sexta-feira, 3 de julho de 2015

EFEMÉRIDES



Leio, no jornal I que Álvaro Cunhal morreu no dia de Santo António há dez anos, ou seja, em 13 de Junho de 2005, tal como o seu «compagnon de route», poeta Eugénio de Andrade. O jornal I presta-lhe a devida homenagem, através dos depoimentos de Margarida Botelho - «Transformar o sonho em realidade» - Domingos Abrantes - «Passaram dez anos» - Jerónimo de Sousa – «Um exemplo que se projecta na actualidade e no futuro».
Margarida Botelho considera Cunhal a figura mais marcante do século XX. Mas o povo português – ou a sua maior parte – desconfiado que é, não cai tão facilmente em esparrelas e votou mesmo, em tempos - (recordo, na Internet a data: 2oo7) - em Salazar, como figura cimeira do século XX, pai tutelar de uma nação há muito desencaminhada no desrespeito pelo ser humano, substituído este pela subserviência tímida de uns e o paternalismo superior de outros. Salazar não mudou essa condição, mas não lhe faltou a orientação transmitida ao longo da história de respeito pela sua pátria e esse factor suponho que foi marcante na escolha do seu nome, por altura da tal sondagem, o povo mantendo idêntica noção de amor pátrio, (sentimento que a doutora Isabel Moreira pôs em causa no programa final da “Barca do Inferno”, explicando que a sua pátria é o mundo, conceito de uma dimensão marcadamente universal e que muito abona o seu bem-estar económico e a expansão do seu pensamento cultural, de um seguidismo naturalmente progressista, e de uma sublimidade inultrapassável, a menos que se alcancem outros mundos em vida da doutora, para ela poder abarcar pátrias de outros espaços siderais.
Sei que Cunhal foi muito arrojado, que esteve preso e se safou de Peniche e que, quando apareceu - não aos ombros, como o seu colega da transacção pátria, Mário Soares, o qual para todos os efeitos teria bastas ocasiões de se revelar adepto das passeatas aos lombos – ou até carapaças - dos diferentes espécimes animais quando assumiu o controle do “baixel” que ambos ajudaram a recompor nas novas praias, “narciso presumido” de “ondas” antigas.  Cunhal, durante uns tempos, deu muita animação, de facto, à nova pátria, nos seus discursos invariavelmente sobre as desigualdades sociais e ele bem quis mudar isso, tal como fizera Mao Tsé Tung na sua China nivelada, em que subvertera os conceitos de justiça impondo a modéstia do pensamento igualitário que pôs os médicos e os professores a trabalhar na charrua e o povo a reivindicar os seus direitos à igualdade sem tanto sacrifício das pestanas, coisas que o nosso PREC também defendeu, com Cunhal metido ao barulho, mas que Mário Soares e os outros defensores das liberdades democráticas menos radicais atalharam a seu tempo. E Margarida Botelho de concluir sobre o «sonho de uma sociedade liberta
 de exploração de um Portugal livre e soberano» que Cunhal protagonizou há mais tempo do que ninguém e com mais dor, para sempre o nosso «herói», embora tenha perdido a favor de Salazar na disputa da representatividade secular.
Infelizmente a Internet não oferece os textos que leio no I, daí que os não transcreva, com muita mágoa minha, embora ciente de que o que eles informam é mais que previsto. Entretanto, dedico à memória do retorcido Álvaro Cunhal o soneto barroco, «À fragilidade da vida », bonito de se ler, embora um tanto retorcido também, como aquele, com chave própria, após o discurso em suspense, mas, afinal, de uma pureza de mensagem tão importante como as que Álvaro Cunhal desejou difundir – sem chave nem suspense – neste seu povo de desigualdades sociais tão vincadas:

À fragilidade da vida
Esse baixel nas praias derrotado
Foi nas ondas Narciso presumido;
Esse farol nos céus escurecido
Foi do monte libré, gala do prado.

Esse nácar em cinzas desatado
Foi vistoso pavão de Abril florido;
Esse Estio em Vesúvios encendido
Foi Zéfiro suave, em doce agrado.

Se a nau, o Sol, a rosa, a Primavera
Estrago, eclipse, cinza, ardor cruel
Sentem nos auges de um alento vago,

Olha, cego mortal, e considera
Que és rosa, Primavera, Sol, baixel,
Para ser cinza, eclipse, incêndio, estrago.
Francisco de Vasconcelos (1665-1723), FÉNIX RENASCIDA III
E a homenagem ao extraordinário poeta Eugénio de Andrade, cuja morte, no mesmo dia que a de Cunhal, informa o I que passou mais discretamente que a do seu “compagnon de route”:
Rio de palavras, que eram as suas, “rio” tout court, símbolo do não retorno. Mas Eugénio de Andrade fica, naturalmente, nas palavras gastas dos sentimentos efémeros, nas palavras amplas tradução daqueles:

Surdo, Subterrâneo Rio
 
Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.
 
Correr do tempo ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
--- surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?
 
                            Eugénio de Andrade

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