domingo, 1 de março de 2015

O mundo é pequeno?



Três artigos de Vasco Pulido Valente que são para mim mais lições de história literária sobre o mundo que “nos vai”, de equivalência ao mundo que “nos foi” e “nos será”, não se duvide.

“Ontem, hoje e amanhã” (Público, 15/2/15), paráfrase irónica do título da bela canção  de José Cid, versa sobre o pensamento nacional uniforme e de lugar comum inamovível, que faz que um centro polarizador, em rotativismo periódico, se mantenha na liderança, ora representado pelo PS ora pelo PSD/(CDS), as franjas à direita e à esquerda - especialmente as últimas, mais retorcidas, na sua monocórdica virulência atacante - entretendo-se a destruir o equilíbrio central, propondo alternativas de solução, como Syriza ou Podemos nacionais, irrelevantes no nosso país, - embora contribuindo em larga escala para o seu desequilíbrio financeiro, com as greves e perturbações que provocam, o que, de resto, lhes é indiferente, na exclusividade dos seus intuitos altamente misericordiosos.

«D. Pedro V, Portugal e a Grécia» (Público, 20/2/15) é uma incursão no paralelismo social entre gregos e portugueses, já notada no século XIX, nas anotações feitas por D. Pedro V a um livro de viagens publicado então – “A Grécia Contemporânea” de Edmond About – que comparava aberrações do comportamento grego, assinaladas pelo monarca português, no paralelismo com iguais figuras nacionais, (hábito que nos ficou, de apontar analogias com as personagens queirosianas). A questão da dívida grega, inferior à nossa no século XIX, superior no século XXI leva Pulido Valente a concluir pela identidade na irresponsabilidade. Todavia, julgo que o povo grego é superior em cultura ao nosso, e, na questão dos empréstimos, julgo que no nosso país houve governantes de uma seriedade exemplar na questão das penhoras – Egas Moniz e a corda ao pescoço, oferecendo a vida e dos seus, a ser verdadeira a história, D. João de Castro e as barbas de penhor, na Índia, por um empréstimo pedido, contando-se também idêntico pundonor do Marquês de Pombal, de Salazar, não sei se do general Eanes, do nosso governo eu creio. Mas certamente que a Grécia também tem gente de mérito resgatando as dívidas, em todo o mundo há disso, não vamos orgulhar-nos assim. Até pelos muitos que temos de antes pelo contrário…

