sábado, 21 de fevereiro de 2015

Comédia humana no Século XXI




Três artigos de Vasco Pulido ValentePúblico de 6, 7 e 13/2/15 –e ainda um de Jorge Almeida Fernandes – “A bem da Nação, 20/2/15. Sobre o tema do dia, Syriza e Companhia. Os três primeiros manobrando conhecimento histórico, saber humano, sentido caricatural, conhecimento social. Do quarto – “PARA ONDE VAI A GRÉCIA DE TSIPRAS?» - direi que forma excelente síntese da história da Grécia moderna, nos solavancos que atravessou, após o domínio otomano, numa prática de clientelismo e fuga ao fisco que redundou , naturalmente, no recurso ao crédito estrangeiro - «ontem para a Europa e os Estados Unidos, hoje para a Rússia e a China", anota Prevelakis. As elites gregas aprenderam a explorar os sentimentos de simpatia para com a Grécia, assim como a situação geoestratégica do país para obter financiamento estrangeiro.»
“A srª não está em casa” foca as “rapaziadas” cometidas pelos representantes do Syriza dando chocalheiro espectáculo de atrevimento e humilhação perante os ora circunspectos ora paternalistas dirigentes europeus esgueirando-se em sorrisos forçados, cientes dos custos da aquisição de fundos, custos que não parecem pesar no espírito syrízico.
“É estranho? Não é” continua a deslizar pela irracionalidade do comportamento grego, que espanta alguns, demonstrando o historiador que o não espanta o comportamento inconsciente desses poucos, citando exemplos de outros casos de arrogância falhada: «É isto estranho? Não é. Os fanáticos vêem o mundo por uma fresta e ganham pela demagogia e pela intimidação. Na história política contemporânea, há centenas de casos parecidos. Dos maiores, como Hitler, aos mais pequenos, como o PRD de Eanes. …»
«Metamorfose» aponta estratégias aparentemente intimidantes (que mais parecem grosseiramente provocatórias), no desprendimento protocolar da rejeição da gravata, mas sobretudo no uso do couro como enfeite das figuras, lembrando anteriores couros mais assustadores), e ironiza sobre a participação da nossa esquerda, que ganhou novo impulso atacante: «O manifesto obrigatório da “inteligência”, assinado pelas luminárias do costume, é dirigido ao pobre dr. Passos Coelho, que certamente ficou atarantado com a sua súbita importância histórica.», embora a mim me pareça que o nosso PM se mantém tranquilo no seu posto, sem se sentir minimamente perturbado ou desgostoso – o que perturba a nossa esquerda, muito assanhada, muito repetitiva….

Eis os textos excelentes:

1º: «A sra. não está em casa»
Vasco Pulido Valente
06/02/2015 - 06:57
O Syriza segue desbotadamente a tradição da esquerda revolucionária. Como os jacobinos da revolução francesa (excepto Robespierre), rejeita as convenções de vestuário da antiga classe dirigente, embora se tenha ficado por largar a gravata e pelo casacão de couro do alegado “libertário” Varoufakis, que deve querer impressionar a Europa como o de Trotsky impressionou os diplomatas da Alemanha e da Áustria em Brest-Litovsk.
Em tudo o que Varoufakis e Tsipras dizem e fazem há também a convicção escondida, mas próxima de Lenine e dos bolcheviques em 1918-19, de que o Syriza não se aguentará contra a ordem estabelecida sem o apoio da França, da Itália e da Espanha; ou só se aguentará à custa de uma indizível miséria, como aconteceu na Rússia.
Daí a tournée pelas cortes da Europa destes dois tristes símbolos da insurreição grega. Verdade que vêm hesitantes, com uma atitude que oscila entre a arrogância do seu imaginário poder e suposta razão e a humildade do pedinte inseguro e fraco. Acham que sim, acham que não, acham que talvez; proclamam a sua fé num acordo final e reafirmam intermitentemente uma posição inaceitável. Pelo meio, distribuem propostas; e o BCE, o Eurogrupo e o FMI apertam as regras, exigem contrapartidas, sugerem outros caminhos, mas não cedem. O resultado da embaixada do Syriza ao mundo exterior foi, como não podia deixar de ser, a confusão geral. Jean-Claude Juncker, enternecido, deu um beijinho a Tsipras e, para o acalmar, lá o levou, de mão dada, para o seu escritório. Quem falou aqui em “crianças”?
Um tropo obrigatório desta esquerda neo-romântica é o pagamento da dívida de guerra da Alemanha, que a Inglaterra e a América indexaram ao aumento de exportações da República Federal. O exemplo não serve. Em primeiro lugar, o exército americano e o exército inglês ocupavam a Alemanha e queriam o apoio dela para resistir à expansão soviética que, naquele tempo, parecia ameaçar a Europa. Em segundo lugar, a Alemanha estava fisicamente arrasada pelos bombardeamentos de 1943-45 e o Ocidente não tinha dinheiro para a reconstruir e a alimentar: esquecer a dívida de guerra era do seu interesse (e, ao mesmo tempo, um bom passo político). Já a América não perdoou um tostão da dívida da Inglaterra, que pontualmente a pagou. As pessoas crescidas sabem disto. E a sra. Merkel também. Por isso avisou que não receberia Tsipras (para não aturar a mistura de chantagem e choradeiras com que ele anda por aí a maçar o mundo) e mandou o ministro das Finanças comunicar ao jovem que, para ele, não estava em casa.

