quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

A propósito de Buda



Nunca as férias do Dr Salles se limitam a uma simples função de diversão e prazer físico, porque nos seus passeios colhe experiências e saberes que generosamente partilha no seu blog, juntamente com as expressivas imagens com que acompanha os suas descrições. Das suas férias pela Índia, pelo Sri Lanka, de que tem feito o relato, nunca banal, ora sério e crítico, com expressivas imagens,  – caso da velha indiana miseravelmente abandonada pela família também pobre, e que o mundo farto ignora, ora de descritivo em que não faltam reflexões graciosas e fotos acompanhantes, como o artigo sobre o próprio Sri Lanka, que progrediu bastante, ao que parece, o texto que transcrevo, de  «MUITAS E DESVAIRADAS GENTES» é já o nono da série:

MUITAS E DESVAIRADAS GENTES – 9
No princípio era o Verbo...
Sim, tudo começou por não existir e assim foi que também o Budismo começou por ser apenas uma filosofia e hoje é uma das mais importantes religiões neste mundo dos homens.
O Senhor Buda sempre afirmou ser um homem totalmente terreno, não divino. Como Cristo, nada escreveu: pensou por si próprio e ensinou os contemporâneos deixando aos discípulos a missão de escreverem os seus ensinamentos. E são estes ensinamentos que constituem a base do budismo como filosofia e que mais tarde se transformou em religião.
O que distingue a filosofia budista da religião budista são a característica terrena da filosofia e o carácter divinal da religião. Assim, pode-se ser filosoficamente budista sem se ter a fé budista mas não se pode ser crente budista sem se abraçar a filosofia budista. Mas é claro que, na prática, há muita fé que existe por si própria sem a específica base filosófica. Lá, como em toda a parte, como em todas as religiões.
Não será aqui que abordarei o Budismo e a sua exegese mas posso sugerir que os interessados consultem, por exemplo, https://pt.wikipedia.org/wiki/Budismo
Um dos ensinamentos budistas que mais prezo é o da práctica da compaixão, o mesmo comportamento a que os cristãos chamam amor: a preocupação com o próximo, o desapego do egocentrismo.
Como assim?
Muito bem, passo a explicar contando uma pequena história que em tempos li sobre um monge seguidor do Dalai Lama: perguntado sobre o que é a compaixão budista, o monge pediu a quem o escutava que imaginasse entrar numa sala e ver uma flor num vaso.
- Todos pensaremos em primeiro lugar se gostamos ou não daquela flor, se ela é bonita, enfim, se de algum modo nos satisfaz. Ou seja, todos teremos raciocínios ego centristas, egoístas, no limite. Todo o nosso raciocínio habitualmente se desenvolve em torno de nós próprios, dos nossos parâmetros e interesses. Mas se ao vermos a flor naquele vaso pensarmos que ela estaria muito melhor se pudesse apanhar directamente a luz do Sol e o ar fresco, se pudesse estar entre as outras da sua espécie... Então nós abdicávamos do nosso egoísmo, do egocentrismo e focávamos o nosso raciocínio no interesse da flor. Ou seja, interessávamo-nos pelo outro e não mais apenas por nós. Esta motivação pelo bem alheio é a compaixão budista.
Este, pois, um código de conduta totalmente terreno. Mas ao longo dos séculos as multidões divinizaram Buda a quem reconhecem muitos milagres e grande intercepção com o Ser Supremo a que nós, nas outras religiões, chamamos Deus ou Alá.
Portanto, com pontos de pura bondade tão fundamentais em comum, muita razão teve o Arcebispo de Goa quando se insurgiu violentamente contra o Padre que há uns quantos séculos queria destruir o dente de Buda roubado do templo de Kangy não descansando enquanto não assegurou a devolução da relíquia à origem
Impressionou-me o fervor que vi nos crentes a rezarem num ofício religioso a que me deixaram assistir próximo de Polonnaruwa e se eu tinha a mania de que o Budismo era apenas uma filosofia, aqui fiquei sem quaisquer dúvidas de que é mesmo uma religião. E muito importante!
Foi à porta desse templo que pela primeira vez um homem me ofereceu uma flor. Era para eu depositar na base da estátua de Buda dentro do templo, o que fiz. Será uma das que se vêem na foto sobre a mesa do altar. À saída, o fulano esperava-me para eu lhe dar uma moeda, o que também fiz.
Felizes os que têm fé.
Lisboa, 7 de Dezembro de 2015  Henrique Salles da Fonseca

O comentário que lhe enviei:

Mais um texto simultaneamente sério e gracioso, que mostra a profundidade doutrinária e a desmistificação do comportamento humano. Intimamente, reduzo o meu saber ignorante às figuras dos ícones que são mostrados nas estatuetas do Cristo e do Buda: Enquanto Buda olha para o seu umbigo, sinónimo de interioridade, de ascese individual no sentido do aperfeiçoamento interior, Cristo, de braços abertos na cruz, significa, afinal, o carácter ecuménico, universal, da sua doutrina de acolhimento e solidariedade. É claro que tudo se desfaz em riso com a história que o Dr. Salles conta, do homem que lhe oferece a flor à entrada do templo e lhe pede a moeda à saída. Cristãmente, o Dr. Salles alinha, dando a moeda.

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