sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Não tenho palavras



O texto é uma explosão de alegria, de quem já viveu alegrias tamanhas e tão parecidas como esta, novo 25 de Abril para uma alma vibrátil, vê-se que justa e caridosa, que, ao que leio na internet, abriu para Karl Marx e fez finca-pé nele - «Só quem não viveu aqueles tempos é que pode pensar que os mais de seis anos passados entre o princípio da história e o seu fim não fossem seis séculos em que tudo mudou e tudo estava mudado.», leio na Internet, como frase sua. Outra frase retirada da sua biografia é que «Viria a aderir ao PCP (m-l) em 1972, de inspiração maoísta e de cuja secção Norte foi fundador.» Publicou livros, viveu na clandestinidade, até ao golpe de 11 de Março de 1975. Escritor, português, não digo a idade, que vem na internet, quer fazer uma Fundação com os seus livros, que são muitos, para ilustrar este país que precisa muito, parece que aderiu ao PSD, mas isso ninguém diria, e a vitória da esquerda encheu-lhe as medidas, como se nota por este artigo saído no “Público” em 28/11/15, autêntica girândola de foguetes, que pretende mostrar uma boa formação moral e muita cultura, além de um retorno aos brinquedos da infância, neste aplaudir entusiástico do seu wink wink, logo moderado por outros suspiros de dúvida transpostos nos sinais diacríticos de uma pontuação expressiva de variados sentimentos e precauções:

Acabou!!!! Acabou. Acabou?

Acabou!!!!
Experimentem dizer “acabou” junto de uma das inumeráveis vítimas destes anos de “ajustamento” e vão ver como é a resposta. Eu já experimentei várias formas e têm todas um ponto de exclamação no fim ou outro qualquer expletivo. Ou é um suspiro fundo de quem atravessou um trajecto complicado e, chegado a outro lado, respira longamente de alívio; ou é um alto e sonoro “acabou” como antes do 25 de Abril se chegava ao “às armas” da Portuguesa e de repente toda a gente gritava a plenos pulmões; ou é uma espécie de vingança saborosa em ver na mó de baixo aqueles que sempre entenderam que têm o direito natural de estar na mó de cima.
Ou há mesmo uma variante irónica, como se o “acabou” fosse semelhante ao do episódio dos Monty Python em que uma personagem num pub dizia para um eleitor circunspecto do PAF ao lado “you know what I mean?” e tocava-lhe nos braços numa cumplicidade admitida. Wink, wink. No episódio, depois queria vender-lhe fotografias pornográficas: “you know what I mean?” Aqui, era uma fotografia de Cavaco Silva a “indicar” António Costa, wink, wink. Até eu fico da escola do engraçadismo, imaginando alguns personagens que andaram a insultar a nossa inteligência, a mentir-nos descaradamente, e a atacar o bolso dos que não se podiam defender, culpando-os de “viverem acima das suas posses” e de serem “piegas”.
You know what I mean?”. Piu-pius governamentais que vivem no Twitter; irrevogáveis de geometria variável; o “impulsionador jovem” que aos saltos no palco dizia à assistência “ó meu, isso da história não serve para nada”; os “justiceiros geracionais” que queriam tirar as reformas aos pais e avós para em nome de uns abstractos filhos e netos as darem a “outros” pais e avós, bem vivos e presentes, em nome da “estabilidade do sistema financeiro”; os neo-malthusianos que nos encheram de simplismos gráficos em que se escolhiam os parâmetros e se excluíam outros para concluir que “não há alternativa”; os arrojados ultra-liberais, que queimam o valor dessa bela palavra de liberdade, e que proclamam que nunca, jamais e em tempo algum quereriam “casar” com as “esganiçadas” do Bloco, sem sequer perceber o que lhes diz o espelho; as mil e um personagens ridículos cuja desenvoltura vinha de terem poder, estarem encostados ao poder e entenderem que tinham impunidade para pisar os outros porque eram mais fracos e tinham menos defesas. Vamos todos dançar a tarantela para expulsar o veneno.
Acabou!!! Sabem ao que me refiro? Sabem, sabem. Bem demais.

Acabou.
Acabou. Percebe-se no ar que chegou ao fim uma época, um momento da nossa vida colectiva e que existe um desejado ponto sem retorno. E, na verdade, para “aquilo” já não é possível voltar, pode ser para outra coisa pior ou para outra coisa diferente, mas para o mesmo já não há caminho.
O modo como “acabou” conta muito, porque é diferente dos modos tradicionais da vida política portuguesa. Se o governo PSD-PP tivesse acabado nas urnas por uma vitória do PS mesmo tangencial, o efeito de ruptura estaria muito longe de existir, mesmo que o governo PS não fizesse muito de diferente do que o actual governo minoritário vai fazer. Foi a ecologia da vida política portuguesa que mudou, com o fim da tese do “arco de governação” e, mais do que qualquer solução, que pode ser precária, não durar ou acabar mal, acabou a hegemonia de uma das várias construções que suportavam a ideologia autoritária que minava a democracia nestes dias, a do “não há alternativa”.
Acabaram os votos de primeira e os de segunda, com o escândalo de também os votos de um torneiro numa oficina de reparações, que faz todas as opções erradas e tribunícias, é sindicalizado nos metalúrgicos, vive na margem sul, e vota na CDU, também valer para que haja um governo de pacíficos funcionários públicos e professores que votam no PS, ex-membro do “arco da governação”. Não é por amor ao governo de Costa, nem ao PS, é outra coisa, é porque não queriam os “mesmos” e foi essa força que os fez acabar. Vem aí o PREC? Se a asneira pagasse multa podíamos enviar os asneirentos num pacote para pagar a dívida e ainda ficávamos com um superavit.
Pode até não mudar muito, porque já mudou muito.

