segunda-feira, 13 de abril de 2015

Vidas



Às vezes os jornais trazem-nos momentos de grande prazer, para contrabalançar com as notícias do nosso descontentamento que são muitas, o espectro do Mal pairando assustadoramente por sobre uma Terra gradualmente descaminhada. Para disfarçar, tentamos por vezes uma leitura de literatura, que vamos buscar a um livro pouco espesso, “Alexis”, por exemplo, da Marguerite Yourcenar, livro que o Ricardo me ofereceu em tempos, num desejo pertinente de me fazer vestir-me de uma modernidade de pensamento menos pecaminoso de conservadorismo, esquecido de que também Proust já me elucidara mais longamente ainda a respeito das anomalias sexuais, além de que os grandes poetas nossos, António Botto e Mário de Sá Carneiro, para só falar dos atrasados, lhes tinham seguido a via, já ilustrados por génios como Óscar Wilde, Verlaine, Rimbaud que sempre releio, indiferente às vidas de cada um. Um livro curto, este “Alexis”, narrativa em primeira pessoa, plena de carinho pela mulher com quem casou e lhe deu um filho, retrospectiva de um viver de tristeza na casa senhorial onde nascera, escondendo ruína, filho único entre várias irmãs carinhosas, um pai sombrio, uma mãe que morreu cedo. O respeito pela mulher destinatária da sua longa carta, o repúdio do filho recém-nascido e finalmente o retomar do seu piano com umas mãos de liberdade, que lhe oferecem a assumpção da sua homossexualidade e a deserção do lar. Um livro curto, sobre um tema tabu, na altura em que foi publicado – 1929 – uma Marguerite Yourcenar, de 26 anos então, referindo influências clássicas, como Píndaro, embora canhestro, ou contemporâneas como o moralista Gide, a justificar um tema que só nos anos 60 - em Portugal 70 - faria parte das reivindicações de uma democracia aberta, condenatória do preconceito social. Nós por cá, tivéramos também a autobiografia romanceada “A Sombra dos Dias” de Guilherme de Melo, de quem não esqueço a entusiástica designação “um homem”, aplicada ao escritor, feita por Carlos Cruz, em entrevista àquele, justificada pela sua “honestidade” de despojamento, contra as hipocrisias sociais condenatórias, livro que comentei em “Anuário – Memórias Soltas”, de 1999.
Mas, a contrabalançar com esta leitura psicológica da Marguerite Yourcenar, de prolongamento da insónia, a leitura da página de Alberto Gonçalves – “Voar como o Jardel” – necessariamente menos maçuda e plena de vivacidade crítica, na variedade dos casos observados, na sensibilidade e argúcia da sua condenação irónica.
O do primeiro título (Notícias 12/4/15, Voar como o Jardel, refere Costa e sua passagem de testemunho da Câmara de Lisboa, para melhor servir a nação, passeando-se pelo país, em promessas para provável PR, que ainda encontram eco em ouvidos atentos, sintoma do nosso atraso, ao contrário do povo brasileiro, a quem basta a informação de franqueza do candidato para o eleger, por muito que posteriormente se prove que nada fez, como Jardel, que assim saiu, juntamente com os seus acompanhantes da eleição, com a mesma presteza com que entrou, e sem maçar ninguém com falsas promessas.
Menos hipócrita será, mas não vejo, contudo, como o caso caricato não é igualmente sintoma de menor terceiromundismo ou menoridade mental, brincando com a miséria alheia, física e psicológica-

Em “No princípio era a verba” insurge-se contra o fotógrafo comunista brasileiro Sebastião Salgado que, em nome dos bons sentimentos tem sido economicamente bem sucedido em exposições que lhe permitiram singrar pelo capitalismo altruístico, ajudando, com os seus alertas expositivos, os diferentes espécimes da fauna terráquea a sobreviver.

Finalmente, é sobre Freitas do Amaral Um Cérebro” – texto de uma ironia bem concebida contra alguém que também eu já admirara, nos seus tempos de moderador das aflições, com a sua palavra de bom senso, sabedoria e patriotismo e cujo percurso descambou pelo mesmo trilho por onde resvalaram outros, apoiantes, verdadeiramente, de si próprios, mudando facilmente de casaca, no enchimento dos seus próprios baús:

