quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Rico bago da nossa alma



Falou-se um pouco de tudo, como pessoas aclimatadas aos tempos, saúde de pessoas conhecidas, os netos, notícias de jornais, tudo muito actual com o seu quê de mexerico bem intencionado, como, aliás é pertença habitual dos mexericos, ditados pelas pessoas de boa formação moral, que somos todos nós no mundo cristão. Falou-se do Banif em maus lençóis, mas logo a nossa amiga embirrou com a designação, achando que os maus lençóis pertenciam antes aos que tinham confiado ao tal Banco as suas poupanças, os donos do Banco sempre dormindo em lençóis de cambraia, metaforicamente falando e ambas – a minha irmã e eu – concordámos, embora sugeríssemos que a cambraia devia ser pouco macia, mesmo a metafórica. Eu pelo menos há muito que aderi aos térmicos, pelo menos no inverno, e não dispenso mesmo assim o saco cheio de água quente, pensando virtuosamente, do meu “quentinho”, nos sem abrigo e sem saco. Falámos nas figuras ridículas de Sócrates e a minha irmã informou que ultimamente se tem debruçado sobre o Correio da Manhã que não poupa o Sócrates, mas a nossa amiga, de olhos faiscantes de malícia e bem-estar, agora que o Costa do seu poleiro promete obra, explicou que o cavaleiro não da triste figura mas das figuras tristes «- Ainda vai ser presidente da república! Ainda o governo o vai indemnizar.» Mas acho que o disse só para nos provocar, que às vezes até parece que não se lhe dava que assim acontecesse, o que me deu raiva, tal como ao Solnado, e lembrei mesmo as coisas perversas que a esquerda vai erguendo em cada dia sobre os anteriores governantes, os de direito próprio, para ver se os trama e enterra de vez.
Já a minha irmã tinha falado de Macau, segundo um artigo que lera, a propósito das muitas terras que perdêramos, Macau mais próspero agora, e até mais amplo, a ilha conquistando terras ao mar - como fizera a Holanda com os seus polders - para dilatar os seus espaços e construir os seus edifícios, os seus casinos, numa era de riqueza e modernidade. Dantes, parece que também dava dinheiro mas aos habitués do costume, que o arrecadavam em sítios pessoais - como fazem por cá ainda hoje os donos dos bancos, os dos lençóis de cambraia - e por isso não poderemos nunca construir polders, o mar, pelo contrário, é que nos vai engolindo, como polders às avessas.
Mas a minha irmã saiu-se com uma frase plena de doçura e abismei-me com ela, que atribuí a esta quadra natalícia - embora, na questão dos pratos, cada dia sejamos marcados com a realidade saborosa da cozinha portuguesa nas programações televisivas: «- Somos um exemplo para o mundo. Tudo o que tivemos entregámos em paz» - mas  eu nem tive tempo de unir as mãos em doce  respeito e fervor, porque ela logo acrescentou: «- Mas agora aquilo está péssimo, com milhões de gente pelas ruas…»
E a nossa amiga de acrescentar: «- O Maputo está igualzinho, se não pior que Luanda. As pessoas deixaram de conviver.» Falava da população branca. «- Aquilo foi-se abaixo das canetas. Baixou o petróleo … a filha do coiso não é dona de Portugal? O coiso, o Zé…» e a minha irmã a dar-lhe troco: «-Há 40 anos no poder! Como é possível?»
Timidamente alvitrei que nisso, de longevidade governativa, o Alberto João também quase chegara aos calcanhares do Zé, e fizera obra, ao que parece, mas argumentaram que, sem petróleo não poderia ter ido longe se lhe não fosse parar às mãos o dinheiro externo que viera parar primeiro aos do continente.  E a nossa amiga tristemente, voltando ao coiso: -«Ui! minha nossa! Angola podia ser um país riquíssimo!»
O sacrossanto dinheiro! E lá voltamos ao mesmo, nesta roda giratória, o bago, que já utilizara um tal Gonçalo da Redacção da Tarde, onde Ega fora suster a publicação de um artigo obsceno de Palma Cavalão contra Carlos da Maia: Hoje é o facto positivo, - o dinheiro, o dinheiro! o bago! a massa! A rica massinha da nossa alma, menino! O divino dinheiro!» Ou, como a “Boneca” do irmão da “Ofeliazinha” de Fernando Pessoa, Carlos Queirós, a ocupar todos os interstícios das vidas modernas: «A boneca! A boneca!», o rico bago...
Teatro da boneca
A menina tinha os cabelos louros.
A boneca também.
A menina tinha os olhos castanhos.
Os da boneca eram azuis.
A menina gostava loucamente da boneca.
A boneca ninguém sabe se gostava da menina.
Mas a menina morreu.
A boneca ficou.
Agora também já ninguém sabe se a menina gosta da boneca.
E a boneca não cabe em nenhuma gaveta.
A boneca abre as tampas da todas as malas.
A boneca arromba as portas de todos os armários.
A boneca é maior que a presença de todas as coisas.
A boneca está em toda parte.
A boneca enche a casa toda.
É preciso esconder a boneca.
É preciso que a boneca desapareça para sempre.
É preciso matar, é preciso enterrar a boneca.
A boneca.
A boneca.
Carlos Queirós

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