sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Ceguinhos são os que não querem ver



Mais uma vez, a Grécia e os camaradas europeus do Syriza, no caso português, mais por ódio ao Governo do que amor pelos gregos ou pela Grécia. De tudo se aproveitam os que gostariam de ser um Syriza vitorioso cá, e até mesmo os egrégios do rancor, que apontam o dedo de expulsão aos que usaram, no seu país, um percurso de maior virilidade do que a que eles manifestam agora, só votados ao enternecimento e pieguice enramelados, que as cãs por vezes trazem, embora embrulhados em intenção cínica. João Miguel Tavares conta-o com clareza, em argumentos lógicos, que tanto desmistificam essas intenções como censuram a infantilização de alguns países em dívida, preparando-se para continuar a comer da gamela alheia, sem intenção de se ressarcir, comodamente instalados num posicionamento de aventureirismo parasita, irresponsável e atrevido.
Eis os artigos de João Miguel Tavares, saídos no Público, respectivamente em 17 e 19 de Fevereiro, onde, corajosamente, defende um parecer oposto, valorizando, nessa questãs, a acção do nosso Governo:

Repitam, sff: nós não somos a Grécia
17/02/2015
Desde o início da crise que Portugal fez um enorme esforço para se afastar da Grécia e se aproximar da Irlanda no campeonato dos países intervencionados.
Para os mais desmemoriados, recordo que esse esforço é anterior ao actual Governo: há bastas declarações de José Sócrates em 2010 sublinhando que as situações da Grécia e de Portugal são “incomparáveis”. O mantra do Governo ao longo dos últimos cinco anos foi “nós não somos os gregos”, e esse mantra pegou e pagou: Portugal e a Irlanda concluíram com êxito o programa de intervenção, enquanto a Grécia continua a coleccionar pacotes de austeridade.
Mas como há por aí muita gente que não gosta que a realidade se intrometa no meio das suas convicções, boa parte dos dinamizadores do famoso Manifesto dos 74 – de Bagão Félix a Pacheco Pereira, de Freitas do Amaral a Carvalho da Silva, de Ferro Rodrigues a Francisco Louçã – decidiu voltar a juntar-se para mais um espectacular abaixo-assinado, desta vez aconselhando a pátria a ser mais solidária com a Grécia. Portugal anda há cinco anos a tentar fugir desse barco – os 74 insistem em empurrar-nos lá para dentro. Como gesto patriótico, diria que é coxo e desinteligente, mas a verdade é que estamos a falar das mesmas pessoas que em Março de 2014 – dois meses antes do final do programa de ajustamento – acharam que era a altura ideal para informar o mundo de que a dívida pública portuguesa era insustentável e teria de ser reestruturada.   
O problema de boa parte dos referidos signatários é que o seu ódio ao Governo é ligeiramente superior ao seu amor a Portugal – e por isso insistem numa colagem política que dá imenso jeito às suas teses, mas não dá jeito algum ao país, sobretudo numa altura em que a possibilidade de a Grécia sair do euro é uma hipótese que ganha cada vez mais força. Basta, aliás, ler os jornais para verificar que a Irlanda está a criticar os gregos e a estratégia do Syriza com a mesma intensidade que Portugal. É evidente que os países que foram intervencionados, e cujas contas públicas ainda se encontram fragilizadas, têm todo o interesse em aumentar o fosso que os separa da Grécia – não em diminuí-lo. A razão é absolutamente óbvia: se a Grécia sair do euro, eles não querem ser os próximos.
Só mesmo quem acha que a dupla Tsipras/Varoufakis são o Astérix e Obélix da nova Europa, resistindo hoje e sempre ao invasor, é que pode defender que a solidariedade para com a Grécia é uma obrigação moral, que trará de caminho grandes vantagens políticas. No entanto, para quem não acredita que Varoufakis tenha um cantil com poção mágica escondido debaixo do casaco de cabedal – como é o meu caso e parece ser também o caso do Governo e do Presidente da República –, a conversa da solidariedade é muito pouco persuasiva. Solidário com quê? Com as políticas do Syriza? Não contem comigo. Com o sofrimento do povo grego? Bom, então se é de crises humanitárias que estamos a falar, e tendo em conta que o PIB per capita grego é idêntico ao português, diria que o Sudão, a Nigéria ou a Síria merecem mais atenção do que a Grécia. O que me parece ridículo, de qualquer modo, é esperar que um Governo que durante anos procurou afastar-se da Grécia, mesmo quando ela era dirigida por um partido de centro-direita, venha agora saltar para os braços do Syriza só porque Atenas engrossou a voz. Não, senhores: Passos Coelho já cometeu muitos erros políticos, mas manter os gregos ao longe não é certamente um deles.
