terça-feira, 12 de maio de 2015

E tudo são recordações



O artigo «A grande ilusão» de Vasco Pulido Valente(Público, 8/5/15) trouxe-me à memória os tempos de antanho, tempos do liceu, com rapazes de excepcional craveira, outros menos, mas que se deixavam levar porque era moda e isso influenciava intelectualmente as vidas de cada um, o convívio sendo imprescindível nos afectos livrescos, criando estímulos a leituras. Os mais ferrenhos, como o Rui Baltazar, deixaram-se mesmo ficar por lá, aquando da Revolução de 74, desde cedo combatendo em prol da libertação dessa África que o recompensaria na sua independência, com algum cargo ministerial, justo apreço da traição à sua pátria. Fôramos amigos na infância, éramos amigos de visita espaçada e gradualmente arrefecida, mas grande foi a surpresa da descoberta das suas actividades pró Frelimo, que definitivamente arrumou afectos no escaninho dos desprezos.
É certo que, para aqueles de quem se dizia que almoçavam com o governo e jantavam com a oposição, bem instalados na vida sempre, a recompensa da traição viria do seu próprio país, para onde haviam imigrado, capitalizando as suas escolhas e colaboracionismo em cargos posteriores de grande visibilidade, mas sempre no convívio democrático astucioso, que lhes permitia a diversidade dos prândios. Mas isso foi, afinal, a maioria, pois mesmo os que anteriormente tinham vivido na passividade e na ignorância, de repente revestiram a veste em moda, renegando o seu passado e dizendo-se perseguidos anteriormente, como convinha, para a sua estabilidade posterior e dos seus.
Houve também aqueles que sempre comeram da terra onde nasceram, mais tarde em estudos superiores que os pais naturalmente comparticipavam com as espórtulas do seu trabalho, mas a quem os filhos criticavam a participação no lauto banquete pátrio ultramarino, feito de exploração dos africanos, paradoxalmente sem pejo de nele eles próprios também participarem, sugando as economias desses pais trabalhadores numa terra então portuguesa, pais que lhes pagavam os estudos e mais tarde a vida na Europa, longe da guerra que a outros se impôs, sem tantos poderes económicos para a ela se furtarem, ou obedecendo mesmo a outras convicções deixadas por antepassados de brio.
 Eram, pois, ledores da cartilha de Marx, por via dos escritores de que fala Vasco Pulido Valente, os tais que se reuniam nos cafés e escreviam livros que a mim só mais tarde se impuseram, passados os deslumbramentos ou as obrigatoriedades impostas pelos estudos próprios, mais interessada, contudo, nos entrechos romanescos das narrativas de Simone de Beauvoir ou dramáticos de Sartre, do que no artifício das doutrinas a que Pulido Valente aponta a utopia, ele próprio reconhecendo as desordens causadas por todos os ditadores facínoras, de Hitler, a Estaline, a Mao Tse Tung, ou por democratas dementes mas poderosos, destruindo cidades para vingar ofensas, em ataques surpresa denunciadores de uma “era atómica” assim criada, de intranquilidade e de guerra fria que um Gorbachev ajudou a sanar, mas que essas doutrinas permanecendo, para contrapor aos desmandos capitalistas o igualitarismo nas ambições humanas, contribuem para destabilizar, trazendo a miséria e a desordem, nos países de democracia recente, sinónima de convicções que a nossa parolice, de par com uma falsa generosidade, grita aos sete ventos. A parolice de António Costa, segundo Vasco Pulido Valente, na sua “grande ilusão”, a tal que criou zangas entre amigos, como as que Simone de Beauvoir refere a respeito das desavenças de Sartre com Camus e outros camaradas:

A grande ilusão
Vou escrever sobre meia dúzia, talvez, com optimismo, sobre uma dúzia de intelectuais franceses que dominaram o pensamento político desde o fim da guerra a 1962-1965. Todos se conheciam, todos se viam, todos passavam pelos mesmos restaurantes, pelos mesmos bares, pelos mesmos cafés. Todos se falavam e não paravam de falar, mas ninguém concordava com ninguém.
Havia, para começar, uma grande divisão: entre os que estavam dentro e os que estavam fora — do Partido Comunista Francês (PCF), claro está. E, dos que estavam fora, entre os que estavam mais próximos do partido e os que estavam mais longe. A distância era medida pela quantidade de idiotia e de mentiras que cada um alegremente aceitava sobre a URSS e a política francesa; pelos livros que cada um escrevia para justificar o injustificável.
Não se pense que esta estranha vida se fazia sem dor. As crises de consciência e as zangas pessoais não paravam nunca. Ferviam insultos. Muitos foram para a província com esperança de recuperar um pouco de sanidade. Não conseguiram. Os dogmas não deixavam saída. O primeiro declarava a URSS a pátria do socialismo real (por muito que a realidade se não parecesse com a descrição), e os verdadeiros revolucionários tinham de a defender contra as calúnias do Ocidente. O segundo dava ao proletariado da França a missão histórica de trazer o socialismo à Europa (apesar de ele já ser nessa altura minoritário e fraco). E o terceiro estabelecia que o PCF representava o proletariado da França. Recusar o PCF era assim simultaneamente recusar a história, a justiça e a Pátria.
A herança desses senhores e dessas senhoras acabou por ser um legado de ignomínia e de irresponsabilidade. Verdade que, perante a evidência, a maior parte se arrependeu e, penitentemente, acabou por se confessar em público, como na Idade Média. Mas não ajudaram nada, nem aliviaram o mal que tinham promovido e aplaudido. A esquerda portuguesa de hoje não se distingue muito da esquerda francesa que reinou durante 20 anos e a seguir abjectamente se matou. Os filhos dela continuam a berrar por aí. Até ao dia em que perceberem que as poses não substituem os factos e que não se governa disfarçando e escondendo um passado desagradável. O dr. Costa julga que caiu imaculado no meio de nós. Infelizmente, nós sabemos como e com quem ele chegou ao que chegou.

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