Ao contrário do provérbio latino «Verba volant
scripta manent” que aligeiramos para «palavras leva-as o vento», omitindo
a escrita, por termos sido – e parece que continuamos a ser – mais votados ao
descarregar ruidoso e brigão do nosso pensamento mal amestrado, essencialmente
representado na classe das peixeiras – donde se fortaleceu o léxico luso com a
designação “peixeirada”, muito a calhar com os nossos hábitos de comunicação
social, ao contrário, pois, do provérbio, parece que o que vai permanecer são
mesmo os falazares da nossa falácia linguareira, os escritos da revolta e do
bom senso para o “a bem da nação” que se pretenderia, condenados à partida
pelos “novos ventos” da nossa anarquia ignara e trafulha, em que teríamos,
finalmente que descambar, no embrutecimento a que os movimentos libertadores de
há quarenta e um anos – de princípios e educação, sobretudo – fariam redundar,
que permite a situação bandoleira em curso.
E já não há escritos que permaneçam, como muito bem sugere
Vasco Pulido Valente, nem mesmo os de João Miguel Tavares, de apelo à razão e
ao bom senso, nem mesmo o historial autobiográfico de Clara Ferreira Alves, (-
«Anticomunista, obrigada!» -, da E ) com que ninguém se
importa, nas decepções da sua caminhada que julgara de glória, porque atacava
os alicerces pátrios para se valorizar pela diferença, e agora procura contrariar
com a sua sabedoria exibicionista que já não comove nem convence. Porque o
tempo que vivemos, ela o ajudou a construir, ultimamente nos seus risos de má
criação contra Cavaco ou Passos Coelho, sem querer atentar no esforço de
recuperação que foi feito, nem no real apego pátrio daqueles.
Leiamos Valente e Tavares, cujos escritos
permanecerão, pelo menos no meu blogue, se é que os ventos do progresso não vão
fazer também apagar num ápice, os textos que a Internet, por enquanto,
possibilita:
Palavras para passar o
tempo
Vasco Pulido Valente
Público1/11/15
A
televisão, o Komentariado, a internet e os jornais não fazem outra coisa senão
discutir o sentido do voto de 4 de Outubro; um governo que aparentemente existe
mas não governa; um governo que não existe mas vai governar; o que o Presidente
parece ter querido dizer; o que o presidente de certeza não disse; o estado de
espírito de António Costa; o que verdadeiramente pensa, ou não pensa, Jerónimo
de Sousa; um “pacto” que haverá ou não haverá entre o PS, o Bloco e o PC; a
exacta natureza e a “estabilidade” desse pacto; o que por aqui e por ali
declaram os “notáveis” partidários; as tradições da democracia indígena; e a
aflição da “classe média”. O mais curioso sobre esta polémica apaixonada e
febril é que ninguém sabe, nem quer saber, rigorosamente nada sobre o que está
a discutir.
Como
se pode discutir sobre nada? Por um processo semelhante ao que os romanos
usavam matando bois. Na falta de bois e só com galinhas congeladas, os
peritos de agora examinam a “crispação” ou a “descrispação” das personagens
políticas, e a frase ocasional que elas deixam escapar; as “manchetes” do Expresso
(que são oraculares) e a magreza ou o cansaço dos santinhos da história. A culpa
não é dos jornalistas, nem do Komentariado. A culpa é da etiqueta estabelecida
para mudar de governo, que não passaria pela cabeça de Luís XIV, e do gosto
pelo segredo das “figuras” do Estado e dos partidos, que medem a sua dignidade
pelo pouco que revelam ao povo sobre os negócios em que se meteram e nos
meteram. Não admira que enxames de portugueses desesperados repitam
desesperadamente as mesmas coisas, como se o mundo acabasse agora.
Mas
tristezas não pagam dívidas, como Bruxelas nos costuma advertir: e um pouco de
ignorância anima a vida e permite a qualquer estúpido perorar sobre o que lhe
apetecer. Não há dia em que não apareçam duas dúzias de iluminados, dispostos a
revelar os mistérios da nossa vida. É gente que gosta de barulho e não gosta de
ideias e que também merece a nossa consideração numa democracia moderna. Claro
que o público fica tão confundido como estava, mas também os portugueses
tiveram 50 anos de treino de ouvir e calar. A única diferença é que hoje ouvem
e respondem e é como se não ouvissem, nem respondessem. O espectáculo, até sem
luzes, sempre consola mais. E, no meio da confusão, a PIDE nem sequer lhes
bate.
Cavaco
não deve dar posse a Costa
Público, 12/11/2015
Façam-me a justiça de admitir que eu nunca neguei
legitimidade a uma coligação de esquerda, nem alinhei na conversa do golpe de
estado. Há precisamente um mês, escrevi um texto intitulado “Um xanax para a
direita” onde criticava esse paleio e alertava para o facto de um regime que
elege deputados, e não primeiros-ministros, ter de admitir que o partido mais
votado pode não chegar a governar. Contudo, também deixei claro, muito antes de
conhecer os acordos da tríplice aliança, que Cavaco Silva não podia, neste
contexto, entregar as chaves de São Bento a uma mera coligação negativa.
Desculpem
estar a citar-me a mim próprio, mas desta vez tem de ser: “O acordo da esquerda
não pode ser um Frankenstein keynesiano-leninista colado a cuspo. O acordo
da esquerda não pode ser uma fraude intelectual. O acordo da esquerda não pode
ser um discurso de Miss Universo, composto em exclusivo de suspiros por um
mundo melhor.” Ora, o acordo de esquerda, que não é sequer um acordo mas três
desacordos, é tudo isto, mas em pior. E só mesmo a carneirização da
pátria e o nosso notável talento para ir atrás do primeiro flautista de Hamelin
que se atravessa no caminho é que pode conduzir à suspensão, tanto à direita
como à esquerda, dos mais básicos critérios de exigência intelectual e de
honestidade política, e a uma espécie de aceitação conformada da
inevitabilidade de António Costa ter de vir a ser indigitado primeiro-ministro.
Desculpem: não, não tem.
A
chave para entender a trafulhice dos desacordos está escrita num português
miserável, não por deficiente alfabetização do escriba mas porque é mesmo para
não entender: “O PS e o [é escolher o partido, porque a frase
consta dos três textos] reconhecem as maiores exigências de identificação
política que um acordo sobre um governo e um programa de governo colocava.”
Dito assim, não se percebe. Mas coloquemos a frase em português decente: “O
PS, o PCP, o Bloco e o PEV reconhecem que um acordo sobre um governo e um
programa de governo exigia maior identificação política” – identificação
essa que, claro está, não foi possível alcançar. É isso que lá está escrito.
Não fui eu que o disse, nem subscrevi. António Costa assinou três acordos a
admitir que não há acordo.
De
resto, não há qualquer promessa de aprovação dos orçamentos de Estado, mas
apenas um “exame comum”; não há uma palavra sobre a Europa nem sobre o respeito
do Tratado Orçamental; nada se diz sobre o que fazer perante imprevistos
financeiros; e nem sequer nas medidas mais pacíficas, como o descongelamento
das pensões ou a reposição dos feriados, se assume que se vai convergir, mas
apenas que “é possível convergir”. Não é por acaso que o
acordo nem acordo se chama – é uma “posição conjunta”. Na
verdade, é uma “fezada conjunta”. E uma mera fezada é inaceitável como
justificação para dar posse a um partido que perdeu as eleições. Seria
substituir um governo minoritário por outro ainda mais minoritário.
A
opção de Cavaco não tem de ser um governo de gestão, nem de iniciativa presidencial.
O que ele tem de fazer é ater-se aos critérios de solidez e estabilidade que
enunciou e pedir a António Costa para parar de brincar connosco e assinar
alguma coisa séria, se quer ser primeiro-ministro. Aceitar aqueles três
desacordos daria uma grande felicidade à esquerda. Mas transformaria o
presidente da República num triste notário, obrigado a carimbar qualquer papel
que lhe pusessem à frente. A bem da salubridade do regime, não pode ser.
Nenhum comentário:
Postar um comentário