2º: «É estranho? Não é»
Vasco Pulido Valente
07/02/2015
Vital Moreira disse que a estratégia de financiamento do Syriza era “puramente ficcional”. António Costa, rejeitando essa mesma estratégia, disse que não era um “aventureiro” e que não achava a “renegociação da dívida” a “única e necessária” saída da crise; e Álvaro Beleza concordou que ele, de facto, não devia “vender ilusões”.
O PS, ou, pelo menos, parte do PS, não se deixou levar pelo melodrama que Tsipras e Varoufakis decidiram representar para deleite do radicalismo e grande embaraço da “Europa”. Não ganharam nada com isso e voltaram para casa com declarações tonitruantes. Tsipras declarou que a Grécia não recebia “ordens” e Varoufakis que o nazismo puro e duro lhes podia muito bem suceder. Acabou assim o primeiro acto da peça. O segundo não vai ser tão fácil.
Perante as fúrias mediterrânicas do Syriza, o ministro das Finanças da sra. Merkel, Wolfgang Schäuble, explicou com muita paciência que a vontade do eleitorado grego valia tanto como a de qualquer outro, nomeadamente o da Alemanha; e que as medidas do Syriza não iam na direcção certa. Até o sr. Draghi, para não alimentar fantasias, informou o inefável Varoufakis que o crédito fácil tinha definitivamente acabado. O que foi considerado um acto de “chantagem” pelas luminárias de Atenas. Quem assiste a este triste espectáculo, quase que não acredita. Então aqueles terríveis “revolucionários” não sabiam, nem mandaram perguntar, qual seria a atitude da Itália (onde Renzi, ironicamente, ofereceu uma gravata a Tsipras), ou da França, ou da Inglaterra e, sobretudo, da Alemanha? Não, não sabiam, e, se soubessem, não seriam quem são.
É isto estranho? Não é. Os fanáticos vêem o mundo por uma fresta e ganham pela demagogia e pela intimidação. Na história política contemporânea, há centenas de casos parecidos. Dos maiores, como Hitler, aos mais pequenos, como o PRD de Eanes. Hitler declarou guerra ao Império Britânico, à URSS e à América: toda a gente percebeu que o desastre era inevitável, mas só ao fim de 55 milhões de mortos, com os russos a 100 metros da porta, ele percebeu. Eanes imaginou que se criava um partido com meia dúzia de militares e dúzia e meia de tresmalhados ou desiludidos, sem uma tradição e uma função social evidente e durável, mas bastou Mário Soares dissolver a Assembleia para se ver o vácuo daquela traquitana. O Syriza esperneia e faz barulho, mas passará depressa.   

