quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

O peixe, prato de civilidade



«Na Ilíada não se come peixe», um engraçado artigo de Pedro Bidarra, encimado com o trocadilho “Coisas bidarras”, indicador do espírito que a ele preside, de crítica e de tolerância, na aceitação do espírito ocidental, identificado com o da cidade, de bem-estar epicurista, onde o peixe é prato de requinte, contrastando com o da tenda, no seu significado de primitivismo raivoso, devorador de carne, como aquele a que regressam os islamitas hoje, assaltando a “cidade”, em retaliação extremista pela vida de liberdade prazerosa ocidental, contrária à sua doutrinação de rigor fundamentalista, que pretende impor-se no mundo, não como expressão de qualquer filosofia estóica, mas por mera bestialidade assustadora, que o mundo ocidental vai favorecendo, deixando-se invadir altruisticamente pelas hordas sucessivas, talvez provenientes do terror que se vive nos países de origem, talvez por ambição de mudança para um mundo mais afortunado e livre, mas indiscutivelmente perigosas para a paz, pois que nelas se infiltram esses espécimes aterrorizadores dos fanatismos embrutecedores. O espírito da cidade, contrário ao da tenda, da tenda onde Aquiles amuou durante dez anos, por ultraje recebido do seu chefe Agamémnon que lhe usurpou a escrava Briseida, o das mais tendas estabelecidas em torno de Tróia por esse amuo eterno a que a morte de Pátroclo pôs fim, com o despertar de Aquiles para a vingança sobre o comedido e responsável Heitor, na carnificina que se seguiria, com a destruição da cidade troiana, do bem-estar e da paz.
A história repete-se, sempre se repetiu. Sem o espírito épico desses tempos de luta corpo a corpo. Agora a guerra é perfeitamente traiçoeira, de fabrico proveniente do progresso, quer se trate da bomba inesperada, quer dos rostos escondidos bem armados no seu ódio idiota e lorpa, quer o que provém da ambição dominadora já não só lorpa por que bem armadilhada de progresso e indústria.
Mas as cidades reconstroem-se, não há dúvida. A história repete-se. Tirando a de Troia que poderá ficar no indefinido do mito. A natureza é que poderá não estar pelos ajustes, no seu contributo para o arrasamento da cidade e dos cidadãos.

Na Ilíada não se come peixe
O primeiro livro da nossa literatura é sobre o cerco da cidade. No fim a cidade perde. Troia acaba queimada e saqueada, as suas mulheres violadas, levadas como escravas, as crianças e os seus pais mortos.
Os gregos que cercaram e saquearam Troia não eram os gregos que aprendemos a admirar - os da filosofia, da democracia, da matemática e da geometria. Esses, os que inventaram o nosso pensamento, só apareceriam passados mais de mil anos. Os gregos que cercaram Troia eram bandos de guerreiros e facínoras cujos antepassados tinham chegado a cavalo do Norte à procura do seu lugar; era gente que ainda não tinha palácios nem estátuas, só armas e rebanhos.
Os gregos clássicos, que consideravam o peixe uma iguaria, não entendiam por que razão os seus antepassados homéricos não o comiam, estando como estavam sempre perto do mar. Na Ilíada (e na Odisseia) ninguém come peixe. Só carne. Hecatombes de bois, como narrava Homero. Hábitos trazidos das estepes, onde a alimentação do brutamontes guerreiro era feita à base de carne vermelha. A sofisticação do peixe não era ainda para aqueles primeiros gregos.
Ao ler a Ilíada hoje é difícil não pensar que a história não seja outra coisa que repetição. Por muita fé milenarista que possamos ter, acaba por ser sempre a mesma história. Afinal a nossa biologia é igual à dos gregos saqueadores de cidades, dos troianos mortos e das troianas violadas e feitas escravas. Não mudámos muito.
Se estes gangues de terroristas islamitas que assolam a Europa triunfassem, como triunfaram os gangues gregos sobre Troia, quantos mil anos demoraria a nascer de novo a cidade?
Quantos mil anos lhes levaria a entender que o pensamento gera riqueza e bem-estar, que a paz é próspera, que a diferença enriquece, que as estátuas inspiram, que lei é o mais igualitário dos instrumentos e que a mulher é metade do todo.
Quantos mil anos demorariam a evoluir como evoluíram os gregos de facínoras a filósofos?
Quantos mil anos para tolerarem, como nós toleramos no nosso seio, os que nos querem destruir?
Não há acontecimento mais triste nas histórias da História do que o fim da cidade. Todo o tempo e energia investidos por gerações de homens e mulheres na organização da interação social, na invenção de tecnologias, no aprimorar do comércio, na troca de ideias e na produção de artefactos e de arte desperdiçados num ápice de força bruta e intolerância.
Ter as portas abertas é não só um dever da cidade como uma necessidade para a sua sobrevivência. A cidade fechada morre. Não há cidade sem comércio, sem o negócio da surpresa e da diferença. Pelas portas abertas da cidade entra a riqueza que a faz; mas entra também o cavalo. Não estarão estes novos "gregos" montados na tolerância que amamos como aquela gente amava os cavalos? Podemos até compreender e contextualizar os dois lados desta questão, mas esse é um exercício que só está ao alcance de quem está na cidade, sentado nos seus muros, olhando para fora e para dentro. Quem está fora não beneficia desta elevação. O ponto de vista dos gangues que nos acossam é outro. Eles apenas veem os muros que os excluem, imaginando e invejando as riquezas que eles encerram, ao mesmo tempo que desprezam os modos da cidade: educados, organizados, femininos, tolerantes.
Eu sou da cidade. E embora o fascínio por Aquiles, por gangues, por feitos heroicos ou pela beleza guerreira seja apenas um prazer literário, uma sublimação da masculinidade que a cidade tolera pouco, é talvez chegado o tempo de suspender a tolerância. Como os gregos clássicos, também eu gosto muito de peixe. Como gosto de croissants ao pequeno--almoço. Morte aos "gregos".

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