http://s.publico.pt/NOTICIA/1686298http://s.publico.pt/europa/1686298http://s.publico.pt/irlanda/1686298http://s.publico.pt/grecia/1686298http://s.publico.pt/nigeria/1686298http://s.publico.pt/sudao/1686298http://s.publico.pt/siria/1686298http://s.publico.pt/francisco-louca/1686298A infantilização de um país
19/02/2015 - 06:27
Os defensores do Syriza costumam criticar fervorosamente a proliferação daquilo a que eles chamam “caricaturas da Grécia”: as cabeleireiras e os trombonistas que se reformam aos 53 anos porque a sua profissão é considerada “árdua e insalubre”; os 45 jardineiros contratados por um hospital público para tomar conta de meia dúzia de árvores; o Instituto para a Protecção do Lago Kopais, seco desde 1930; ou, para citar a famosa peça de José Rodrigues dos Santos para a RTP, os falsos paralíticos que se passeiam a pé diante da casa do ex-ministro da Defesa grego para “receber mais um subsidiozinho”.
Ora, eu não duvido por um momento que estes coloridos exemplos possam contribuir para formar um retrato simplista da Grécia, certamente injusto para muitos gregos trabalhadores. Só que o inverso é igualmente verdadeiro: o Syriza e a sua vasta trupe de admiradores utilizam a mesma demagogia para criticar a posição alemã, colocando bigodinhos em Merkel, recuperando histórias de uma guerra que acabou há 70 anos e considerando a Alemanha a grande vilã da crise – como se ela fosse a encarnação da bruxa má da floresta, que atraiu os pobres gregos para a sua casa de chocolate, para poder aí praticar as maiores malfeitorias.
De facto, entre os mais impressionantes resultados da crise está esta espécie de infantilização dos países em dificuldades: não há políticas historicamente erradas, nem governos responsáveis pelo endividamento excessivo, nem eleitorados que tenham dado os seus votos a maus partidos – há apenas pobres vítimas de tenebrosos esquemas neoliberais. Para quê darmo-nos ao trabalho de assumir os erros, se podemos inventar tão bonitas teorias da conspiração? Para a esquerda europeia pró-Syriza, é como se a Alemanha e os seus bancos andassem a preparar um assalto aos países da periferia desde tempos imemoriais.
E, no entanto, basta pesquisar um pouco para encontrarmos as incoerências dessa tese. Notícia de Junho de 2011: “60% dos alemães consideram que o país tem de ajudar a Grécia a recuperar da crise de dívida soberana em que se encontra, gostando ou não.” Isto foi escrito há três anos e meio. Ou seja, já houve uma época em que a Alemanha defendeu a solidariedade para com os gregos. Simplesmente, essa confiança foi-se esfarelando com as sucessivas falhas nos pacotes de reformas. O esquematismo do grego mandrião e o simplismo de tantas abordagens em relação aos PIIGS é, em boa medida, uma consequência das dificuldades na implementação dos programas da troika. Não é bonito. Mas é compreensível.
Infelizmente, há uma abordagem da crise, muito popular, que é de tal forma desresponsabilizadora que convida às mais tristes simplificações. Certas analogias à esquerda são de molde a assustar qualquer um – ainda ontem, neste mesmo espaço, Rui Tavares ia buscar Versailles e o pós-Primeira Guerra Mundial para falar da reunião do Eurogrupo. E eu pergunto: mas houve alguma guerra na Grécia nos últimos anos de que não tivemos conhecimento? O seu défice deve-se a alguma sucessão de calamidades? Senhores: a Alemanha foi arrasada na década de 40, reunificada na década de 90, não tem petróleo e é o motor económico da Europa. Se não queremos ser caricaturados e simplificados, seja na Grécia ou em Portugal, convinha começar por acabar de vez com um discurso de tal forma desculpabilizador que nos transforma a todos em cidadãos inimputáveis. Se é esse o caminho único para a salvação da Europa, por favor, deixem-me circular em contramão.  

