sexta-feira, 20 de março de 2015

Passando pelo do vigário



Um conto de crianças” na designação de Passos Coelho, que Vasco Pulido Valente retoma no título da sua crónica do Público de 14/3/15 para apodar as artimanhas dos salvadores da nação grega da actualidade. Talvez tenham razão, mas justifica-se o facto pelo hábito dessa leitura de contos de que eles, gregos, foram pioneiros, muitos séculos antes de Cristo, o que lhes marcaria a índole, de sedução e confiança, em episódios como esses das epopeias homéricas, do Cavalo, da Circe, das Sereias, do Polifemo… Assim Tsipras e Varoufakis entenderam, qual o “sábio grego”, que abandonando o cavalo de pau nos campos de Tróia, como oferenda aos deuses, mas contendo guerreiros escondidos no seu bojo, os Troianos cairiam que nem patos, levando o cavalo para dentro das muralhas de Tróia, a qual se renderia a seus pés – deles, dos gregos do bojo e dos que entretanto acorreriam, vindos dos esconderijos e da falsa partida das naus, useiros e vezeiros em estratagemas e logros. Assim, pois, faria a Europa, após os muitos anos de distúrbios causados por má administração dos seus dinheiros, Troia rendida aos encantos juvenis dos parlamentares gregos defensores de um crédito a fundo perdido, como dever de hospitalidade sem troca, filosofia de bazófia, escondida no bojo de um cavalo de pau, Circe altiva transformando em porcos os marinheiros de Ulisses, esquecidos, os jovens gregos, de que Ulisses sempre escapou, até mesmo às Sereias de voz melodiosa, entoando para ele em vão as músicas do seu embalar, ou a Polifemo ingénuo nas malhas de um “Ninguém” superior em malícia e em estratégia, tal como a Europa do Norte, Ulisses eficiente, matador dos pretendentes à sua fortuna e à sua Penélope, ao contrário do que pensaram Tsipras e Varoufakis, julgando que Ulisses eram eles, sábios gregos que nada têm, hélas!, a ver com o antecessor.
Quanto a mim, por muito que preze a delicadeza de Passos Coelho e de Vasco Pulido Valente pela designação “contos de crianças” da imperícia grega hodierna, localizá-la-ia mais ao nível do nosso “conto do vigário”, secundada nos muitos exemplos da nossa própria postura no mesmo mundo de patranha, por conta desse vil metal luzente – agora mais poderoso em papel - que “faz traidores e falsos os amigos”, com nobres exemplos de maior ou menor brado, Alves dos Reis peritos, Donas Brancas de falsa generosidade pindérica, Ricardos Salgados de suaves e cínicas garras. E tudo isso já contado na Bíblia, mesmo sem Banca ainda. Ou na ambição desmedida dos grandes Gatsbys da diversão capitalista da decadência.

Leiamos Vasco Pulido Valente:
Um conto de crianças
A esquerda cá de casa já não abre a boca sobre o Syriza. O entusiasmo dos primeiros dias passou depressa; o que só prova a inconsciência da pobre e mentecapta gente que putativamente representa, na sua própria opinião, a única verdadeira “alternativa” à coligação do Governo e à chamada política de “austeridade”.
O Syriza entrou em cena com promessas tonitruantes, mas bastaram duas semanas para começar uma saída de sendeiro, barafustando como uma criança malcriada e birrenta, expulsa de um conto de crianças (sim, Passos Coelho, “um conto de crianças”). A infantilidade de banir a gravata, o blusão de couro, o casaco de gola levantada e dobrada anunciavam uma irremediável ligeireza, que depressa se iria manifestar em questões de substância e mesmo de simples sobrevivência.
A seguir ao preâmbulo cómico, Varoufakis resolveu apresentar sete reformas, que em princípio justificariam o dinheiro que ele pretendia da Alemanha. Essas reformas, para espanto geral, eram: a criação de uma espécie de Tribunal de Contas, a legalização do jogo online, “cortes” no orçamento dos ministérios, uma amnistia fiscal e uma caça ao IVA com a prestimosa ajuda de estudantes (naturalmente, de esquerda) e de turistas. Não vale a pena perder tempo com este programa, excepto para dizer que mesmo os portugueses mais profissionalmente patetas se ririam dele. O Syriza só conseguiu até agora mudar o nome da “troika” para a designação mais branda de “instituições”, um triunfo digno da glória clássica da Grécia, que não lembraria ao Diabo pedir.
Entretanto, e para convencer a Europa e o mundo de que estava no rendoso papel de vítima, o Syriza tomou algumas medidas sem exemplo. Acusou Portugal e a Espanha de conspirarem para a sua queda. Ameaçou com um referendo (não se apurou ainda exactamente a quê) e também com eleições (não se percebe a que propósito). O ministro da Defesa, de extrema-direita, ameaçou a Alemanha de a “inundar” de imigrantes clandestinos e, sobretudo, de “jihadistas”. E o primeiro-ministro Tsipras reabriu o problema (fechado com o acordo das duas partes entre 1960 e 1990) das indemnizações da Alemanha pela invasão e ocupação da Grécia durante a II Guerra Mundial: Tsipras pede agora 162 mil milhões de euros, metade da actual dívida do Estado, que ele continua a declarar que não paga. Varoufakis, num intervalo lúcido, reconheceu há dias que a Europa se “irrita” hoje com ele. Não sei o que sentem os gregos que ele se obstina a levar para o isolamento, a desordem e a miséria. De qualquer maneira, a história do Syriza é uma lição para a esquerda, do Bloco ao PS. Esperemos que aprendam.

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