Voar como o Jardel
por ALBERTO GONÇALVES
Ao entregar democraticamente a Câmara Municipal de Lisboa a um adjunto, António Costa declarou--se empenhado em, de agora em diante, "servir Portugal e os portugueses". O Dr. Costa pode e deve ser responsabilizado por muitas enormidades. Porém, esta não é nada original. Nos modernos e esclarecidos tempos que correm, ainda não há político que evite atoardas do género: todos fingem acreditar que as suas carreiras, ambições, manhas e naturezas são exclusivamente dedicadas ao bem comum. A artimanha mediria a altíssima conta em que tais espécimes se têm se de facto não medisse a baixíssima conta em que têm o eleitorado.
A verdade é que os políticos dizem barbaridades assim porque esperam, com certa propriedade, haver uma audiência para as ditas. Ao contrário do que tantas vezes se refere, o problema das democracias, e da nossa em particular, não é a descrença de inúmeros cidadãos na política: é a crença, ou fé cega, de outros tantos. Bastante pior do que o cinismo é a ingenuidade com que se continua a engolir patranhas evidentes, a aplaudi-las em comícios e a legitimá-las nas urnas. Por incrível que pareça, há mesmo criaturas que levam a sério a citada declaração de intenções do Dr. Costa (ou, insisto, de qualquer um, incluindo os que simulam combater a hipocrisia dos políticos através de uma bonita conversão à política). Em matéria de probabilidades teóricas, seria mais verosímil a descoberta de pinguins em Marte ou de um tratado de oratória assinado por Jorge Jesus. Não é o que acontece na prática.
O que acontece é este desgraçado estado de coisas: no Portugal de 2015, uma percentagem demasiado significativa da população vota com o entusiasmo e as ilusões de 1975. Sintoma de atraso? Sem dúvida. Puro Terceiro Mundo? Não sei. No Brasil, que em princípio corresponderia melhor ao conceito, abundam os candidatos vitoriosos a cargos públicos que já não acham necessário recorrer às historietas do "serviço" à comunidade ou do "espírito de missão" para acabar eleitos. Lá, com frequência, a sinceridade basta à eleição.
Veja-se o caso de Mário Jardel, antigo futebolista conhecido pelos golos e pelos assumidos excessos em matéria de narcóticos. Em Outubro passado, concorreu a deputado do Rio Grande do Sul sob o único pressuposto de que precisava de "manter a cabeça ocupada". A troco da franqueza, 41 mil pessoas ofereceram-lhe o lugar, numa tocante demonstração de maturidade cívica. Só isto bastaria para fazer do Sr. Jardel e respectivos votantes exemplos a seguir. Mas a história não termina aqui: após dois meses na assembleia estadual, nos quais nunca abriu a boca ou maçou o povo com a apresentação de uma proposta, a cabeça voltou a desocupar-se, o Sr. Jardel demitiu as dezenas de assessores e foi-se embora. Em suma, a perfeição. E uma goleada aos nossos políticos, que além de impostores nunca se calam e quase nunca desaparecem.

Quinta-feira, 9 de Abril
No princípio era a verba
Depois de usar a fotografia na melhoria das condições de vida da humanidade, ou pelo menos da parte da humanidade chamada Sebastião Salgado, Sebastião Salgado vai salvar o planeta dos atentados cometidos pelos homens, espécie que, nas doutas palavras do brasileiro ao Expresso, "não merece viver". Antes, eram os retratos dos pobrezinhos; agora, os retratados são pinguins e tartarugas, algumas vedetas da exposição Génesis, em Lisboa até Agosto.
É isto o que distingue os eleitos. Um pelintra pega numa câmara e desata a fazer selfies ou a capturar o repetitivo crepúsculo. Um artista emprega a geringonça ao serviço da arte, mais especificamente a arte da denúncia. Não importa se o alvo são as consequências do capitalismo na existência dos homens ou na perturbação da natureza: com a mesma coerência que o leva a lutar pela dignidade dos povos enquanto acarinha o comunismo, ou a cirandar pela Terra em aviões um bocadinho poluentes a fim de criticar a poluição, o que importa ao Sr. Salgado é ganhar uma fortuna a apontar o dedo aos desvarios da cobiça. O Sr. Salgado é um doce.

Sexta-feira, 10 de Abril
Um Cérebro
É sempre recompensador ver criticadas as "ideias malucas" (cito) da Sra. Merkel no Encontro Internacional de Causas e Valores da Humanidade, naturalmente realizado em Fafe. E é mais entusiasmante ainda quando o crítico em causa dá pelo nome de Freitas do Amaral. De vez em quando, o emérito professor sai das catacumbas solenes em que habita e emerge à superfície para distribuir sabedoria entre os mortais. Em Fafe, combateu a sua Estalinegrado particular e explicou que "a Europa está a caminho do precipício pela mão da chanceler e daqueles que a apoiam", que "o neoliberalismo (?) é uma ideia destituída de qualquer fundamento económico ou social" e que "ou conseguimos travar essa caminhada para o abismo, voltar para trás, repensar tudo a adotar políticas de crescimento, de emprego e de solidariedade social ou ainda vamos assistir a uma grande tragédia". O facto de tão astuto cérebro ainda não ser um dos 174 possíveis candidatos do PS às "presidenciais" é um mistério. E quem diz do PS diz do POUS.»

Leituras domingueiras, para fugir tantas vezes à sensaboria dos programas infindáveis de criminologia pátria ou estrangeira, em termos de amplas reportagens noticiarísticas para o nosso espanto. Como se, “entre todos os rumores do universo” o nosso mundo continuasse confinado ao “rumor das saias de Elvira”, como já era no tempo de Fradique Mendes.

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