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

O Humor de João Magueijo



Não sei por que carga de água, a minha irmã embirra com os ingleses e já há muito que me quer impingir o livro de João Magueijo, “Bifes mal passados”. Cá por mim, que os conheço sobretudo dos filmes, sempre os apreciei e nem sequer mostrei muito interesse pelos entusiasmos e risos da minha irmã, como o José Pacheco Pereira mais votada aos clássicos, que me ajudaram a reflectir, acrescentando dados às comunicações paternas da adolescência. Mas ultimamente li dois livros de jovens portugueses que ela me emprestou, no seu zelo fraterno pela minha actualização e pensei que, se gostei de “O meu irmão” de Afonso Reis Cabral e “Terra de Milagres”, de João Felgar, dois escritores jovens e portugueses, devia gostar do livro de João Magueijo, pois a minha irmã é pessoa de bom gosto, por muitos escrúpulos que eu sinta em penetrar na alcova de um povo que me habituei a admirar.
Realmente, foi um livro que me fez rir à gargalhada, não tanto pela substância das referências críticas assanhadas, como pela forma como conta, o próprio narrador/autor apresentando-se em tantas situações de penúria e ridículo, amplamente gozado pelos seus companheiros jovens, que as situações jocosas se impõem ao tom verrinoso dos ataques aos costumes e brios ingleses que os colocam num plano de igualdade perante aqueles de quem se julgam superiores.
Um livro bem estruturado, o de João Magueijo, de um discurso em amálgama de apartes, analepses, prolepses, comentários críticos ou de facécia oportuna, ele próprio referindo clássicos como Petrónio, em cujo “Satyricon” pôde colher tanto do desplante e licenciosidade para a sua sátira de costumes, que, apesar da má vontade antibritânica, não deixa de pôr em destaque o temperamento cordial e de aceitação serena dos ingleses, das mazelas ditadas pelo excesso de álcool ingerido – neste caso pelo narrador, em ocasional seguidismo do costume geral de se enfrascarem em álcool – o qual se coloca sempre na posição de humilhado e alvo de troça, no meio da folia arriscada dos companheiros, em situações picarescas cheias de graça. E o contraste surge, entre o clima e as praias do seu país soalheiro, e o clima brumoso e águas escassas e sujas dos rios ingleses, para a diversão dos habitantes. Mas a sanha no apontar de defeitos não esconde o reconhecimento dos valores de um povo ambicioso, corajoso e determinado, cuja arrogante superioridade se revela até na referência aos “do continente” de que parece não fazerem parte, no isolamento da sua ilha poderosa e avassaladora, desprezo que, de resto, o insular Alberto João Jardim copiou, com arreganho parecido, embora com menos motivo, em relação ao seu país.
Mas é com uma cena hilariante do capítulo 6 – «Gostos extremos» - que transcrevo do seu livro de episódios autobiográficos, que finalizo este apontamento:

«Na triste ocasião que vou narrar, andava eu de amores por certa menina, as figuras que um gajo faz nestas ocasiões, até o recreio em Inglaterra se lhe afigura romântico. O mui ordinário prosador romano Gaius Petronius, esse Quim Barreiros da Antiguidade, avisava-nos que a beleza e o senso comum raramente andam de mão dada, isto dizia ele há quase 2000 anos, Mariazinha deixa-me ir-te à cozinha. No meu caso, a procura da beleza levou-me à prática do rock climbing (escalada), para mal dos meus pecados, que são muitos e geralmente de baixa qualidade.
Ia um grupo numeroso, madrugáramos, dois de nós éramos estudiosos do Cosmos, o outro era um astrofísico que andava permanentemente com os neurónios atulhados de ecstasy e LSD, dizia que só assim conseguia fazer investigação científica, o rapaz fez carreira. E havia um tal de George que era nobre, e tinha um sorriso de semicolcheia, nariz à Cyrano de Bergerac e orelhas de abanico a condizer, fala-se muito de incestos na aristocracia britânica, de inbreeding, e de facto nota-se. A família do George tinha terras ali perto, ficaríamos numa mansão sua na segunda noite, ele ainda nos convidou para ir caçar raposas, mas mandaram-no calar com os direitos dos animais e mais coisas de bife.
A concluir ia um lunático a quem chamavam Pete, imagino que quem se arrisca por prazer a despenhar-se por uma falésia também não lhe faça mossa nenhuma fazer ultrapassagens milimétricas. Contaram-me que uma vez o Pete partiu os dois retrovisores numa única ultrapassagem, colhidos cada um pelo seu carro – pelo que ele ia a ultrapassar e pelo que vinha na direcção oposta – e tomando como amostra o que presenciámos nesse dia, esta história é credível. Enfim, ia já num grande sobressalto antes de começar a escalar rochedo acima, morre-se menos nas estradas de Portugal.

