domingo, 31 de maio de 2015

Se não gostam comam menos



Foi-me mandado por email. Quem mo mandou gostou dele, talvez. Foi Alegre um dos cantores da liberdade em rubros cravos de Abril, tinha sido um dos cantores da rebeldia às imposições da ordem pelos “vampiros dos pés de veludo”. A verdade é que são tristemente saudosistas as suas velhas “trovas do vento que passa” que não resisto a transcrever e de reescutar na voz embaladora de Adriano Correia de Oliveira:
Pergunto ao vento que passa
Notícias do meu país
E o vento cala a desgraça
O vento nada me diz.
Mas há sempre uma candeia
Dentro da própria desgraça
Há sempre alguém que semeia
Canções no vento que passa.
Mesmo na noite mais triste
Em tempo de servidão
Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não.

A noite triste virou alegre, mas julgo que Alegre se não satisfez completamente. E, talvez desgostoso com o rumo do seu país, que já não precisa de conhecer pelo vento, (aliás mudo, já no tempo do seu desterro) - porque Alegre, como semeador de canções no vento, passou a engrossar a fileira dos que as bem sorveram -  Alegre continuou a compor. Mas  virou as setas para o estrangeiro trocista e comilão. Com menos melodia, é certo, que a balada do vento. Talvez por lhe faltar o Adriano e o Zeca Afonso já “libertos da lei da morte”, mas ainda em companhia dos mais companheiros que foram engrossando as fileiras dos heróis “encravados”, querendo significar com a expressão entre comas o facto de se cobrirem de cravos, sobretudo por altura dos festejos libertadores. Não, não está feliz Alegre, no seu país “encravado”, no bom sentido libertador. Até mesmo parece um pouco irado contra esses da estranja que falam em números e esbanjamentos incriminatórios, embora na sua - de Alegre – inocência afirme ignorar o motivo da troça, justificando-a como mera inveja – a inveja desses por nós outros que temos sol e amamos o riso, e o sol, o mar e o vinho - sem consentir, todavia, democraticamente, que outros prefiram a coca-cola, arredia do seu poema.
Leiamos então o poema em prosa de Manuel Alegre, e achemos para ele o ritmo das canções pop. A menos que prefiramos adaptar-lhe o som triste das mornas da Cesária Évora de pé descalço dos tempos colonialistas fascistas, de pé calçado no tempo da independência da sua terra, despovoada, ao que parece, quando os portugueses a descobriram e habitaram, ainda em tempo do Infante D. Henrique, por muito pouca importância que tal facto represente para o autor das “Trovas do vento que passa” ou do poema “Resgate” enviado por email, extraído de “Bairro Ocidental” – (D. Quixote, 2015). Título, certamente, alusivo à redução do país, que fora já império, a um simples “bairro”, nem sei bem se lhe terá passado pela cabeça, da lata. Embora Camões, é certo, também lhe tenha aplicado a modesta e carinhosa metonímia “praia” - “Ocidental praia lusitana”- mas também a metáfora enobrecedora “Reino Lusitano”, limítrofe entre terra e mar, e para mais com um Febo deitado à larga, num Atlântico de vasta rota:

Eis aqui, quase cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa
E onde Febo repousa no Oceano:
 
Leiamos, então, Alegre e as penas de consciência – ou talvez antes a nobre satisfação - do seu/nosso auto-retrato patrioticamente orgulhoso, segundo a tradição do nosso saudosismo, que o hino nacional das festas futebolísticas também comprova, quase diariamente. Somos como somos, e os tais que nos abafam com números não passam de vampiros de uma nova actualidade, deviam ter vergonha:

 "Resgate"
Há qualquer coisa aqui de que não gostam
da terra das pessoas ou talvez
deles próprios
cortam isto e aquilo e sobretudo
cortam em nós
culpados sem sabermos de quê
transformados em números e estatística
défices de vida e de sonho
dívida pública dívida
de alma
há qualquer coisa em nós de que não gostam
talvez riso esse
desperdício.
Trazem palavras de outra língua
e quando falam a boca não tem lábios
trazem sermões e regras e dias sem futuro
nós pecadores do sul nos confessamos
amamos a terra o vinho sol o mar
amamos o amor e não pedimos desculpa.
Por isso podem cortar
punir
tirar a música às vogais
recrutar quem os sirva
não podem cortar o verão
nem o azul que mora
aqui
não podem cortar quem somos.
 

Manuel Alegre
"Resgate" - in "Bairro Ocidental" - D. Quixote 2015

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