Acabou?
Não. Há muita coisa que não acabou. Há um rastro de estragos, uns materiais e outros espirituais, que não vão ser fáceis ou sequer possíveis de superar numa geração. Sempre que um jornalista fizer a pergunta pavloviana de “quem paga?” ou “quanto custa?” só sobre salários, pensões e reformas, ou seja aquilo que interessa aos que tem menos e nunca faça a mesma pergunta em primeiro lugar, e muitas vezes único lugar, para tudo o resto, benefícios fiscais, impostos sobre os lucros, “resolução” de bancos, PPPs, swaps, etc. ainda não acabou. Sempre que alguém “explicar”, com um encolher irónico dos ombros e completa e absoluta indiferença, a ineficácia da fiscalidade sobre a riqueza, porque os capitais “deslocam-se” como água para outros sítios, para offshores, e podem sempre fugir, e por isso “não vale a pena” sequer admitir tentar taxá-los, ainda não acabou. Sempre que se considera como normal que quem manda em nós, eleitores, portugueses, Portugal, são uns burocratas de Bruxelas e uma elite de governos europeus, que nos governam por “instruções”, “directivas”, “regras”, interpretadas rigidamente para países como Portugal e com ampla folga para países como a França, ainda não acabou. Sempre que o dolo, a violação da confiança e dos contratos com os de “baixo” e a inviolabilidade com os de “cima”, continuar a ser a prática de um estado de má-fé, ainda não acabou. Sempre que se cultive, dissemine, impregne, envenene a vida pública com a indiferença com a pobreza, o desemprego, a quebra de qualidade de vida, a perda de dignidade quando se vê a casa penhorada , ou se perde o carro na frágil classe média que criamos depois do 25 de Abril, retirando da pobreza muitas famílias para lhes dar outros horizontes pelo trabalho e, aos seus filhos, pela educação, e se vê tudo isto como efeitos colaterais não se sabe de quê, embora se saiba para quem, ainda não acabou. Sempre que se despreza os que vivem com dificuldades do seu trabalho e se valorize a esperteza e o subir na vida, ainda não acabou. Sempre que se violam direitos sociais, protecções aos que menos força têm, reivindicações de gerações inteiras, ainda não acabou.
Sempre que se acha que isto é radicalismo e não decência, ainda não acabou.
Pode até não mudar muito, porque já mudou muito.»

Acabo. Afinal, eu não tenho palavras para tão digno fardo sentimental. Prefiro imaginar na boca de Pedro Passos Coelho e de Paulo Portas, os versos tristes de Soares de Passos, poeta de muita dor, também autor do “Noivado do Sepulcro”, que a minha mãe cantava e me ensinou, melodia desenterrada dos finais do século do nosso ultra-romantismo. Só aqueles poderão condignamente responder a José Pacheco Pereira, com a respectiva dor da separação, mesmo sem melodia, mas com muita fé no porvir:



Partida
Ai, adeus! acabaram-se os dias
Que ditoso vivi a teu lado;
Soa a hora, o momento fadado;
É forçoso deixar-te e partir.
Quão formosos, quão breves que foram
Esses dias d’amor e de ventura!
E quão cheios de longa amargura
Os da ausência vão ser no porvir!
Olha em roda estas margens virentes:
Já o outono lhes despe os encantos;
Cedo o inverno com gélidos mantos
Baixará das montanhas d’além.
Tudo triste, sombrio, e gelado,
Ficará sem verdura nem flores:
Tal meu seio, privado d’amores,
Ficará de ti longe também.
Não sei mesmo, não sei se o destino
Me dará que eu te abrace na volta…
Ai! quem sabe onde a vaga revolta
Levará meu perdido baixel ?
Sobre as ondas, sem norte, e sem rumo,
Açoitado por ventos funestos,
Sumirá por ventura seus restos
Nas voragens d’ignoto parcel.
Mas ah! longe esta ideia sombria !
Longe, longe o cruel desalento !
Após dias d’amargo tormento
Virão dias mais belos talvez.
Dá-me ainda um sorriso em teus lábios,
Uma esperança que esta alma alimente,
E na volta da quadra florente
Eu co’as flores virei outra vez.
Mas se as flores dos campos voltarem
Sem que eu volte co’as flores da vida,
Chora aquele que em tumba esquecida
Dorme ao longe seu longo dormir;
E cada ano que o sopro do outono
Desfolhar a verdura do olmeiro,
Lembra-te inda do adeus derradeiro,
Deste adeus que te disse ao partir!

Autor: Soares dos Passos (1826-1860)

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