terça-feira, 16 de junho de 2015

Sempre a crise



São ambos temas nacionais, os dos artigos de Vasco Pulido Valente e de Alberto Gonçalves.
O de Vasco Pulido Valente, em “A grande evasão”, refere um país no seu rumo de diversão apenas, na pobreza espiritual desesperante, que se limita ao futebol, ao folclore, aos fumeiros e mais cozinhados dos apetites populares, segundo ele “a grande evasão” da nossa realidade doméstica, no absoluto desespero do país, cujo delírio de futilidade perversa a televisão favorece, em tacanhez e desprezo pelo seu papel formador.  O de Alberto Gonçalves – “José e os delírios de grandeza” - refere o caso da pulseira electrónica e seu aproveitamento pelo ex-ministro para mais um desfeitear do Governo que ele abomina e rebaixa com a sagaz recusa em aceitar aquela.

Os textos:

A grande evasão
Vasco Pulido Valente
Público, 6/6/15
«O treinador do Benfica mudou-se para o Sporting. Isto bastou para provocar uma polémica nacional. Parecia que o Presidente da República tinha morrido ou que o dr. Costa se tinha demitido do PS.
As televisões não pararam de falar do caso como se o resto do mundo não existisse e os jornais também não falaram de outra coisa, com a esperança absurda de que o “escândalo” lhes fizesse subir as vendas. Não houve injúria, acusação ou ignomínia que se poupasse de lado a lado. A fúria e até o ódio rebentavam por toda a parte. Alguns políticos, como sempre, manifestaram o seu espanto e a sua indignação. Outros não hesitaram em se meter na polémica. Mas nem um único verdadeiramente percebeu o que se passava: os portugueses transferiram as suas paixões gregárias do desesperado destino do país para o futebol.
E não só para o futebol. Quem for lendo com paciência a imprensa indígena acaba por verificar que a maior parte do espaço é reservado a hotéis, férias, restaurantes, chefs e receitas. São páginas atrás de páginas de cozinha regional e gourmet, de mesas postas com os requintes da arte, de fotografias de pratos artisticamente arranjados (com uma especial atenção à cor e ao volume), de menus descritos com minúcia numa prosa suculenta e rendida. Que será esta extravagância num país pobre e sem futuro? Anda por aí gente capaz de pagar aqueles preços, que vivem na clandestinidade e nós não conhecemos? E que gozo tira o leitor pelintra dessa exibição de riqueza e “gosto”, em que nunca tocará? Ou o espectáculo só por si o consola da comida “feita” e congelada, que a miséria lhe impõe?
O país deixou de acreditar no governo e na oposição. Mas claramente gosta de se sentir parte de um “grupo”. Um “grupo” pequeno como nas conferências, nos debates, nos simpósios, nas feiras, nos congressos, para que diariamente o levam os chamados “organizadores de eventos”; ou, pelo contrário, um grupo imenso congregado à volta de um cantor ou de uma “banda” de música popular (normalmente com um nome inglês), que permite ao público uma histeria branda, de acordo com a ordem pública e os nossos costumes. A desfilada destes génios, ou mais do que isso, é contínua e no Verão, que está a chegar, inunda Portugal inteiro. Por causa do turismo? Em parte. Mas desconfio que principalmente para se sentir “em comunidade”. O futebol, a obsessão com a cozinha e os concertos de música popular são três maneiras de resistir à realidade doméstica e ao desespero a que ela nos reduziu. É uma evasão, uma grande evasão.»

“José e os delírios de grandeza”
Alberto Gonçalves
14/6/15
«De início, as coisas sérias. É evidente que, embora útil, a prisão preventiva traduz eventuais debilidades do sistema judicial, da lentidão a certa arbitrariedade. É provável que os seus limites temporais sejam excessivos. E é possível que constitua um recurso bastante menos excepcional do que muitos especialistas súbitos garantem (16% do total de presos). Mas nem por sombras isto desculpa que se levante um escândalo a propósito, e só a propósito, da prisão preventiva de José Sócrates, que está longe de ser o único em semelhante situação e é o último com motivos de queixa: não sei porquê, cai mal a um ex-governante que nada fez para alterar a situação considerá-la vergonhosa no exacto momento em que o atinge.
Vamos agora à parte lúdica. Desde logo, a recusa de José Sócrates em trocar a cadeia pela pulseira electrónica no recato do lar não prova a ilegalidade da detenção nem sugere inocência nenhuma. No máximo, confirma a astúcia de quem conhece os pasmados receptivos a bazófias do género. No mínimo, é o exercício de um direito e a suspeita de que as condições em Évora não serão más de todo (se calhar "a fome e o frio" a que aludiu a humanista Dra. Edite Estrela eram um exagero).
Além disso, um óbvio golpe promocional como a recusa da pulseira não exibe necessariamente as firmes "convicções" de José Sócrates, e se as exibe é abusivo confundi-las com rectidão de carácter. Olhe-se para a grande e para a pequena história, em que não faltam calamidades cometidas por gente convicta, segura de que a sua razão se sobrepõe à razão alheia. Evite-se dramatizar e evocar os vilões do costume, de Átila a Hitler: é suficiente lembrar que as justificadas críticas à confessa ausência de dúvidas em Cavaco Silva, um exemplo suave, não se devem transformar na exaltação das virtudes de José Sócrates.
José Sócrates e os respectivos asseclas estão convictos, aqui sim, da absoluta singularidade do antigo primeiro-ministro. No governo, era o próprio a classificar cada acção sua, de um espirro a uma decisão económica tipicamente desastrosa, de um "momento histórico". E depois do governo é que se sabe: na retórica em vigor, José Sócrates é caluniado, detido, encarcerado e perseguido por ser José Sócrates. A idolatria é tal que não espanta que se lamente o "circo mediático" enquanto se faz tudo para o alimentar, nem que se apele ao "regular funcionamento das instituições" enquanto se tenta sabotá-las com afinco.
O problema da adoração cega de uma relativa insignificância é a reacção oposta, leia-se o ódio desmesurado que a insignificância também suscita. Se uns nunca acreditarão numa justiça que condene José Sócrates, outros nunca aceitarão uma justiça que o absolva. O que é péssimo para a justiça, mau para José Sócrates e assim-assim para o país, já habituado a escapar por pouco aos delírios de grandeza do indivíduo. »

Relativamente ao primeiro artigo, entendo que ainda bem que assim é, que coisas haja que exacerbem os encantamentos populares. O povo afinal sabe como divertir-se e angariar fundos  com o turismo. E os media fazem os possíveis por o acompanhar, nas coreografias e nos petiscos, o futebol como entretenimento constante no meio televisivo, para quem provavelmente se treina em espírito a pontapear a vida. Ou tão só a cara-metade. Prova, pois, do valor didáctico dessas constantes mesas redondas de eventos futebolísticos com que se alimentam os gostos da nação, a par de outras comezainas e muita fofoca, de que precisamos como do pão para a boca, acompanhado, é certo, dos mais sabores de causar inveja aos nossos hábitos frugais. Mas a televisão é um vasto manancial nos seus múltiplos canais, onde podemos colher outros espectáculos de muito mais recreação, ainda que seja só nos noticiários, plenos de informação e imagens do mundo.
Mas o desespero de Pulido Valente é o de um patriota cuja inteligência crítica poderia ajudar a um virar de página nessa questão do empenhamento cultural desses meios televisivos no nosso país, como se nota em jornais e revistas como o Expresso ou o Público. Contudo, pouca importância tem, pelos vistos, é pecha antiga nossa desprezar ensinamentos – como esse do AO - muito embora programas haja de excelente recorte, como o Prós e Contras no 1º Canal.
Quanto à questão da pulseira de Sócrates já se sabia que o Governo iria comer por tabela. Tive ocasião de escutar um pouco do Eixo do Mal, e, como pensava, exceptuando Luís Pedro Nunes, todos foram unânimes em pôr em causa uma vez mais – desta vez com o reforço da recusa socrática da pulseira - a prisão de Sócrates, lembrando virtuosamente, com a seriedade das pessoas muito dignas, a possível inocência daquele e o ridículo do Governo falhado no seu recurso à benevolência, coisa que, evidentemente, não convence Alberto Gonçalves, sabendo este detectar o vigarista por trás do jogador despudorado que se esconde sob o seu ar de vítima que sabe muito bem onde e como picar.

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