domingo, 6 de dezembro de 2015

Manon Lescaut



Vontade de falar de “Manon Lescaut” do abade Prévost, que releio - na analogia do seu enredo de abismos com os que vivemos no nosso país - me deu a “Pluma caprichosa” de 28/11, de Clara Ferreira Alves. Uma história de «um amor grande como um mar sem praias», retirando-lhe o tom faceto que preside aos excessos descritivos vocabulares dos amores de Cesário Verde com a sua “triste Helena” do poema "Setentrional”. Um amor intenso, uma paixão absoluta, feita de todos os excessos e de todas as renúncias ao bom senso, ao respeito por si próprio, a quaisquer perspectivas de miséria ou fome ou frio, ou prisão, ou morte, ou rejeição social, intercalados os momentos de penúria, de abjecção, de dor, com os momentos de total harmonia e carinho amoroso, neste par original, bem distinto do Paulo e Virgínia ou até mesmo de Margarida Gautier, a dama das camélias, cortesã que igualmente morrerá, rejeitada que foi pela família do amado Armando Duval. Bem distinto ainda do romance epistolar de Choderlos de Laclos, “Les liaisons dangereuses”, e do seu requinte analista da libertinagem aristocrática do século XVIII, e da sua problemática psicológica que dita os comportamentos de perversidade ou sensuais ao longo da obra. Outras novelas se poderiam citar, quer na literatura inglesa, quer na francesa, sem excluir o “Werther” de Goethe, que havia na estante do meu pai e me acompanhou em leitura de adolescência, bem como as aventuras do engenhoso fidalgo Don Quixote da Mancha, ou mesmo o pícaro Don Pablo de Ségovie, “El Gran Tacaño" de Quevedo, creio que prémio escolar em tradução francesa que o meu pai recebeu em Macau, nos seus estudos liceais feitos ali, durante os anos de tropa.
«Un homme et une femme» do século XVIII, uma bela e triste jovem de dezoito anos, amada pelo jovem de boas famílias, des Grieux, que a salva do convento onde os pais a enviam para ser religiosa e assim reprimir as suas tendências de libertinagem que, em jeito fatalista, ela considerava virem a ser causa da sua infelicidade. Ambos escondem os seus amores, em promessas de dedicação mútua e definitiva. Incapaz de suportar a miséria, a frágil e volúvel Manon entrega-se a um senhor B que denuncia des Grieux ao pai deste, fazendo que seja recuperado pela família da qual só por astúcia em manifestações de mudança e esquecimento consegue livrar-se, decidido a seguir os estudos sacerdotais. A sua fama chega aos ouvidos de Manon que o visita no parlatório com lágrimas de humildade e beleza convincentes e justificações da sua traição só por amor por ele, efectuada, já que o senhor B pagava bem e ambos poderiam usufruir do sacrifício da dedicada Manon. A nova queda do futuro sacerdote é imediata e a história prossegue, nas ambiguidades de Manon, no seu desvelo amoroso, na indiferença pelo Mal, com o perdão de des Grieux, e o no clima passional estigmatizante e avesso a quaisquer pruridos de bom senso, a que o amigo de Grieux - Tiberge – vai acudindo com conselhos e auxílio financeiro, mas o enredo evolui em divergências de felicidade e vício, favorecido este pela intervenção de um irmão de Manon – Lambert - figura de sordidez, oportunismo e falta de escrúpulos, ele próprio comandando as vidas dos dois jovens, nos seus truques de sobrevivência que manipulam a irmã e o beneficiam a ele.
Um discurso de primeira pessoa, tanto do narrador inicial, no presente, como do próprio narrador des Grieux, em retrospectiva de desabafo agradecido, pelo auxílio financeiro pelo primeiro prestado aquando do embarque para da América da doce Manon degredada, que des Grieux irá acompanhar, em grande dedicação mas em penúria extrema. Um livro de aventura rocambolesca, de prisões, degradações e truques mas de demonstração de um amor infinito, que tudo sofre na vileza mas igualmente no admirável de uma paixão superior a todo o preconceito. O final da história refere uma Manon bem amante, fugindo para a selva com o seu amado por sua causa perseguido, ela cada vez mais debilitada, ele despojando-se das suas vestes para a cobrir e agasalhar e afinal a enterrar, deitando-se, seguidamente, semi-nu na campa que para ela cavou, na esperança de morrer também. Des Grieux acabará por ser salvo pelo amigo de sempre, Lambert, regressando a França, para retomar a vida.
Uma novela francesa do século XVIII como nunca produzimos em Portugal, mais votados aos lirismos, à epopeia, à literatura de viagens ou à prosa oratória ou historiográfica. A nossa produção novelesca apenas se iniciaria por alturas do romantismo, com vários participantes que também existiam na estante do meu pai, e que culminavam no burilador de enredos “leves” – os nossos preferidos, de minha irmã e meus – Júlio Dinis e a sua obra aprazível, de criatividade, sedução e o necessário conhecimento humano e de costumes, com sugestões de anti-clericalismo e de contemporaneidade, no apontamento social não zurzido a vergastadas excessivamente críticas, como o fariam os escritores neo-realistas do século passado, de que ainda hoje sofremos o efeito clamoroso e redundante.
Vem, pois, este assunto a propósito do artigo da “Pluma Caprichosa” de Clara Ferreira Alves – “Meu caro João Soares” - no qual aconselha o novo ministro da cultura a preservar os nossos escritores mortos, em novas edições completas, e a passear os poemas dos nossos poetas nos autocarros da nossa indolência ledora. E recordei uma vez mais autores do século XX do meu desagrado, entre os quais Vergílio Ferreira que, mau grado a escrita vária do seu experimentalismo literário constante, nunca conseguiu atrair-me, no maçudo de um discurso de análise intimista ou abstracta, em busca dos porquês e dos comos das transcendências ocultas à percepção humana. E isso me levou a Manon Lescaut, uma novela clara, movimentada, não pretensiosa, mas denotando argúcia na descodificação dos caracteres, de contrastes fundos entre o muito amor e a muita perversidade, ou antes, a incapacidade de Manon de reconhecer o erro das suas atitudes menos convencionais, ou a singeleza com que des Grieux esquece as convenções, totalmente dominado pela paixão avassaladora.
E, muito embora reconheça o alcance duma tal medida de publicação das obras completas dos escritores consagrados, julgo que esses modernos já estão suficientemente consagrados, mau grado a multiplicidade de publicações que enchem as prateleiras das livrarias com toda a casta de livros. Por mim, caso houvesse dinheiro para gastar nesses autores, preferiria trazer à ribalta novamente as edições dos clássicos da Sá da Costa, que João Gaspar Simões em boa hora se lembrou de revelar e que tanta luz vieram trazer ao nosso espólio cultural, que, extinta a Sá da Costa, conviria repor. Para não morrermos ainda, em regresso às origens e detectar se valeu a pena.

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