Para mim era um baptismo de fogo, nunca tinha feito alpinismo. Ensinaram-me nesse mesmo dia os rudimentos da arte em coisa de minutos, isto é fácil vais ver, e começaram eles por subir, tu vês os outros e imitas, não custa nada. Havia no nosso grupo dois italianos, que assim que chegaram as unhas às rochas exclamaram “Porco Dio!” e passaram o resto do dia sentados à parte, refastelados a fumar e a mandar bocas espirituosas, não percebi de imediato porquê.
Neste local de renome – Stanage, vem gente de todo o mundo – as escaladas são feitas em paredes de rocha de uns 10 a 30 metros de altura, que se estendem por centenas de metros em cada troço. A ideia é trepar da base até ao topo por várias rochas marcadas, com ou sem a ajuda de cordas, dependendo da habilidade de cada um, mas invariavelmente pode-se caminhar até lá acima por uma vereda, é tudo um jogo, podíamos estar dentro de um pavilhão desportivo.
Isto com uma pequena diferença. Ora porque é que os italianos blasfemaram tão pouco cristãmente e desopilaram dali com tanta sobranceria? Estamos no centro de Inglaterra e os rochedos estão gelados, até no Verão, e isto deu-se em Janeiro. Metemos os dedos nas fissuras onde nos podemos apoiar e parece que os mergulhámos em azoto líquido, que se vão estilhaçar como borracha congelada. E é neste estado que temos de nos içar, com dedos dormentes e insensíveis, começamos a subir e muito em breve fica tudo uma abstracção, um estado etéreo, estamos a escalar com braços que não existem, a puxar para cima um corpo que deixámos de sentir, ao menos se cairmos dói menos.
Chega a minha vez e começo a escalar atado a uma corda de segurança pendurada lá de cima, passada por arneses e freios, e quem a controla lá em baixo é “ela”, tens a minha vida nas mãos ó minha linda. E é também ela que vai gritando instruções, eu estou todo embevecido, nem processo bem a informação. Não só não faço ideia do que fazer, como sou incapaz de sentir o mundo material, sou um cubo de gelo chamado João. Subo um metro ou dois, aquilo no princípio nem é difícil, até que de repente acabam-se as brincadeiras; por cima de mim estava um pilar de rocha com uns dez metros de altura e por muito que esgravatasse e que a desgraçadinha lá de baixo me gritasse o que fazer, não estava a ver como alçar-me por aquilo acima.
Ao fim de um quarto de hora o pessoal do nosso grupo começa a perder a paciência, este gajo não se despacha, desata tudo a assobiar e a berrar coisas desagradáveis e francamente desnecessárias, tipo estes gajos portugueses não podem nem saem de cima, o espírito de Quim Barreiros está connosco. E tudo isto em frente dela: os enxovalhos que um homem tem de sofrer nesta vida!
Vou-me enregelando cada vez mais, deprimidíssimo, as instruções que ela me vai dando vão fazendo cada vez menos sentido. Até que de repente, não sei se pelas insinuações sexuais dos insultos, tive uma iluminação Em vez de fazer o que dizem, enrolo as pernas e os braços em volta do pilar, abraço bem a rocha, e com uma série de movimentos pélvicos começo a subir, apoiado ora nas pernas ora nos braços, tal e qual um macaco a trepar uma palmeira, ao que parece aquilo visto de baixo tinha um ar altamente obsceno, olha para o que lhe havia de dar, agora está a ter relações sexuais com um penedo, sai de cima que é melhor …….”