3º «Metamorfose»
Vasco Pulido Valente
13/02/2015
As coisas não estão a correr como de costume. A revolução dantes tinha as suas cerimónias, mas parece que hoje o Syriza ou o mundo já não se lembram ou as querem mudar, coisa que desde Robespierre ninguém se atreveu a fazer.
E a revolução não é simplesmente uma revolução de Paris, de São Petersburgo ou de Madrid ou mesmo de Lisboa. É uma revolução da Europa, com outro alcance e uma audiência muitíssimo maior. Claro que nós, no nosso doce e sossegado cantinho, quase sempre vivíamos vicariamente as mudanças da história e o homem novo nascia quase sempre muito longe num sítio desconhecido e obscuro, como compete à aurora. Excepto quando nos calhou a nós. De qualquer maneira, até 1975, anteontem para dizer a verdade, sabíamos muito bem o nosso papel.
Agora foi a surpresa, os trabalhadores não apareceram na rua de punho ao alto para esmagar a reacção. As 200 famílias, quando não estão em tribunal por qualquer vigarice comum, continuam em casa. A doença infantil do esquerdismo acabou por se instalar no Governo da Grécia e viaja por aí freneticamente de avião. E a grande força do progresso passou agora a ser o imenso proletariado do funcionalismo e dos subsídios do Estado. O manifesto obrigatório da “inteligência”, assinado pelas luminárias do costume, é dirigido ao pobre dr. Passos Coelho, que certamente ficou atarantado com a sua súbita importância histórica. De resto, por razões que se compreendem, nem Sartre, nem Beauvoir se deram ao trabalho de ir deixar uma frase em Atenas, coisa que não nos faltou em Lisboa.
Não interessa. Nada disto diminui o Syriza, porque o Syriza encenou a sua erupção na consciência das massas para o tempo da televisão e da Internet; e aí foi, reconheçamos, magistral. A ideia de não pôr gravata não ocorreria a Lenine. O nacionalismo e o justo ódio aos mercados do capital oligárquico e especulativo não se vêem e não ganham com a alta definição o Facebook ou o Twitter. Em contrapartida, o couro preto não engana ninguém e não há ninguém que não conheça a sua ilustre linhagem: os comissários do Exército Vermelho, os generais do Führer, os super-homens da SS. O couro preto e o pormenor moderno da fralda de fora indicam agressivamente o macho Alfa, a sua virilidade e a sua vontade de domínio. Características que, se não comovem a sra. Merkel, intimidam os burocratas da economia e arrasam as feministas de serviço. A velha Europa precisava desta metamorfose da revolução.

