quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Das megalomanias às mitomanias



Mais um «Dias Contados» de Alberto Gonçalves (9/8/15), abrangendo factos do nosso anedotário social, que inspiraram a argúcia analítica do sociólogo, um dos expoentes satíricos nacionais da nossa actualidade. Reza o primeiro sobre um casamento de estadão a merecer bloqueio de ruas e com isso os comentários impacientes no facebook, provavelmente ditados por frustrações de quem não poderá jamais estabelecer idênticos bloqueios, embora o articulista deponha sobre as inúmeras capacidades que tem o povo português nessa faceta bloqueadora. A propósito do heliporto exigido pela Polícia Judiciária, defende o articulista a absoluta precisão daquele - apesar da falta de helicópteros próprios - em virtude das inegáveis possibilidades de desfrute paisagístico que dali se alcança.
Quanto à T-shirt do desprevenido jogador português que nela gravou a figura de Franco, ditador ultrapassado, a crítica incide sobre as T-shirts com a efígie dos Che-Guevaras das liberdades de que eles são símbolo, juntamente com, provavelmente, os fundamentalistas islâmicos dos terrorismos de agora.   

Cenas de um casamento
por ALBERTO GONÇALVES, 9 agosto 2015
Há cerca de três meses, sentado numa porta de embarque de Pedras Rubras, informaram-me que um dos passageiros do meu voo era um "superempresário" (sic) da bola. Olhei para o sujeito e, dado que usava uma malinha Louis Vuitton, achei plausível. Achei também esquisito que alguém reconhecesse um sujeito ao qual ninguém parecia ligar nada.
Não pensei mais no assunto até descobrir que o sujeito casou, que o casamento foi notícia e implicou o bloqueio de uma ou duas ruas na Foz do Douro. Pelos vistos, o Sr. Jorge Mendes é importante no meio em que se move e o respectivo matrimónio convocou personalidades lendárias de quem, à excepção de Cristiano Ronaldo e de José Mourinho, nunca ouvi falar. Daí a colocar vários quarteirões em estado de sítio é um pequeno passo. Os poderes do "superempresário" incluem o de manter a ralé à distância.
O Facebook não apreciou a proeza. Numa das 17 indignações que semanalmente o alimentam, o Facebook decidiu ser absurdo que uma pândega de meia dúzia transtorne a vida de milhares. Tem razão. Não tem é legitimidade. Muitos dos que acham repugnante o referido abuso participam de abusos iguaizinhos na essência. Das corridas contra a hepatite a comícios, da propaganda de supermercados às feiras "medievais", dos carrinhos às voltas às voltas de bicicleta, tudo serve de pretexto para que os apetites de uns poucos, públicos ou privados, se sobreponham à conveniência de todos. Quando não é a própria autarquia a cozinhar a ideia, é a autarquia a autorizá-la, numa exótica interpretação das famosas "políticas de proximidade".
Não me entendam mal. Sou inteiramente a favor de que um cidadão force a evacuação de três freguesias só para que possa passear em pelota na avenida, ou que impeça a circulação rodoviária para que consiga conduzir sem trânsito - desde que o cidadão seja eu. Nos meus delírios, chego a pensar que, caso mandasse, Portugal em peso adiantaria os relógios 17 minutos e teria uma bandeira decente. A sorte é que não mando, ao contrário de certos e inexplicáveis donos deste belo país. E o povo? O povo, ou uma pequenina parcela dele, correu às barricadas em volta da casa do Sr. Jorge Mendes. Para protestar? Não, para tentar ver as "celebridades". De facto, o ideal é voar daqui para fora.

Domingo, 2 de Agosto
Desígnios nacionais
Seria completamente ridículo que a Polícia Judiciária não realizasse o sonho ancestral de possuir um heliporto no alto da sua recente sede em Lisboa. Ainda por cima quando a estrutura custou meros 250 mil euros numa obra total de 95 milhões.
É verdade que alguns reaccionários protestam o facto de, ano e meio após a inauguração, o heliporto nunca ter recebido qualquer helicóptero ou geringonça aparentada, em parte porque a PJ não possui nenhum. Trata-se da tradição nacional do "bota-abaixismo", para usar uma expressão popularizada por um ex-governante com tanta visão que hoje está na cadeia. Por falar em vistas, o heliporto é utilizado para que os visitantes do edifício desfrutem de uma privilegiada perspectiva de Lisboa, o que só por si justificaria o investimento.
No que respeita à sede em geral, nada a opor. Com bunker e tudo, tamanha maravilha encontra-se preparada para, cito o Público, "resistir a situações de crise e de catástrofe, como um novo 11 de Setembro". Sempre é um descanso: logo que o terrorismo islâmico descubra Lisboa, a cidade pode acabar em ruínas, mas nas cúpulas da PJ não haverá beliscão.
Em vez de criticar o precedente, importa segui-lo. A mim, por exemplo, parece-me indecente que as instalações da ASAE não estejam prontas para um holocausto nuclear, que as agências da CGD em Cantanhede constituam presa fácil para drones e que a GNR de Mértola não disponha de um sistema antimísseis adequado. E, principalmente, que não se espalhem heliportos por esse país afora, em cima de juntas de freguesia, empresas municipais e de dúzias de políticos. Depois das rotundas, era a prioridade que faltava.

Segunda-feira, 3 de Agosto
O assassino da moda
Se a história tem dias, o contexto tem literalmente barbas. Um futebolista português, Nuno Silva, apresentou-se na equipa espanhola que o contratou envergando uma T-shirt com o rosto do general Franco. Obviamente, o episódio foi notícia e as notícias falaram em "gafe" ou "péssimo gosto", maçadas que nunca acontecem, por exemplo, aos portadores de T-shirts de "Che" Guevara, outro sociopata de renome.
O Sr. Silva desculpou-se e alegou ignorância sobre o ditador daqui do lado. Nunca vi alguém fazer o mesmo após passear a carranca do argentino. Percebe-se porquê: salvo naturais excepções, quem exibe a imagem do indivíduo conhece, ainda que superficialmente, o respectivo currículo. E gosta. Os campos de "reeducação", as matanças, o racismo, a bestialidade do gesto e do discurso definem o carácter dos que legitimam a figura e compõem um "estilo" sem risco de polémica. Certas retóricas, não importa se assassinas, vestem melhor.
É constrangedor voltar a isto, mas constrange mais que, em 2015, os crimes do comunismo mereçam a indiferença, ou até a simpatia, que os crimes do fascismo felizmente nunca suscitaram. As vítimas deste foram mártires, as daquele obstáculos, baixas necessárias à construção do homem novo. Era assim em 1930 e assim continuamos, com as avaliações do Bem e do Mal hipotecadas a ideologias e com os representantes da iniquidade à solta por aí, a homenagear o "Che" nas T-shirts ou no olhar. Nos comentários da imprensa, nos programas de debate e nas notícias andam imensos, embora não sejam notícia pelas razões adequadas.

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