E o episódio caricato e perigoso continua, a lembrar que as aventuras de Fernão Mendes Pinto por terras da Ásia, tão absurdas de dificuldades e obstáculos, que deram origem à paródia com o seu nome – Fernão Mentes? Minto – podem muito bem ser verdadeiras, continuadas que foram por um corajoso e aventureiro português de agora, por muita galhofa que tenha sofrido pelos companheiros da escalada, de humilhação  idêntica às que aquele sofreu e que referiu na sua «Peregrinação».
Mas a seriedade retoma, no pormenor social implicando acerba crítica à desumanidade e vaidade inglesas, de interesse autoglorificador, sob a máscara do proteccionismo social:

«Há em Inglaterra um submundo de gente que vive “on the dole” (do subsídio de desemprego) e não faz outra coisa senão escalar com alucinogénios. Uma vez por semana vão à cidade angariar fundos e víveres, organizar o reabastecimento de droga, e o resto do tempo passam-no a escalar, acampados perto de rochedos, estão entre os melhores do um mundo. Basta ler artigos sobre esta gente nas revistas da especialidade, tipicamente elegias fúnebres a bacanos que se despenharam, dentro e fora do crânio.»…

Ao menos, o nosso subsídio é distribuído sem exigência de retribuição glorificadora nacional, esmoleres que somos, habituados a uma generosidade sem estímulos.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Moïra



Não admira, dado o velho hábito de consulta do oráculo, que os gregos se tenham deixado arrebatar pelas falsas promessas das suas pitonisas modernas, seguindo as interpretações sibilinas destas dos rumos a seguir, certamente que na mira, de uma mudança choruda no seu próprio destino de pitonisas. Mas é assustadora esta armadilha em que se deixaram envolver, para obterem ventos favoráveis para a conquista de nova Tróia, aparentemente mais complicada do que a antiga.
Se é como afirma o artigo de Rui Ramos, publicado no “A Bem da Nação” parece uma miserável trapaça de um grupo de meninos brincalhões da actualidade grega, que não se importaram de fazer promessas mistificatórias de salvação da pátria, com o cavalo salvador da sua astúcia, esquecidos de que Tróia já foi, não volta a ser:

NÃO HÁ REVOLUÇÕES GRÁTIS
Quem derrotou o Syriza não foi a pressão da Alemanha, foi o medo que o Syriza tem dos gregos, a quem mentiu e enganou para ganhar as eleições.
Já todos sabemos o que conseguiu o Syriza: em vez da troika, passou a haver "instituições"; em vez do programa, "acordo"; em vez de credores, "parceiros"; em vez de austeridade, "condições".
Enfim, a transfiguração semântica servirá para muita coisa, mas não chega para esconder que o Syriza enganou os gregos, quando, para ganhar as eleições, prometeu que bastava dar dois berros à Merkel para tudo se tornar fácil. Agora, como todos os mentirosos, resta-lhe continuar a mentir, recorrendo ao delírio verbal consentido pelos seus parceiros europeus para inventar "batalhas ganhas" em guerras perdidas.
Na Grécia, à esquerda e à direita, já muita gente percebeu a "ilusão" encenada por Tsipras e Varoufakis. Manolis Glezos, o patriarca do Syriza, com um sentido da decência que os seus correligionários mais novos não têm, pediu entretanto as devidas desculpas ao povo grego. Há quem diga que ficou tudo na mesma. Não, tudo ficou muito pior, porque o circo do Syriza deixou a Grécia mais isolada, mais desacreditada, mais fraca, e mais longe da recuperação económica. O saldo orçamental primário, por exemplo, já desapareceu. Com inimigos destes, a troika não precisa de amigos.
No exterior, o clube de fãs do Syriza vai tentar fingir que este foi apenas mais um caso de prepotência alemã. Não foi nada disso. A Grécia não é um país ocupado e não estamos no século XIX. Ninguém iria bombardear Atenas para forçar o pagamento da dívida, como aconteceu ao Egipto em 1882. Então, porque é que o Syriza não ousou romper as negociações, renegar a dívida, sair do euro, afirmar a soberania, e em vez disso se submeteu a um acordo duríssimo? Não foi por causa da "pressão europeia", mas porque teve de reconhecer que não existe na Grécia uma maioria para romper com a União Europeia, o euro, o "capitalismo" e a "democracia burguesa", como desejariam os revolucionários da extrema-esquerda.
Na Europa do sul, os que têm imediatamente a perder com uma revolução são a maioria, ao contrário do que acontece, por exemplo, na Venezuela, o país-modelo do Syriza. A hemorragia de dinheiro dos bancos foi um sinal da pouca inclinação da Grécia para sacrificar as suas poupanças e patrimónios numa aventura fora da União Europeia (desde o começo da crise, os depósitos em relação ao PIB já caíram de 131% para 77%). O Syriza cedeu porque teve medo do que lhe fariam os gregos se por acaso Varoufakis voltasse a casa para anunciar uma desvalorização de 50% sob a forma de um novo dracma. A alternativa foi chamar "instituições" à troika.
O truque dos contestatários do ajustamento e das reformas na Europa do sul tem sido o de fingir que toda a população está com eles. Não está. É óbvio que ninguém gosta de cortes e pouca gente está entusiasmada com mudanças. Mas também é óbvio que quase toda a gente sabe que as alternativas são piores. Os programas de assistência evitaram bancarrotas e pouparam os vários países a tormentos muito maiores do que os que infligiram. É por isso que, apesar de todas as dificuldades, a Grécia aguentou cinco anos de troika, e agora, com o Syriza, preferiu continuar sob as "instituições" (para usar o novo vocabulário grego).
No passado, ajustamentos do tipo que a Grécia experimentou deram resultados rapidamente, como sucedeu em Portugal a partir de 1985. Agora, não. Há quem explique a dificuldade pelo modo como a zona euro funciona, impedindo desvalorizações e não prevendo transferências entre países. Com todo o respeito, parece-me que não é bem essa a questão: transferências há, o que não há é muita vontade de efectuar o equivalente interno das antigas desvalorizações da moeda e muito menos ânimo para sanear e modernizar administrações, ou abrir e flexibilizar mercados. Por isso, a inflação, com a sua "ilusão monetária", continua a parecer a muitos especialistas indispensável para restaurar a competitividade de países como a Grécia.
O problema da Grécia é que não deseja voltar à desvalorização e à inflação, mas não conseguiu ainda organizar-se para existir de outra maneira. A questão é fundamentalmente política: não há, na classe dirigente, muita gente disponível para se comprometer num projecto reformista. Em França, Hollande teve de recorrer ao poder presidencial para fazer passar a lei Macron, de modo a dispensar os deputados socialista de sujarem as mãos em reformas.
As classes dirigentes falharam, mas o seu falhanço serviu mais uma vez, no caso da Grécia, para tornar manifesta a insustentável irrelevância da chamada "esquerda radical", a quem a crise emprestou um simulacro de vida. Não há revoluções grátis. Por isso, no mundo actual, onde não há petróleo, não há revolução. Até o Podemos, em Espanha, parece não dispensar o dinheiro venezuelano. Sem rendimentos petrolíferos, a "esquerda radical" não é mais do que retórica, colarinhos abertos, cachecóis – e mentiras.
23/2/2015
 Rui Ramos

