quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Les mots



Ao contrário do provérbio latino «Verba volant scripta manent” que aligeiramos para «palavras leva-as o vento», omitindo a escrita, por termos sido – e parece que continuamos a ser – mais votados ao descarregar ruidoso e brigão do nosso pensamento mal amestrado, essencialmente representado na classe das peixeiras – donde se fortaleceu o léxico luso com a designação “peixeirada”, muito a calhar com os nossos hábitos de comunicação social, ao contrário, pois, do provérbio, parece que o que vai permanecer são mesmo os falazares da nossa falácia linguareira, os escritos da revolta e do bom senso para o “a bem da nação” que se pretenderia, condenados à partida pelos “novos ventos” da nossa anarquia ignara e trafulha, em que teríamos, finalmente que descambar, no embrutecimento a que os movimentos libertadores de há quarenta e um anos – de princípios e educação, sobretudo – fariam redundar, que permite a situação bandoleira em curso.
E já não há escritos que permaneçam, como muito bem sugere Vasco Pulido Valente, nem mesmo os de João Miguel Tavares, de apelo à razão e ao bom senso, nem mesmo o historial autobiográfico de Clara Ferreira Alves, (- «Anticomunista, obrigada!» -, da E ) com que ninguém se importa, nas decepções da sua caminhada que julgara de glória, porque atacava os alicerces pátrios para se valorizar pela diferença, e agora procura contrariar com a sua sabedoria exibicionista que já não comove nem convence. Porque o tempo que vivemos, ela o ajudou a construir, ultimamente nos seus risos de má criação contra Cavaco ou Passos Coelho, sem querer atentar no esforço de recuperação que foi feito, nem no real apego pátrio daqueles.
Leiamos Valente e Tavares, cujos escritos permanecerão, pelo menos no meu blogue, se é que os ventos do progresso não vão fazer também apagar num ápice, os textos que a Internet, por enquanto, possibilita:

Palavras para passar o tempo
Vasco Pulido Valente
Público1/11/15
A televisão, o Komentariado, a internet e os jornais não fazem outra coisa senão discutir o sentido do voto de 4 de Outubro; um governo que aparentemente existe mas não governa; um governo que não existe mas vai governar; o que o Presidente parece ter querido dizer; o que o presidente de certeza não disse; o estado de espírito de António Costa; o que verdadeiramente pensa, ou não pensa, Jerónimo de Sousa; um “pacto” que haverá ou não haverá entre o PS, o Bloco e o PC; a exacta natureza e a “estabilidade” desse pacto; o que por aqui e por ali declaram os “notáveis” partidários; as tradições da democracia indígena; e a aflição da “classe média”. O mais curioso sobre esta polémica apaixonada e febril é que ninguém sabe, nem quer saber, rigorosamente nada sobre o que está a discutir.
Como se pode discutir sobre nada? Por um processo semelhante ao que os romanos usavam  matando bois. Na falta de bois e só com galinhas congeladas, os peritos de agora examinam a “crispação” ou a “descrispação” das personagens políticas, e a frase ocasional que elas deixam escapar; as “manchetes” do Expresso (que são oraculares) e a magreza ou o cansaço dos santinhos da história. A culpa não é dos jornalistas, nem do Komentariado. A culpa é da etiqueta estabelecida para mudar de governo, que não passaria pela cabeça de Luís XIV, e do gosto pelo segredo das “figuras” do Estado e dos partidos, que medem a sua dignidade pelo pouco que revelam ao povo sobre os negócios em que se meteram e nos meteram. Não admira que enxames de portugueses desesperados repitam desesperadamente as mesmas coisas, como se o mundo acabasse agora.
Mas tristezas não pagam dívidas, como Bruxelas nos costuma advertir: e um pouco de ignorância anima a vida e permite a qualquer estúpido perorar sobre o que lhe apetecer. Não há dia em que não apareçam duas dúzias de iluminados, dispostos a revelar os mistérios da nossa vida. É gente que gosta de barulho e não gosta de ideias e que também merece a nossa consideração numa democracia moderna. Claro que o público fica tão confundido como estava, mas também os portugueses tiveram 50 anos de treino de ouvir e calar. A única diferença é que hoje ouvem e respondem e é como se não ouvissem, nem respondessem. O espectáculo, até sem luzes, sempre consola mais. E, no meio da confusão, a PIDE nem sequer lhes bate.

Cavaco não deve dar posse a Costa
Público, 12/11/2015
Façam-me a justiça de admitir que eu nunca neguei legitimidade a uma coligação de esquerda, nem alinhei na conversa do golpe de estado. Há precisamente um mês, escrevi um texto intitulado “Um xanax para a direita” onde criticava esse paleio e alertava para o facto de um regime que elege deputados, e não primeiros-ministros, ter de admitir que o partido mais votado pode não chegar a governar. Contudo, também deixei claro, muito antes de conhecer os acordos da tríplice aliança, que Cavaco Silva não podia, neste contexto, entregar as chaves de São Bento a uma mera coligação negativa.
Desculpem estar a citar-me a mim próprio, mas desta vez tem de ser: “O acordo da esquerda não pode ser um Frankenstein keynesiano-leninista colado a cuspo. O acordo da esquerda não pode ser uma fraude intelectual. O acordo da esquerda não pode ser um discurso de Miss Universo, composto em exclusivo de suspiros por um mundo melhor.” Ora, o acordo de esquerda, que não é sequer um acordo mas três desacordos, é tudo isto, mas em pior. E só mesmo a carneirização da pátria e o nosso notável talento para ir atrás do primeiro flautista de Hamelin que se atravessa no caminho é que pode conduzir à suspensão, tanto à direita como à esquerda, dos mais básicos critérios de exigência intelectual e de honestidade política, e a uma espécie de aceitação conformada da inevitabilidade de António Costa ter de vir a ser indigitado primeiro-ministro. Desculpem: não, não tem.
A chave para entender a trafulhice dos desacordos está escrita num português miserável, não por deficiente alfabetização do escriba mas porque é mesmo para não entender: “O PS e o [é escolher o partido, porque a frase consta dos três textos] reconhecem as maiores exigências de identificação política que um acordo sobre um governo e um programa de governo colocava.” Dito assim, não se percebe. Mas coloquemos a frase em português decente: “O PS, o PCP, o Bloco e o PEV reconhecem que um acordo sobre um governo e um programa de governo exigia maior identificação política” – identificação essa que, claro está, não foi possível alcançar. É isso que lá está escrito. Não fui eu que o disse, nem subscrevi. António Costa assinou três acordos a admitir que não há acordo.
De resto, não há qualquer promessa de aprovação dos orçamentos de Estado, mas apenas um “exame comum”; não há uma palavra sobre a Europa nem sobre o respeito do Tratado Orçamental; nada se diz sobre o que fazer perante imprevistos financeiros; e nem sequer nas medidas mais pacíficas, como o descongelamento das pensões ou a reposição dos feriados, se assume que se vai convergir, mas apenas que “é possível convergir”. Não é por acaso que o acordo nem acordo se chama – é uma “posição conjunta”. Na verdade, é uma “fezada conjunta”. E uma mera fezada é inaceitável como justificação para dar posse a um partido que perdeu as eleições. Seria substituir um governo minoritário por outro ainda mais minoritário.
A opção de Cavaco não tem de ser um governo de gestão, nem de iniciativa presidencial. O que ele tem de fazer é ater-se aos critérios de solidez e estabilidade que enunciou e pedir a António Costa para parar de brincar connosco e assinar alguma coisa séria, se quer ser primeiro-ministro. Aceitar aqueles três desacordos daria uma grande felicidade à esquerda. Mas transformaria o presidente da República num triste notário, obrigado a carimbar qualquer papel que lhe pusessem à frente. A bem da salubridade do regime, não pode ser.

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