A «diabolização do funcionalismo», (Público. 21/2/15), parte da expressão entre aspas, caprichosamente repetidas por Isabel Moreira no programa “Barca do Inferno” que também escutei, no abalo espantado pelos seus discursos de gralhas cada uma abafando a voz das outras, em demonstração de uma falta de compostura que não pode servir de exemplo a ninguém, e muito menos à juventude que eventualmente escute o seu show e que os professores têm que educar para poderem funcionar em condições. Deste modo, Vasco Pulido Valente conta a história do funcionalismo em Portugal, funcionalismo protegido com relativo fervor pelo Estado, já desde o século XIX, como lastro de apoio ao próprio Estado, que dele necessita para sobreviver. Um funcionalismo, por isso, não exigente de brio profissional, porque sem estímulo de progressão, roçando-se, em grande parte, pelas mesas e cadeiras dos serviços públicos, grande parte ociosa e estéril e merecendo muitas vezes o desprezo social.
Daí que a expressão usada por Isabel Moreira seja puramente grátis e inócua, os despedimentos impostos tendo implicado causas que ultrapassaram os desejos do próprio Governo, é bem de ver. Só o não vê quem mais do que tudo faz desse governo a mira da sua ira, que noutras circunstâncias seriam direccionadas para o mesmo funcionalismo desmazelado.
Os textos de Vasco Pulido Valente:
«Ontem, hoje e amanhã»
«Apesar do tempo, apesar do mundo, apesar da crise, os resultados da última sondagem continuam, no essencial, a ser os resultados das legislativas de 1976: 38 por cento para o PS e 27 por cento para o PSD. O que mudou, mudou à esquerda e à direita deste inamovível bloco. O CDS foi encolhendo à medida que a ditadura e o PREC se esqueceram. Como o PC. O resto não conta: é uma variação inconsequente, que vai do romantismo do Bloco a Marinho e Pinto e ao Partido Livre. Nenhum deles conta e o voto que putativamente receberão podia muito bem ir para outro sítio qualquer. Também Cavaco é visto pela opinião do “comentariado” como a reincarnação de Salazar, quando de facto se parece com Caetano. Quando se mete uma ideia na cabeça dos portugueses quase nunca sai.
Os portugueses acham que o PS está do lado dos “pequenos” e o PSD do lado dos “grandes” e, em quarenta anos, nada perturbou esta confortável convicção: nem o triste consulado de Cavaco, nem Guterres, nem Sócrates. Quando havia dinheiro, Cavaco ganhava, porque o bom povo gosta de sossego e de se dar bem com os “ricos”. Quando não havia ou havia pouco, era do PS que se esperava um emprego no Estado, um subsídio ou um negócio a precisar de “facilitação” (de uma parceria, por exemplo, ou de um decreto). Adelino Amaro da Costa costumava melancolicamente lamentar o “esquerdismo” do indigenato. Só não se lembrava que esse “esquerdismo” ia de Ricardo Salgado ao último escrevente das Finanças. Hoje, mesmo sabendo isso, o país não quer abandonar o seu conforto mental.
A “extrema” direita (coitado do ordeiro CDS) e a “extrema” esquerda são, para ele, uma aventura e uma promessa de desacato. O Syriza e o Podemos! não têm futuro em Portugal. Ronaldo e José Mourinho satisfazem o apetite de glória da nação. E o império é agora a TAP e a RTP, embora por toda a parte as companhias de bandeira e os canais “em aberto” estejam a morrer por obsolescência técnica e penúria económica. A salvação de que por aí se fala é para o cidadão ou a cidadã normal, como compete a uma sociedade pobre - a segurança e não uma incursão no desconhecido. Por aqui, a modernidade, para não ofender os destinatários, precisa de ser inócua e superficial: o telemóvel, a internet, coisas que não perturbem o deserto intelectual e, claro, emocional em que a Pátria se habituou a viver. »

«D. Pedro V, Portugal e a Grécia
Excepto Jorge Almeida Fernandes neste jornal e José Manuel Fernandes no Observador, que se deram ao trabalho de estudar antes de escrever, toda a gente fala na Grécia sem saber o que foi ou o que é a Grécia; e toda a gente compara Portugal com a Grécia por causa de embaraços financeiros vagamente comuns.
Para meu espanto, esta comparação tem uma curiosa história. Por volta de 1860, um escritor francês, Edmond About, publicou um livro de viagens que se chamava A Grécia Contemporânea, que, a julgar pelo número de citações, se vendeu muito bem em Portugal. O próprio rei, D. Pedro V, o leu; e não só o leu mas também aplicadamente o anotou à margem. E quando morreu, em 1861, não se sabe como o exemplar dele circulou para grande felicidade da oposição ao “fontismo”. Porquê?
Porque D. Pedro V, uma criatura melancólica, a cada aberração que About contava da Grécia, indicava estudiosamente ao lado a aberração correlativa em Portugal. Aos políticos gregos dava os nomes dos seus semelhantes portugueses. Onde se contava a “indignidade”, a corrupção e a trapacice da política grega, ele ia registando exemplos de cá. Até ao lado da história de um ministro da Fazenda (das Finanças) grego que era ladrão, ele não se esquecia de um ministro da Fazenda português com o mesmo cadastro. Como o rei, Eça e Ramalho e o grosso da “inteligência” da época achavam que o livro de About era uma “descrição exacta” de Portugal, embora nós não tivéssemos tantos salteadores, porque nas nossas montanhas não havia infelizmente nada para roubar.
E, no entanto, a dívida pública da Grécia não passava, por essa altura, de uma pequena fracção da dívida pública de Portugal, que excedia (em 54.000 contos) a dívida conjunta da Grécia, da Bélgica, da Suíça, da Dinamarca e da Noruega. Portugal, que estava em paz desde 1850 e, além disso, numa longa fase de estabilidade doméstica, devia à banca francesa e à banca inglesa (em 1882) 420.000 contos, para um orçamento de Estado de 26.000 contos (segundo Rui Ramos, em 1890, quando tudo rebentou devia 600.000). Hoje a Grécia anda pior do que nós. Mas no fundo não somos muito diferentes. Metemos na cabeça, tanto uns como outros, que o mundo era responsável pelo nosso conforto e prosperidade: uma triste ilusão que nos levou ciclicamente à pior das misérias. Uma ilusão que não se muda com demagogia ou com chantagem, por muito que seja o nosso descaramento e fervor.»

