terça-feira, 29 de dezembro de 2015

«O Lodaçal»




«Apenas Carlos se sentou ao pé dela, D. Maria perguntou-lhe logo por esse aventureiro do Ega. Esse aventureiro, disse Carlos, estava em Celorico compondo uma comédia para se vingar de Lisboa, chamada o Lodaçal...
- Entra o Cohen? perguntou ela, rindo.
- Entramos todos, Sr.ª D. Maria. Todos nós somos lodaçal...» (Cap. X de “Os Maias”)

Vem o texto de Eça a propósito do artigo de João Miguel Tavares, bastante explícito na questão do dinheiro que nos foi emprestado para revitalizar o país e pagar a dívida pública e privada, apenas, a banca estando de boa saúde, ao que se pensava. João Miguel Tavares prova, contudo, que  assim não foi, sucessivamente a nossa banca vai falindo, aqui, ali, acolá, os banqueiros fraudulentos usando os dinheiros públicos não para os guardar honestamente e os devolver quando lhes for pedido, mas em proveito próprio, não resistindo ao poderoso atractivo do sinistro "metal" que pode melhorar as vidas dos pobres, em súbitos paraísos de possibilidades, e as vidas dos ricos em concretizações de ilimitado poder, esquecidos uns e outros, dos efeitos desastrosos do toque da campainha para “matar o mandarim”, ainda segundo a concepção de Eça de Queirós, para se enriquecer, mesmo à custa da miséria que vai causar na família do mandarim.
Ninguém, obviamente, resiste a “matar o Mandarim” para ficar milionário e experimentar os eflúvios do poder e da riqueza sobre o mundo, esquecidos do conceito “pó” em que nos tornamos segundo a Bíblia, que ainda desconhecia os componentes galácticos em que os astrónomos recentes e os telescópios potentes  nos submergem – pó, gases e estrelas à mistura, mais o buraco negro da absorção final aterradora.
Quando Ega recolhe à quinta da mãe, em Celorico de Basto, para se lavar dos maus sucessos da sua “estreia” em Lisboa, que julgara conquistar com o sucesso da sua verve satírica e da sua veia literária de contínua promessa irrealizada, já desde Coimbra, das suas “Memórias dum Átomo” e  afinal descambando no escândalo da relação com a judia Raquel Cohen, mulher do banqueiro Cohen, não se tratava ainda das fraudes bancárias, pão nosso de cada dia dos nossos dias. De facto, o banqueiro Cohen, tendo descoberto o adultério da esposa na sua sordidez real, propusera as bengaladas indignadas da purificação, mas a precaução social fizera-o retroceder para a viagem de recreio e de esquecimento do casal apaziguado. Quanto ao humilhado Ega, promete – promessa naturalmente não cumprida - desancar Lisboa na comédia “O Lodaçal”, escrita à sombra das faias de Celorico. Um “Lodaçal” sobre uma Lisboa pedantemente instalada nas suas vaidades e hipocrisias convencionais, a par da pelintrice decadente de uma estrutura social de eterna mesquinhez cultural e física.
De facto, não se tratava ainda deste escândalo dos nossos tempos, de desvergonha e aproveitamento fraudulento do dinheiro alheio de que somos impunemente espoliados e que João Miguel Tavares põe a nu no seu artigo.
As perversões de oitocentos serviram à sátira mas não favoreceram a ética. E é provável que os nossos “banqueiros” consigam voar para outros Celoricos, não para esconder a vergonha que lhes falta, mas para provar ao mundo que se deve sempre matar o “mandarim”.

Vem aí um novo resgate?
Público, 24/12/2015
Durante anos, venderam-nos que o grande problema de Portugal – e a grande razão para a intervenção da troika – era a dimensão desmesurada da dívida pública e da dívida privada, e não a falta de solidez do sistema bancário. A falta de solidez do sistema bancário era o problema da Irlanda e da Espanha. A dimensão da dívida era o problema de Portugal e da Grécia. Só que, de repente, a gente olha à volta e percebe o quão profunda é a nossa miséria: afinal, o problema do país é tudo. É a dívida pública. É a dívida privada. E é a falta de solidez do sistema bancário.
João Duque escreveu há dois dias no DN que nós estamos “a pagar pela reputação do sistema financeiro”. Mas qual reputação, por amor de Deus? O BPN foi ao fundo e passámos um cheque de cinco mil milhões para salvar a reputação do sistema financeiro. O BES foi ao fundo e passámos mais um cheque de três mil milhões para salvar a reputação do sistema financeiro. O Banif vai ao fundo e passamos outro cheque de três mil milhões para salvar a reputação do sistema financeiro. E eu pergunto: quanto mais é preciso pagar para salvar a reputação do sistema financeiro? Não será preferível admitir de uma vez por todas que a reputação do sistema financeiro português está ao nível da reputação nocturna das esquinas do Técnico e partir dessa triste, mas muito simples, constatação para tentar encontrar uma solução definitiva para o problema, como fizeram os irlandeses e os espanhóis?
Se bem se recordam, aquando do resgate de 2011, no pacote dos 78 mil milhões de euros que a troika entregou a Portugal estavam previstos 12 mil milhões para a recapitalização dos bancos nacionais. Ao mesmo tempo que em Espanha se injectavam mais de 40 mil milhões nos bancos, com a possibilidade de chegar aos 100 mil milhões, em Portugal só metade do pacote financeiro disponível foi então utilizado. A banca parecia sólida, o BES dispensou ajuda para evitar que o FMI metesse o nariz nas suas contas, o país celebrou uma “saída limpa”, e o resultado é o que se está a ver: a troika partiu, a linha dos 12 mil milhões foi entretanto extinta, e subitamente as necessidades de capitalização dos bancos não param de aumentar.
Recordo que há 10 dias o economista João César das Neves já afirmava que o buraco do Banif poderia ser demasiado grande para as actuais capacidades do sistema financeiro português. “É possível que tenhamos de pedir ajuda internacional”, dizia ele. Eu sei que nestas coisas é preciso ter cuidado com os alarmismos – mas não me parece que até agora as práticas não-alarmistas tenham sido particularmente eficazes. Aquilo que estamos a assistir no Banif é a uma nova falha da regulação, a uma nova ocultação da dimensão do problema e a uma nova nacionalização de dívidas privadas, sem que, mais uma vez, haja tempo para discutir o que quer que seja.
Mas há mais. O buraco no Banif é astronómico, o último Expresso anunciava que a Caixa reclama 400 milhões de euros, toda a gente fala nas necessidades de capitalização do Novo Banco e de como esse número pode ser assustador, quase ninguém fala nas necessidades de capitalização do Montepio para que o país não morra de susto; junte-se a Caixa ao Banif, o Banif ao Novo Banco, o Novo Banco ao Montepio, e há uma pergunta que tem obrigatoriamente de ser feita: o país tem dinheiro para pagar tudo isto? Ou temos um segundo resgate à vista? Não me alarmem – mas digam-me, por favor, que eu gostava de saber.

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