quarta-feira, 10 de junho de 2015

São heroínas, as mulheres portuguesas



É com o entusiasmo de sempre que releio Simone de Beauvoir, que sempre me pareceu pôr nos seus livros uma densidade de vida que nos fazia devorar a sua leitura e viver com ela as experiências dos seus passeios, dos seus convívios, das suas dores e prazeres, dos seus conceitos, dos amigos que foram povoando e deixando a sua vida, da sua escrita nada rebuscada mas de uma elegância e eficácia de traço perfeitos, resultado de uma inteligência e dom de observação verdadeiramente superiores. Uma mulher que absorveu a vida, que lhe sofreu as tragédias e que pôs nos romances de ficção, como L’Invitée, a mesma seriedade e despojamento íntimo das suas Memórias, quer as da rapariga bem comportada, quer as da força da idade, quer as do após guerra, em “La Force des Choses” em dois volumes que ando a reler. Lembro em “La Femme rompue” a tragédia da mulher dona de casa, mãe galinha e esposa exemplar, que descobre que o marido a atraiçoa, novela que tanto me emocionou na altura, tal o realismo da sua escrita forte e apaixonada, com que exemplificou a condição da mulher subjugada, por princípio machista que a marginalizou para as suas funções próprias de procriação e domínio caseiro, apesar dos escritores que ao longo dos tempos foram alertando para outras possibilidades de realização feminina. Em Le Deuxième Sexe Simone de Beauvoir junta-se ao rol das defensoras da emancipação feminina com essa sua obra filosófica, de análise e responsabilização dos dois sexos na defesa dos direitos femininos.
Vem isto a propósito do artigo de Maria Filomena Mónica - As mulheres portuguesas são parvas – que o Ricardo me enviou, com apreço pela análise. Maria Filomena Mónica  fez-me recuar para Simone, não por identidade de comportamentos – Simone de Beauvoir foi, de facto, uma mulher livre, que se assumiu como tal numa sociedade de que conquistou o respeito – mas nos traços com que se descreveu, os mesmos que, segundo Simone de Beauvoir, os pais e a sociedade esperavam dela – o casamento, a procriação, uma vida sem escândalo. Maria Filomena Mónica é uma mulher bonita, realizada, que luta pelos direitos das mulheres.
Ao contrário do que sucede noutros países, em que o dinheiro do trabalho feminino é dispensável no orçamento do lar, podendo as mães permanecer em casa e educar os filhos nos primeiros tempos, em Portugal isso não acontece, os ordenados de ambos os cônjuges indispensáveis para o equilíbrio orçamental. Segue-se que as crianças sejam entregues cedo à vida em comunidade pré-escolar ou escolar, os pais sempre numa sarabanda de movimentação – levar os filhos antes do trabalho, buscar os filhos depois do trabalho, tratar dos filhos. E das refeições. E das roupas. E da casa, suponho que só à noite ou nos fins de semana. Vejo isso, do meu sossego de reformada, que de vez em quando fica com os netos. E admiro as mães e os pais com os seus filhos ao colo, pega, despega, num cansaço de rins, mas numa satisfação de cumprimento e de amor.
Simone de Beauvoir não teve filhos, foi uma mulher livre que pôde mergulhar na vida e nos livros das suas paixões. É claro que não acontece isso à maioria  das mulheres, mas o que me parece – mau grado uma conjuntura laboral que não favorece as mulheres grávidas – é que muitas delas também não querem engravidar porque preferem absorver a vida nos seus prazeres, como fez Simone de Beauvoir. É preciso muito despojamento, muito dom de si, para acumular trabalho e filhos e casa. Felizmente os rapazes hoje em dia já têm mais a noção de uma partilha de tarefas caseiras. O quadro da mulher “escrava”, descrita por Filomena Mónica, aponta para o mulher que se assume nas suas funções de maternidade e de dona de casa, como antigamente.  Tem isso a ver, certamente, com a falta de educação ou de interesse cultural de que enferma a nossa sociedade. A verdade é que se pode conciliar trabalho, filhos, casa, interesses culturais. A mulher a dias pode ajudar, se os ordenados o permitirem. E o carro tem lugar cimeiro nas suas andanças, é claro.



As mulheres portuguesas são parvas
Maria Filomena Mónica
Quando casei, o que de mim se esperava, além da procriação continuada, era que passasse o dia a arrumar a casa, a cozinhar pratos requintados e a vigiar a despensa. Hoje, a estas tarefas vieram juntar-se outras. As mulheres modernas são também supostas ser boas na cama, profissionais competentes e estrelas nos salões
Nos últimos tempos, fui entrevistada por vários jornais, os quais, suponho que devido à crise económica, me enviaram mulheres muito novas. Eram geralmente bonitas, espertas, altas, modernas e rápidas. Eis, pensei, a Nova Mulher. Inesperadamente, o final das conversas tendeu a escorregar para a dificuldade que elas encontravam na compatibilização entre o trabalho e a maternidade. Num caso, aconteceu mesmo ter eu descoberto estar a desempenhar o papel de psicanalista, dando conselhos sobre a forma como a jornalista em causa, que acabara de ter um filho, podia e devia reivindicar para si, sem se sentir culpabilizada, um maior espaço de autonomia.
Suponho que o facto de ser mulher, mãe e avó convida a estas confissões imprevistas. Não me importei: as revelações das jovens serviram para me mostrar que as novas gerações femininas, pelo menos as da classe média, não têm a vida mais facilitada do que eu a tive há quarenta anos. Por um lado, as "criadas de servir", como antigamente lhes chamávamos, são hoje mais caras, por outro, a ideologia dominante sobre a função da mulher alterou-se menos do que eu pensava.
É isto que um trabalho, publicado por Karin Wall, do Instituto de Ciências Sociais, e por Lígia Amâncio, do ISCTE, veio demonstrar. A quase totalidade dos portugueses (93 por cento) considera que, num casal, tanto o homem quanto a mulher devem trabalhar fora de casa, mas um número impressionante (78 por cento) diz que uma criança pequena sofre quando a mãe trabalha. Cerca de metade da população afirma que as mães se deveriam abster de trabalhar quando têm filhos com menos de seis anos. Ora, devido aos salários reduzidos da maioria dos trabalhadores masculinos, Portugal possui a mais alta taxa de emprego feminino da Europa, uma situação que só pode conduzir a que as portuguesas vivam em estado permanente de culpabilidade.
Mas há mais. Os portugueses excedem-se verbalmente no seu amor pelas crianças: para 62 por cento, os indivíduos que não têm filhos levam uma "vida vazia". Ora, são estes senhores, que tanto dizem amar os filhos, que se não dão ao trabalho de lhes mudar as fraldas, de os levar ao médico ou de os alimentar. As mulheres portuguesas gastam três vezes mais horas do que os homens na lida doméstica: elas despendem, por semana, vinte e seis horas, eles apenas sete, o que dá uma diferença de dezanove horas semanais, uma média superior à europeia. As portuguesas continuam a ser exploradas, como se nada se tivesse passado desde o momento, na década de 1960, em que a minha geração ergueu a bandeira da emancipação feminina.
Algumas das jovens, que responderam ao inquérito, declararam conformar-se com a distribuição do trabalho vigente, chegando a dizer que "nós nunca nos zangamos por causa das tarefas domésticas", continuando a lavar a roupa, a passar a ferro e a mudar fraldas, como se os filhos não fossem responsabilidade de ambos. Sei, por experiência própria, que é mais fácil fazer greve às tarefas domésticas do que ao tratamento dos filhos. Apesar das minhas resistências iniciais, acabei por admitir que existe um laço afectivo diferente entre a mulher, que teve de carregar um feto na barriga durante nove meses, e o homem que se limitou a depositar nos ovários um montinho de espermatozóides. Mas isto não explica a exploração a que as minhas compatriotas são sujeitas, não só pelos maridos, como por uma sociedade que continua a atribuir-lhe todos os males contemporâneos, do consumo juvenil da droga à anomia cerebral dos alunos.
Nunca esperei que a situação fosse tão má quanto a que este inquérito revela. Na minha ingenuidade, pensei que, na História, havia domínios - sendo um deles a emancipação feminina - em que tinham verificado progressos. Depois de ler estes dados, tenho dúvidas. Algumas raparigas ainda parecem pensar que a sua única função no Universo consiste em desempenhar os papéis de esposas devotadas, seres paranoicamente ocupados com a limpeza do pó e mães tão excelsas quanto a Virgem Maria.
De certa forma, o destino das raparigas na casa dos trinta ou quarenta anos corre o risco de ser pior do que o meu. Quando casei, o que de mim se esperava, além da procriação continuada, era que passasse o dia a arrumar a casa, a cozinhar pratos requintados e a vigiar a despensa. Hoje, a estas tarefas vieram juntar-se outras. As mulheres modernas são também supostas ser boas na cama, profissionais competentes e estrelas nos salões. Mas isto é uma utopia. Nem a mais super das supermulheres pode levar as crianças à escola, atender os clientes no escritório, ir à hora do almoço ao cabeleireiro, voltar ao escritório onde a espera sempre um problema urgente, fazer compras num destes modernos supermercados decorados a néon, ler umas páginas de Kant antes de mudar as fraldas do pimpolho, dar um retoque na maquilhagem, telefonar a três "babysitters" antes de arranjar uma, ir ao restaurante jantar com os amigos do marido, discutir a última crise governamental e satisfazer as fantasias sexuais democraticamente difundidas pelos canais de televisão. Estou a falar, note-se, de mulheres socialmente privilegiadas. A vida das pobres é um inferno sem as consolações de que as suas irmãs de sexo, apesar de tudo, usufruem.
É por isso que a luta tem de continuar. Não sei se sou "feminista", nem me interessa debater a questão terminológica. Sei que sou contra todas as injustiças e, entre elas, contra a ideologia que nos quer manter encerradas numa Casa de Bonecas. Ao longo dos anos, tenho ouvido de tudo, incluindo mulheres que dizem estar contra a emancipação feminina. Pensei então que não valia a pena perder tempo com tontas. Mais madura, considero hoje que o melhor é retirar-lhes o direito ao voto, o direito ao divórcio e a protecção legal contra a violência doméstica. Se gostam de ser escravas, que o sejam. Acabou-se o tempo das contemporizações. Quem luta, têm direitos; quem se resigna, fica de fora. Historiadora
http://s.publico.pt/JORNAL/4572993

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