A «diabolização do funcionalismo»
«No programa Barca do Inferno, Isabel Moreira repetiu um dos piores lugares-comuns da irresponsável propaganda da oposição. Nesta altura da nossa história, tudo se admite: a ignorância, a malícia e o fanatismo. Disse a sra. deputada (do PS) que o governo de Passos Coelho tenta, e sempre tentou, “diabolizar” o funcionalismo público, como se em Portugal o funcionalismo público antes desta longa crise gozasse de um prestígio inatacável e geral.
Isto implica, como qualquer pessoa medianamente culta perceberá, o desconhecimento absoluto do que foi a vida política portuguesa desde (e para não ir mais longe) 1832. E também uma curiosíssima cegueira ao que tem sido a obscura vida desta II (ou III) República, da “revolução” de Abril ao consulado do PS e de Sócrates, que Deus guarde.
Em 1832, quando as tropas de D. Pedro desembarcaram no Mindelo e tomaram o Porto, o padre José Agostinho de Macedo proclamou logo que os “malhados” vinham destruir o trono e o altar, mas, sobretudo, tirar os “legitimistas” do Estado e ficar com os “lugares” que eram “legitimamente” deles — prepotência e roubo que indignavam José Agostinho muito mais do que as eventuais desgraças da religião e do Infante. A partir daí a disputa do emprego ocupou invariavelmente o centro da política portuguesa. Até os pronunciamentos militares (a oficialidade fazia parte do funcionalismo) e as guerras civis eram quase sempre provocadas pelo acesso ao emprego público que uma das partes dominava e a outra pretendia. Costa Cabral, o homem mais detestado do século XIX, acabou por cair por causa da sua doutrina do “exclusivismo”, ou seja, por só nomear gente do seu partido e da sua confiança.
Mas como sustentar um Estado representativo (liberal ou democrático) sem uma “classe média” que lhe servisse de base e de apoio, quando a debilidade económica do país não a produzia espontaneamente? Havia uma única solução: que o Estado a criasse, como criou, pelo funcionalismo e pelo subsídio. A administração central e local, a extensa e poderosa máquina da justiça, a máquina das finanças, o exército e o clero, que o governo pagava, acabaram por dar ao regime a classe média de que ele precisava e, com ela, algum equilíbrio e alguma paz. Mas, como as nomeações dependiam do favor partidário, do compadrio e do nepotismo e, além disso, a maioria dos beneficiados — de amanuenses a oficiais e padres — gozava de uma ociosidade e de privilégios que enfureciam a população excluída, o desprezo e o ódio ao funcionalismo foram sempre uma constante na cultura política portuguesa. Só quem não leu os jornais do século XIX e do século XX, e os discursos de S. Bento, e a história, e as memórias, e meia dúzia de estudos sobre a “decadência da Pátria” pode pensar que Passos Coelho e o seu governo andam por aí a “diabolizar o funcionalismo”, como se essa “diabolização” não passasse de uma coisa recente e dispensável.»

Nenhum comentário: