sábado, 16 de janeiro de 2016

Abaixo os exames!



Dá prazer saber que neste país ainda há pessoas que se interessam pela Educação e acompanham os filhos em exigências de comportamento escolar que julgava de menor valia, desde que, numa tal revolução florida, o país silenciou, curvando docilmente o dorso perante a nova ordem que, na questão da metodologia para o Ensino aboliu exames e igualou competências com passagens administrativas que, se favoreceram a mândria, muito deve ter revoltado os alunos cumpridores, assim irmanados e desconsiderados. Era um tempo de reboliço, que, por alturas de 76, Ramalho Eanes conseguiu minorar. Mas o termo democracia ganhou terreno desde então e ainda não parou de avassalar os espíritos, pelo que a imposição de um ensino em modelo de camaradagem e afabilidade para poupar as susceptibilidades das criancinhas, que tornou os professores dóceis e os alunos arrogantes – (no estágio que fiz por essas alturas aprendi que os saberes dos alunos eram tão importantes como os dos professores, o que criou em mim, durante uns tempos, uma psicose de imperícia e inutilidade docente que, felizmente, consegui com o tempo ultrapassar) – o modelo da igualdade, fraternidade e liberdade, repito, foi-se insinuando com força crescente, no meio do laxismo, da  indisciplina, do desinteresse progressivos pelo significado do saber.
As coisas foram-se compondo, escudadas por livros escolares progressivamente mais completos, com textos, imagens e exercícios de apoio, que deviam encantar os alunos, se a educação fosse um lema nas famílias e nas escolas, estas desautorizadas por normas vindas dos sucessivos ministérios sucedâneos à implantação dos cravos.
Mas chegámos novamente à reviravolta trazida pela constituição de um governo de igual tendência melindrosa e puritana desse governo dos cravos, embora sem cravos, agora, que a estação do ano não possibilitou. Novamente vêm à tona as frases do carinho pelas criancinhas cujas sensibilidades e tremores as televisões captam com desvelo, falando de nervos e interrogando sobre os traumas dos exames. E o primeiro ministro autodefinido, concorda que os estudos são supérfluos, e que os exames só servem para criar mártires nas criancinhas.  Abaixo, pois, os exames, embora a candidata do Bloco da Esquerda, Marisa Matias, tenha explicado que a escola a ela ajudou muito, no tempo em que também guardava cabras, que não possibilitavam, todavia, um convívio de tão intensa projecção como aquele que a escola com as colegas de turma lhe facultou. É certo que não falou no que deveu aos mestres, mas por isso mesmo os seus recursos culturais primam pelo afecto das suas participações, como candidata à presidência da república, na estrada, nos meios de transporte, em Coimbra, o que prova quanto é estimada, porque também estima, defendendo o direito dos pobres a subir na vida e os das criancinhas de não fazer exames, não sei se também para subir melhor, ou pelo menos mais rapidamente.
João Miguel Tavares parece aborrecido com a abolição dos exames e prova-o, denunciando desrespeitos. Com muita coragem, que admiro. Mas o tempo está para as Marisas, ex-guardadoras de rebanhos, que pretende conduzir o povo, agora. O que é muito da actualidade, convenhamos. Eu até tenho uma peçazinha de teatro – já falei nela, que as conversas são, muitas vezes, como as cerejas – em que uma ex-pastora também se transforma em condutora do seu povo. Chama-se “Exercício Escolar”, ( a peça, não a pastora, com que terminam os meus “Cravos Roxos”), e termina assim, que se me perdoe a repetição, pois:
Coro do Partido: «Neste país transformado / Por revolução de flores / Que aniquilou prepotências / E irmanou ricos e pobres / Trabalhadores e gestores / Num ideal renovado / De comum realização, / Só se escuta o martelar / Dos malhos dos ferradores / Dos maços dos calceteiros / E os gritos dos operários / E os olés dos boieiros / E o chocalhar das ovelhas / E os protestos dos doutores / E os risos dos proletários / E os discursos partidários / E o gorjear dos cantores. / Pelas ruas transformadas / Em caminhos pedregosos / Onde as flores são espontâneas / E os frutos tão saborosos, / Brotam as almas mais cândidas /  E os sentimentos mais soltos. / Eis a mensagem, senhores, / Da nossa festa das flores.» (Assim fenece a farsa.)

É claro que hoje não penso tanto assim, visto que os calceteiros e os boieiros esmoreceram com o tempo, e já nem se apanha um simples desentupidor de canos, talvez vivendo do subsídio, ou, se for mais ambicioso, preparando-se para bem servir o país em cargos de mais relevo, o que é sempre prestigiante, como o Tino de Rans e mais uma catrefa de companheiros têm provado no nosso impasse eleitoral.
Mas é tempo, naturalmente, de ler o protesto de João Miguel Tavares contra as leis do bota-abaixo instituídas pelo governo da usurpação sobre as leis anteriores do partido ganhador. É claro que concordo com ele. E admiro o facto de, jovem como é, entenda ainda que a escola é um espaço de obrigação em função de uma formação ética e em função de uma vida futura que imporá obrigações e exigirá competências.  O querer retirar à escola esse empenhamento formativo, de que os exames naturalmente fazem parte, como preparação para a vida, não passa de cinismo astuto e estulto do mundo adulto, o qual, no nosso país, ao que se tem visto, é certo, se apoia muito no nepotismo, ou, como me disse um dia o meu ex-colega do liceu, posteriormente filósofo, Fernando Gil, na «tiologia», designando o termo, naturalmente, o apoio nos tios, mais do que nas competências resultantes do saber:

A palhaçada
Público, 12/01/2016
Eu tenho quatro filhos, três deles em idade escolar. A Carolina tem 11 anos e está no 6.º ano. O Tomás tem nove e está no 4.º ano. O Gui tem sete e está no 2.º ano. Na passada sexta-feira, fiquei a saber que os meus dois filhos que iam ter exames daqui a cinco meses afinal não vão ter, e que o meu filho que não ia ter exames daqui a cinco meses afinal vai ter uma prova de aferição. A isto se chama uma colossal palhaçada.
Na SIC, Marques Mendes afirmou que fazer estas alterações a meio do ano lectivo era uma “falta de respeito por professores e directores de escolas”. Os professores e os directores de escolas que me perdoem: isto é, em primeiro lugar, uma absoluta falta de respeito para com os alunos e as suas famílias. E como o ministro da Educação deve perceber imenso de bioquímica, de oncologia e de como dar graxa à Fenprof, mas muito pouco do que significa gerir uma família e educar filhos, eu assumo a patriótica missão de o tentar esclarecer.
Numa família, explicamos às crianças que a escola é o seu trabalho, e que ele deve ser levado tão a sério quanto os pais levam o seu. Explicamos que a roupa, a comida e os brinquedos chegam sem qualquer esforço da parte deles, e que em troca os pais só pedem bom comportamento e empenho escolar. Explicamos que a mesma energia que é investida nos momentos de lazer é para ser aplicada nos momentos de trabalho. E ao explicarmos tudo isto, tentamos criar desde cedo uma cultura onde felicidade e exigência sejam actividades compatíveis (sim, Catarina Martins, é possível!). Um ano de exames e de fim de ciclo é sempre um ano diferente, e trabalha-se para isso durante nove meses. Para uma criança empenhada na escola, o ano lectivo que está a frequentar não é, como para um adulto licenciado, apenas um de entre 15 anos de estudo – é a vida dela, toda, inteira, naquele momento.
E essa vida planeia-se, desde o início do ano lectivo. Por incrível que possa parecer a Tiago Brandão Rodrigues e à frente de esquerda que nos governa, há pais que entendem que a educação que o Estado propõe aos seus filhos não é toda a educação que querem para eles. Os meus filhos frequentam a escola pública, mas fora dela estudam música e inglês, que têm avaliações próprias. Essas avaliações articulam-se com as da escola, e há opções que se tomam logo em Setembro em função dos exames de Maio. Mais: a escola tem também implicações profundas na vida de lazer das famílias. Há pais que viajam com os filhos, marcando férias com meses de antecedência – e para isso contam que o calendário escolar seja respeitado (a prova de aferição do oitavo ano acaba de ser marcada para a semana seguinte ao fim das aulas). Sim: há vida para além do Estado.
Reparem que deixo propositadamente de fora deste texto as vantagens dos exames de 4.º ou 6.º ano, o número de alterações às avaliações do ensino básico desde o ano 2000, a pressa e a opacidade com que esta nova revolução foi feita ou as inenarráveis contradições socialistas. O meu argumento é prévio a tudo isso – é sobre o profundo desrespeito que o Estado dedica aos seus cidadãos, tenham eles sete ou 77 anos. Invocar razões ideológicas para a direita preferir avaliar crianças no 4.º, 6.º e 9.º anos e a esquerda no 2.º, 5.º e 8.º é absolutamente patético. A única ideologia está no método: só mesmo quem acredita que o Estado é o alfa e o ómega da existência humana pode dispor da vida dos cidadãos com a vergonhosa leviandade que o ministério da Educação acaba de exibir.

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