «Homem de Londres» de Simenon é exemplo destes acasos que desviam o ritmo da rotina, mas lembro igualmente “l’Étranger”, de Camus e afinal  qualquer outra história, todas as histórias, com um começo para um fim dramático.
Em Dieppe, à chegada de um barco de Londres, o faroleiro Maloin assiste, do seu farol, a um crime: Brown, o homem de Londres, chegado no barco, com um companheiro de assalto a um ricaço, reivindica a sua parte do dinheiro que o outro traz na mala, e, na luta, o homem assassinado cai no mar arrastando a mala. Maloin consegue, secretamente, recuperar a mala e a sua vida muda a partir daí. A embriaguez do dinheiro, juntamente com a consciência de que Brown desconfia de si, transformam a sua maneira de ser apagada, sem ambições até aí, porque apenas enfronhada nas dificuldades da vida, numa figura fechada e rancorosa, de repente desejosa de sobressair, de ser rica como os outros e exibir o poder que poderá demonstrar, utilizando o dinheiro da mala. Ainda dá provas disso, comprando um rico cachimbo para si e vestes para a família, especialmente a filha, que liberta de um emprego onde é explorada, o que naturalmente provoca zanga na mulher. Mas a consciência não o deixa tranquilo, a filha descobre um homem enfiado numa barraca que ele construíra para guardar os seus apetrechos de pesca e ele calcula que o homem seja Brown, fugido à polícia, que o dono do dinheiro mobilizara. Maloin sabe que o homem que a filha fechara, poderá morrer de fome, leva-lhe comida e chama-o, mas a insistência do homem em não responder retém-no no sítio, até que é atacado por Brown. Ao defender-se, provoca-lhe a morte. Mais “une tempête sous un crâne”, não, desta vez, no de Jean Valjean, mas no de Louis Maloin. Maloin decide entregar-se à polícia, o mundo de visões e de reflexões que dele se apoderara, desde aquele dia em que, tendo assistido a um crime, nele participou pescando a mala poderosa do dinheiro roubado, o que lhe modificara a rotina e o comportamento, essas reflexões descambando numa decisão brutal de libertação do pesadelo - agulha de lava furando a cratera vulcânica - sem atender a quaisquer outros parâmetros de reflexão e atenuação do seu crime.
Tal estamos nós no nosso viver de pequenez envolta em remedeios, com discussões de permeio, em representações teatrais com Tinos de Rans pelo meio, sem nos darmos conta do que se passa à nossa porta, prestes a explodir. Mas Vasco Pulido Valente adverte, com a sabedoria de sempre, que deveríamos escutar:

À nossa porta
Público, 17/01/2016

As fronteiras do Médio Oriente foram impostas, como toda a gente sabe, pelo acordo Sykes-Picot no fim da I Guerra Mundial e tentavam equilibrar as pretensões da Inglaterra e da França. As fronteiras da África do Norte são a consequência de uma guerra de conquista, que começou em meados do século XIX com o último rei de França, Luís Filipe, e em que pouco a pouco se envolveram a Inglaterra, a Itália e mesmo a Alemanha de Guilherme II. Nenhuma destas divisões e redivisões considerou a religião ou a afinidade tribal da gente que ia dispersando pelo mundo a régua e a esquadro, como se ela não valesse mais do que peças sem valor num jogo que não podia de toda a evidência jogar. As coisas correram bem até à guerra contra Hitler e à emergência do petróleo como a principal fonte de energia do Ocidente.   
Dali em diante as grandes potências tiveram de evacuar, a bem ou mal, o Médio Oriente e a África do Norte e deixaram para trás países sem qualquer espécie de viabilidade como o Iraque, ou a Líbia, geralmente governados por velhos funcionários do colonialismo ou por indígenas de confiança, que acabaram por ser submersos por uma civilização primitiva, dirigida pelo fanatismo e pela violência. Hoje o Médio Oriente é o campo livre para as guerras religiosas do islão e naturalmente as facções detestam a interferência do Ocidente em querelas para que o dito Ocidente não é chamado, que não percebe e que vem sempre perturbar com a sua superioridade económica e militar.  Os terroristas de Nova Iorque, de Londres, de Copenhaga ou de Paris querem ficar sozinhos para se exterminarem em paz.
Hoje as duas maiores potências regionais deslizaram para uma situação de guerra não declarada, mas que está em perigo de se tornar uma catástrofe para o Médio Oriente, para o Norte de África e para o mundo. Ora a Europa não tem meios para reagir a essa ameaça. Se o choque entre o Irão (xiita) e a Arábia (sunita) não for evitado, acabará por se estender da Turquia a Marrocos, e provavelmente à Índia e à Ásia central, e não existe força alguma capaz de o sufocar ou reter. Em Portugal, a preocupação com o governo Costa e a campanha presidencial não permitem a menor consciência dos riscos que hoje dia a dia corremos. Mas, consciente ou inconscientemente, sofreremos como o resto da Europa as consequências do conflito que vai crescendo à nossa porta.

Nenhum comentário: