sábado, 30 de maio de 2015

As nossas coisas



Ontem vi parte de uma reportagem na TV5 sobre a reacção do povo nicaraguense à abertura de um canal unindo Atlântico e Pacífico, (tal como fora o do Panamá), empreendimento entregue a uma empresa chinesa e que, ao que parece, traz imensos danos ambientais, apesar do fortalecimento económico previsto para o país. Uma reportagem em grande, com fotografias dos espaços, entrevistas com tradução imediata, os pontos de vista normais de quem se sente incomodado na sua estabilidade e na destruição da fauna e flora ou poluição das águas do seu maior lago de água doce que tal empreendimento vai certamente proporcionar, atravessado pelo tal canal. Uma reportagem como tantas que a TV5 apresenta diariamente sobre os vários espaços do mundo, nos seus costumes, nas suas vidas, nos seus sentimentos. Assim se vai viajando pelo mundo, e conhecendo os hábitos da Gronelândia, da Patagónia, como da Mauritânia ou do Brasil, ou mesmo os empreendimentos agrícolas de famílias francesas, como a da família que trabalha no cultivo e comercialização da couve-flor. Assim se educa um povo, alargando os horizontes geográficos e culturais em suma, pois que de conhecimento se trata, a televisão não utilizada apenas para distrair ou divertir. Reportagens certamente que dispendiosas, exigindo deslocações, estudos prévios, material logístico, dedicação, e, enfim, equipas de investigadores que estão, a maior parte das vezes, invisíveis ou apagados, ou modestamente intervenientes.
Não assim por cá, limitados que somos às exposições pessoais, algumas bem interessantes, das pessoas entrevistadas, cada uma debitando os seus conhecimentos, numa arte exibicionista em que se cultiva a atitude, com maior ou menor relevo, as figuras femininas expondo, além dos ademanes mimosos, as vestes do nosso regalo visual. As reportagens sobre o mundo que roda, de povos alheios e acontecimentos civilizacionais, são dispendiosas e exigentes de capacidades que talvez não possuamos, habituados ao nosso mundo de exaltação das nossas misérias ou das nossas glórias, das nossas “saias de Elvira” que mais uma vez transcrevemos de Eça e do seu “Fradique”:

«Era o tempo em que eu e os meus camaradas de Cenáculo, deslumbrados pelo Lirismo Épico da Légende des Siècles, «o livro que um grande vento nos trouxera de Guernesey» — decidíramos abominar e combater a rijos brados o Lirismo íntimo, que, enclausurado nas duas polegadas do coração, não compreendendo dentre todos os rumores do Universo senão o rumor das saias de Elvira, tornava a Poesia, sobretudo em Portugal, uma monótona e interminável confidência de glórias e martírios de amor.»

Não se trata agora, como no caso de Eça, de atacar a nossa poesia lírica, de cunho exclusivamente sentimental. Mas esta ficou-nos no goto, não exigindo muito conhecimento geográfico ou científico, favorecendo, pois a nossa apatia cultural. Os tempos mudaram, a idiossincrasia da indolência e da sentimentalidade permaneceu, o progresso trazendo algumas mudanças, naturalmente. Mas a tendência para o encarecimento dos casos que privilegiam as nossas disponibilidades afectivas, verifica-se ao nível dos media, e especialmente das televisões. Não, a televisão não favorece grandemente a nossa ânsia de saber, vocacionada que é para o espectáculo e o sensacionalismo.
Para além do mais, a televisão tem um papel fundamental na difusão dos casos de violência, nas escolas e ailleurs. Como diz o meu filho João, sempre houve violência entre os moços nas escolas, casos resolvidos entre eles. Agora, a televisão informa, quase em simultâneo. Agora os pais estão de prevenção para participarem dos professores, caso “maltratem” os filhos mal educados. É o que diz a minha filha Paula. Bola de neve em crescendo, gelo polar derretendo e engolindo o mundo da solidez.

Di-lo Vasco Pulido Valente, no seu retrato. Inutilmente, como já Eça em vão o disse:

O lixo
Público, 22/05/2015
Há anos que a televisão (pública e privada) nos dá uma dieta diária de toda a espécie de crimes. Não há limite à violência que se julga própria para o nosso aprimoramento moral: de novos sobre velhos, de velhos sobre novos, de velhos sobre velhos, de novos sobre novos. A conversa sobre a necessária defesa das mulheres, sobre o “bullying” ou outras formas de barbaridade — uma conversa que nunca é coerente e nunca leva a nada — só serve para explicar que a televisão se tenha ultimamente convertido num emissor de lixo sem desculpa, nem sentido. De resto, além do crime, existe ainda o acidente, qualquer acidente, desde que apareçam imagens de sangue, desespero e destruição. E, quando não se encontram em Portugal, não faltam por esse mundo calamidades para encher o tempo.
Isto sucede em parte por duas razões. Primeira, porque as “notícias” são comparativamente baratas: um automóvel, câmara e um “repórter” e está o caso resolvido. O câmara regista — normalmente — os locais, que 99 por cento das vezes não põem ou tiram nada à história que se vai contar. O repórter faz meia dúzia de perguntas à família (quando ela não foge) e aos conhecimentos das vítimas. Tanto as perguntas como as respostas são sempre as mesmas e não esclarecem (nem podem esclarecer) coisa nenhuma. Segunda, o público parece que gosta: um gosto que vem da literatura popular do século XVIII e do inevitável “folhetim” dos jornais do século XIX. Olhando para a televisão, não melhorámos muito no nosso gosto pelo melodrama e pela história crapulosa do dia. Hoje, ilustres comentadores políticos escrevem seriamente sobre o “amor de mãe”.
Mas, no meio disto, a televisão reserva para si um espaço privilegiado em que se encarrega de promover a rivalidade e o ódio e, sobretudo, a agressão física sistemática: o futebol, bem entendido. Os treinadores de futebol (especialmente o do FC Porto e o do Benfica) devem ser com certeza as duas personagens mais longa e assiduamente ouvidas da vida pública portuguesa. Como o dr. Cavaco Silva, repetem sem excepção trivialidades do mais sólido optimismo e prometem, sem prometer, o mais glorioso futuro para amanhã. Durante meses, a televisão cria um clima de guerra e de tragédia e, quando chega a resolução, é inevitavelmente a violência que vem à superfície. Nessa altura, a autoridade lamenta e sacode a água do capote. E a roda recomeça. Não temos conserto.

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