4º «PARA ONDE VAI A GRÉCIA DE TSIPRAS?»
  Jorge Almeida Fernandes
O problema grego é político. Não é a dívida. É a reforma do Estado e da economia.
A Grécia apanhou a Europa de surpresa em 2009 e continua a surpreendê-la. Historiadores, economistas e politólogos gregos sempre aconselharam os responsáveis europeus a conhecer um pouco melhor a História grega contemporânea. A questão da dívida ocupa quase toda a cena.
Mas a dívida é uma manifestação, não a raiz do problema. Para os historiadores, o "problema grego" não é económico mas político — diz respeito ao funcionamento do Estado. A questão não está nos gregos mas nas instituições. A reforma do Estado e da economia é o nó do problema.
O "sistema grego 
O "sistema grego" remonta ao século XIX. A Grécia emancipou-se do Império Otomano em 1829 e o novo Estado começou a ser criado por altos funcionários alemães que acompanhavam o primeiro rei, o príncipe Otão da Baviera. Foi imposto um modelo centralizador contra as resistências de uma sociedade que vivia num quadro político, institucional e cultural otomano.
"A construção prosseguiu dificilmente ao longo dos séculos XIX e XX, com avanços e recuos", resume George Prevelakis, especialista da geopolítica balcânica e embaixador na OCDE. "Para obter a aceitação das populações rurais e reprimir a sua recusa da modernidade política importada, o poder serviu-se do aparelho de Estado não apenas como instrumento de repressão mas como sistema de distribuição de uma espécie de renda ou tributo. A principal moeda de troca foi o emprego pelo Estado. Um lugar na administração traduzia-se num primeiro tempo pela submissão e, a seguir, em votos."
Este é o "pacto fundador" que, em grande parte, determinou os estigmas políticos e sociais da Grécia. A fuga ao fisco tornou-se em muitos casos numa prática "legal": a Igreja Ortodoxa, o maior proprietário do país, ou os grandes armadores estão constitucionalmente isentos. As profissões liberais estavam tacitamente isentas e passaram a protestar contra a "perseguição fiscal" imposta pela troika. "Se a Grécia tivesse um efectivo sistema fiscal, nos padrões da zona euro, a receita duplicaria", concluía em 2012 o economista Kostas Vergopoulos.
Para poder distribuir uma renda a um grande número de clientes, a elite política tinha de encontrar fontes de financiamento. Para manter um Estado pletórico era necessário sobrecarregar fiscalmente a economia que, em troca, desenvolveu uma cultura de fraude fiscal.
"Nunca sendo suficientes as receitas, foi necessário olhar para o estrangeiro, ontem para a Europa e os Estados Unidos, hoje para a Rússia e a China", anota Prevelakis. "As elites gregas aprenderam a explorar os sentimentos de simpatia para com a Grécia, assim como a situação geoestratégica do país para obter financiamento estrangeiro."
Nos últimos 40 anos, os dois grandes partidos, o Pasok, do clã Papandreou, e os conservadores da Nova Democracia reorganizaram em larga escala as redes de patrocínio. Andreas Papandreou, no poder após 1981, construiu um "socialismo a crédito", escreve o historiador Nicolas Bloudanis. Impôs-se politicamente pela capacidade de arrancar fundos europeus para alargar a sua base clientelar. "Mas não é o único responsável: a direita é tão estatista como o Pasok. A classe política grega sempre confundiu dramaticamente rendimento e empréstimos."
Ao clientelismo somam-se os privilégios corporativos de centenas de grupos sociais e económicos fechados — dos advogados aos camionistas — tal como uma miríade de taxas e isenções em benefício de grupos particulares. É uma "cadeia de direitos adquiridos" que modela e atravessa a sociedade.
Além da austeridade, a Grécia comprometeu-se a fazer uma reforma integral da sua máquina administrativa e da economia. Mas a maioria das medidas foram bloqueadas por poderosos grupos de interesses.
Leszek Balcerowitz, que dirigiu as reformas da transição na Polónia nos anos 1990, fez um apelo à UE sobre a crise grega: "Ser flexível na dívida mas intransigente nas reformas". Não o "perdão" da dívida que Tsipras pede mas uma maior flexibilidade na reestruturação. A mensagem seria "premiar as reformas não o populismo económico" e incentivar o crescimento — não pensando apenas na Grécia mas em países como Portugal, Espanha, Itália ou França. A confusão entre reformas e austeridade é perversa. As reformas não sacrificam a generalidade da população, apenas os interesses instalados.
Tsipras e o nacionalismo
A vitória do Syriza significou o desmoronamento do velho sistema bipartidário. Para onde vai a Grécia de Tsipras?
Logo a seguir à vitória do Syriza, observou o historiador Sthatis Kalyvas: "Dado que o Syriza se opõe a muitas das reformas estruturais que são necessárias, (...) a aplicação do seu programa exige nada menos do que um compromisso da UE em financiar permanentemente os crescentes défices. Isto não é realista."
Tsipras estaria perante um desafio: "Se se mostrar capaz de reformar a disfuncional máquina administrativa, reformar o sistema de pensões, cortar a corrupção e a evasão fiscal, será celebrado como um grande reformador e dominará a política grega por uma década." Mas a probabilidade deste cenário seria muito baixa — o que as duas semanas seguintes confirmaram.
Tsipras escolheu o terreno da dívida para uma estratégia de confronto com Berlim. Sobre reformas pouco ou nada disse. Yanis Varoufakis prometeu acabar com a "cleptocracia grega".
A chave da política de Tsipras é o nacionalismo e, em particular, a germanofobia. Por isso reabriu a questão das "reparações de guerra". Uma vez mais é bom lembrar os acessos de febre nacionalista que regularmente percorrem a Grécia. O retrato que a Grécia moderna traça de si mesma é o de vítima: dos otomanos e depois da Turquia, da Grã-Bretanha, da Itália fascista, da Alemanha nazi, dos americanos durante a ditadura dos coronéis, agora da UE e, uma vez mais, dos alemães. Andreas Papandreou e o ex-primeiro-ministro Antonis Samaras foram mestres na manipulação dessas febres. É uma receita segura para apelar à coesão nacional e esconder os erros.
Tsipras optou pela aliança com o partido ANEL (extrema-direita), em detrimento do To Potami (centro-esquerda). O economista Pavlos Eleftheriadis, membro do To Potami, faz uma virulenta denúncia da sua deriva nacionalista e anti-europeia. "Mais do que criticar a austeridade como um erro político, ele condena-a como um ataque à Grécia e como uma imposição neo-colonial."
Que se segue? Escrevia na sexta-feira o diário Ekathimerini: "O Syriza ganhou as eleições com um misto de promessas e fanfarronadas. Agora, para ter sucesso no governo, tem de pôr termo ao choque com os nossos credores, unificar o partido, unir os gregos e enfrentar os problemas que estão por resolver há longos anos. O partido de Tsipras tem do seu lado as esperanças da maioria dos gregos. É a sua força. Se o Syriza desperdiça este vento favorável, a esperança perdida transformar-se-á em desilusão e fúria."
Tsipras recusa-se a fazer o diagnóstico do "problema grego". Ou melhor, substituiu-o por um passe de magia: "a libertação nacional do jugo estrangeiro".
15/02/2015

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