quinta-feira, 1 de outubro de 2015

«Velha tendinha»







Também reparei, creio que toda a gente reparou. A nossa formação cívica é de tal modo incipiente, que, ridiculamente tomamos iniciativas pessoais, num caso de tal dimensão, mas com a televisão atrás, para todos ficarmos sabendo que somos bons, somos ricos, e que a nossa vontade é soberana. Temos casa, carro, comida e roupa lavada para dispensar, aí vamos nós agarrar nuns poucos e ficar na história, serviçais, generosos e colaboradores, sem que ninguém nos tivesse pedido, mas avisando à socapa os media, do nosso gesto altruístico.
Do gesto exibicionista fica uma sensação de vergonha, o que é comum nos exibicionismos. Não, não se trata de um Aristides de Sousa Mendes, que tinha um cargo de poder, para ajudar, mas que até acabou injustamente castigado. Também  não se trata do santo que dividiu a capa ao meio para abrigar o pobre. Esse foi premiado com o sol de verão em pleno outono. Estes da caravana antecipam para si o prémio da fama. Também La Fontaine tratou do tema, em fábula bem conhecida – «O Coche e a Mosca», prova de que é antigo o vício, e universal. Ainda bem que não é exclusivo nosso.

António da Cunha Duarte Justo conta do caso português, com a necessária precisão e justeza, no texto saído no A Bem da Nação.

CARAVANA PRIVADA EM BUSCA DE REFUGIADOS
UMA INICIATIVA À REBELDIA?
Accionismo devido a Falta de Informação objectiva
«Na sexta-feira passada 25.09, tal como informa VISÃO, partiram de Portugal 6 automóveis com destino à Hungria/Croácia/Eslovénia (a caminho decidir-se-ão), no intuito de voltar a Portugal com os carros “cheios de refugiados”. “Seis carros – sete, a contar com o da equipa da SIC –, cada um com duas pessoas, um piloto e um co-piloto…” reza a VISÃO. Os activistas pensam com esta acção dar uma bofetada na burocracia dos Estados europeus e “gastar provavelmente o que gastaríamos numa semana de férias” e talvez ajudá-los até ver. Que ideias fazem da situação Nuno, Pedro, Vera, Abdul e outros colaboradores da iniciativa? Tudo isto em nome e à responsabilidade de quem? Para imigrantes é suficiente a improvisação e o mostrar boa vontade?
Uma tal acção será legítima se as pessoas que transportam os refugiados se comprometerem a dar guarida, formação e emprego aos refugiados enquanto estes não puderem viver à custa própria e se suponha que tal acção seja coberta pelas autoridades, doutro modo correriam o perigo de serem inculpados de passadores (Na Alemanha estão 1.500 pessoas em observação por cumplicidade de negócio de tráfico com refugiados; naturalmente que estes não poderão ser comparados com sentimentos de bondade espontânea). Com acções do género servem-se, por vezes, mais os jornais do que os afectados pela injustiça.
Armar-se em samaritanos à custa do Estado ou de outros, que depois terão de assumir responsabilidade pelos refugiados, cheira a leviandade criticável, ingenuidade pura ou cumplicidade; tudo isto pode ser encarado como o accionismo da UE que agora começa a acordar, porque começa a sofrer as consequências dos formatos que ajudou a criar ao desestabilizar a Síria e outras nações apoiando o terrorismo daqueles que usam de movimentos populares por vezes bem-intencionados.
Os autoproclamados bombeiros da necessidade, agem como se refugiados, na condição de pobres estivessem dispostos a aceitar viver em qualquer condição e como se Portugal tivesse aberto as fronteiras aos imigrantes. Aqui na Alemanha tem havido revoltas entre refugiados alojados em centros de acolhimento, embora as autoridades alemãs se esforcem imensamente por os ajudar; estas são secundadas pelo povo com iniciativas de apoio e ajuda com bens materiais e no ensino da língua, condição essencial para os imigrantes se autoafirmarem no mercado! Um exemplo: refugiados acolhidos numa caserna e a viver provisoriamente como vivem os soldados em geral consideram tal situação desumana.
Com isto não quero levar pessoas a olharem para o lado! A responsabilidade deve perceber o que está deveras a acontecer e a complexidade da situação de uma crise reveladora de situações desumanas em que se encontram inocentes, vítimas, muitos necessitados (à procura de maior felicidade) mas também, entre eles, pessoas com energia criminosa; em tal situação só o Estado ou organizações humanitárias terão a competência para ajudarem efectivamente sem correrem o perigo de uma ajuda questionável só para inglês ver!
Não chega dar peixe, é necessário ensinar a pescar, já sabia o nosso povo! A Síria está a ser sangrada e a ver-se envelhecer vendo os seus jovens a fugir e estados como a Turquia interessados em continuar a guerrilha não são questionados. Com a crise dos refugiados continua a desviar-se a bola para canto.
Ao cinismo europeu e americano (intervenção no Afeganistão, destruição dos Estados no Iraque, na Líbia, na Síria e instabilização de toda África do norte, aos interesses concorrentes entre Turquia e Irão) segue-se uma reacção afectiva em relação ao êxodo provocado que se pode tornar tão questionável como o cinismo. O mau desenvolvimento na Europa em consequência das duas grandes guerras não pode ser argumento justificador de políticas à deriva ou à vela dos ventos de ideologias e dos interesses xiitas ou sunitas.
A Europa e cada europeu precisam de maior reflexão sobre o que se faz e o que se deixa de fazer: política de investimento nos referidos países para que os cidadãos não se vejam obrigados a emigrar na procura legítima de uma vida melhor! Precisa-se do empenho de todos, instituições e cidadãos, numa acção conjunta, não para fortalecer o próprio ego em actividades publicitárias de relações públicas à custa de “refugiados inocentes” mas para colocar a humanidade e a justiça no centro do agir individual e político!»
António da Cunha Duarte Justo

 A fábula de La Fontaine, como reforço moral:

O coche e a mosca
Por um caminho de íngreme subida,
Arenoso, irregular
E de todos os lados exposto ao sol,
Seis fortes cavalos puxavam um coche.
Mulheres, Frade, Velhos, tudo tinha descido.
Os cavalos suavam, bufavam, esgotados.
Vem uma Mosca e deles se aproxima.
Pretende animá-los com o seu zumbido,
Pica um, pica outro e pensa a todo o momento
Que é ela que põe a máquina em movimento.
Poisa no timão, no nariz do Cocheiro;
Assim que a carruagem começa a subir
E vê as gentes avançar
A si só atribui do facto a glória;
Vai, vem, faz-se apressada; parece ser
Um Oficial encarregado do plano da batalha
A todo o lado a ir,
Para as tropas fazer avançar e apressar a vitória.
A Mosca, nesta comum necessidade,
De tanta dificuldade,
Queixa-se de agir só, todo o encargo com ela;
Que ninguém ajuda os Cavalos a não ser ela.
O Monge lia o seu Breviário;
Boa maneira de passar o tempo!
Uma mulher cantava;
Era mesmo de canções que se precisava!
A Senhora Mosca vai cantar aos seus ouvidos
E faz cem tolices semelhantes.
Depois de muitos trabalhos o Coche consegue  arribar.
Respiremos agora, diz a Mosca imediatamente:
Trabalhei  tanto que os passageiros estão no seu destino, finalmente.
Pagai-me, Senhores Cavalos pelo meu trabalho.

Assim certas pessoas, fazendo-se muito servis,
Se introduzem nos assuntos gerais ou privados:
Em toda a parte se julgam imprescindíveis
E, sempre importunos, deveriam ser recambiados.

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