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Pavão




Maria Luís Albuquerque é uma figurinha que se tem imposto pela serenidade e firmeza das suas respostas quando é confrontada com as opiniões geralmente excitadas dos que discordam das políticas do Governo. E esses e essas, que ganharam novas forças com a vitória dos camaradas gregos de cor, têm-se esforçado por destruir o bom nome do seu país, que preferem caloteiro, e não olham a meios na sua aparente preocupação pelos que mais sofrem e até são forçados a sair dele em busca de sobrevivência. Não lhes importam as boas notícias sobre os frutos das políticas que os ministros trazem à ágora, troçam despudoradamente e sem educação dos governantes pacientes, pelejando em desgrenhadas vozes pela sua dama – a da ideologia do sentimento, que já estava inserida no nosso fado antigo do coitadinho/inha e na versão trocista do agradecimento humilde do “òbrigadinho é o que eu lhe desejo”.
O certo é que as alfinetadas velhacas sobre a posição de subserviência de Passos Coelho face ao estrangeiro, donde nos veio o pão, que ele pretende pagar, como pessoa honrada, colheram adeptos, na imprensa alemã também, que, ao que parece, se referiu ao posicionamento de dureza do nosso ministro e da nossa ministra das Finanças, relativamente à questão do financiamento europeu dos gregos.
E o sr. Varoufakis assim o entendeu, pois não deixou de o apontar, em falsos sorrisos de falsa compreensão dessa dureza, sugerindo atitudes rasteiras de vilões pobrezinhos que já passaram pelo mesmo e não são solidários com o problema dos outros.
Custa-me a crer que assim tenha sido da parte de Maria Luís Albuquerque, que se defende afirmando que nem uma vírgula mudou às exigências do euro-grupo.
Acredito nela. E a imagem de Varoufakis, contorcendo o tronco, a cabeça altiva ditando ditirambos sardónicos de alegre mistificação, não de louvor mas de chufa, lembrou-me o galo emproado do galinheiro, em torno das frangas desprotegidas, soltando o seu cocorocó dominador.
Na realidade, não vejo motivos para cocorócó.