sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Ceguinhos são os que não querem ver



Mais uma vez, a Grécia e os camaradas europeus do Syriza, no caso português, mais por ódio ao Governo do que amor pelos gregos ou pela Grécia. De tudo se aproveitam os que gostariam de ser um Syriza vitorioso cá, e até mesmo os egrégios do rancor, que apontam o dedo de expulsão aos que usaram, no seu país, um percurso de maior virilidade do que a que eles manifestam agora, só votados ao enternecimento e pieguice enramelados, que as cãs por vezes trazem, embora embrulhados em intenção cínica. João Miguel Tavares conta-o com clareza, em argumentos lógicos, que tanto desmistificam essas intenções como censuram a infantilização de alguns países em dívida, preparando-se para continuar a comer da gamela alheia, sem intenção de se ressarcir, comodamente instalados num posicionamento de aventureirismo parasita, irresponsável e atrevido.
Eis os artigos de João Miguel Tavares, saídos no Público, respectivamente em 17 e 19 de Fevereiro, onde, corajosamente, defende um parecer oposto, valorizando, nessa questãs, a acção do nosso Governo:

Repitam, sff: nós não somos a Grécia
17/02/2015
Desde o início da crise que Portugal fez um enorme esforço para se afastar da Grécia e se aproximar da Irlanda no campeonato dos países intervencionados.
Para os mais desmemoriados, recordo que esse esforço é anterior ao actual Governo: há bastas declarações de José Sócrates em 2010 sublinhando que as situações da Grécia e de Portugal são “incomparáveis”. O mantra do Governo ao longo dos últimos cinco anos foi “nós não somos os gregos”, e esse mantra pegou e pagou: Portugal e a Irlanda concluíram com êxito o programa de intervenção, enquanto a Grécia continua a coleccionar pacotes de austeridade.
Mas como há por aí muita gente que não gosta que a realidade se intrometa no meio das suas convicções, boa parte dos dinamizadores do famoso Manifesto dos 74 – de Bagão Félix a Pacheco Pereira, de Freitas do Amaral a Carvalho da Silva, de Ferro Rodrigues a Francisco Louçã – decidiu voltar a juntar-se para mais um espectacular abaixo-assinado, desta vez aconselhando a pátria a ser mais solidária com a Grécia. Portugal anda há cinco anos a tentar fugir desse barco – os 74 insistem em empurrar-nos lá para dentro. Como gesto patriótico, diria que é coxo e desinteligente, mas a verdade é que estamos a falar das mesmas pessoas que em Março de 2014 – dois meses antes do final do programa de ajustamento – acharam que era a altura ideal para informar o mundo de que a dívida pública portuguesa era insustentável e teria de ser reestruturada.   
O problema de boa parte dos referidos signatários é que o seu ódio ao Governo é ligeiramente superior ao seu amor a Portugal – e por isso insistem numa colagem política que dá imenso jeito às suas teses, mas não dá jeito algum ao país, sobretudo numa altura em que a possibilidade de a Grécia sair do euro é uma hipótese que ganha cada vez mais força. Basta, aliás, ler os jornais para verificar que a Irlanda está a criticar os gregos e a estratégia do Syriza com a mesma intensidade que Portugal. É evidente que os países que foram intervencionados, e cujas contas públicas ainda se encontram fragilizadas, têm todo o interesse em aumentar o fosso que os separa da Grécia – não em diminuí-lo. A razão é absolutamente óbvia: se a Grécia sair do euro, eles não querem ser os próximos.
Só mesmo quem acha que a dupla Tsipras/Varoufakis são o Astérix e Obélix da nova Europa, resistindo hoje e sempre ao invasor, é que pode defender que a solidariedade para com a Grécia é uma obrigação moral, que trará de caminho grandes vantagens políticas. No entanto, para quem não acredita que Varoufakis tenha um cantil com poção mágica escondido debaixo do casaco de cabedal – como é o meu caso e parece ser também o caso do Governo e do Presidente da República –, a conversa da solidariedade é muito pouco persuasiva. Solidário com quê? Com as políticas do Syriza? Não contem comigo. Com o sofrimento do povo grego? Bom, então se é de crises humanitárias que estamos a falar, e tendo em conta que o PIB per capita grego é idêntico ao português, diria que o Sudão, a Nigéria ou a Síria merecem mais atenção do que a Grécia. O que me parece ridículo, de qualquer modo, é esperar que um Governo que durante anos procurou afastar-se da Grécia, mesmo quando ela era dirigida por um partido de centro-direita, venha agora saltar para os braços do Syriza só porque Atenas engrossou a voz. Não, senhores: Passos Coelho já cometeu muitos erros políticos, mas manter os gregos ao longe não é certamente um deles.
http://s.publico.pt/NOTICIA/1686298http://s.publico.pt/europa/1686298http://s.publico.pt/irlanda/1686298http://s.publico.pt/grecia/1686298http://s.publico.pt/nigeria/1686298http://s.publico.pt/sudao/1686298http://s.publico.pt/siria/1686298http://s.publico.pt/francisco-louca/1686298A infantilização de um país
19/02/2015 - 06:27
Os defensores do Syriza costumam criticar fervorosamente a proliferação daquilo a que eles chamam “caricaturas da Grécia”: as cabeleireiras e os trombonistas que se reformam aos 53 anos porque a sua profissão é considerada “árdua e insalubre”; os 45 jardineiros contratados por um hospital público para tomar conta de meia dúzia de árvores; o Instituto para a Protecção do Lago Kopais, seco desde 1930; ou, para citar a famosa peça de José Rodrigues dos Santos para a RTP, os falsos paralíticos que se passeiam a pé diante da casa do ex-ministro da Defesa grego para “receber mais um subsidiozinho”.
Ora, eu não duvido por um momento que estes coloridos exemplos possam contribuir para formar um retrato simplista da Grécia, certamente injusto para muitos gregos trabalhadores. Só que o inverso é igualmente verdadeiro: o Syriza e a sua vasta trupe de admiradores utilizam a mesma demagogia para criticar a posição alemã, colocando bigodinhos em Merkel, recuperando histórias de uma guerra que acabou há 70 anos e considerando a Alemanha a grande vilã da crise – como se ela fosse a encarnação da bruxa má da floresta, que atraiu os pobres gregos para a sua casa de chocolate, para poder aí praticar as maiores malfeitorias.
De facto, entre os mais impressionantes resultados da crise está esta espécie de infantilização dos países em dificuldades: não há políticas historicamente erradas, nem governos responsáveis pelo endividamento excessivo, nem eleitorados que tenham dado os seus votos a maus partidos – há apenas pobres vítimas de tenebrosos esquemas neoliberais. Para quê darmo-nos ao trabalho de assumir os erros, se podemos inventar tão bonitas teorias da conspiração? Para a esquerda europeia pró-Syriza, é como se a Alemanha e os seus bancos andassem a preparar um assalto aos países da periferia desde tempos imemoriais.
E, no entanto, basta pesquisar um pouco para encontrarmos as incoerências dessa tese. Notícia de Junho de 2011: “60% dos alemães consideram que o país tem de ajudar a Grécia a recuperar da crise de dívida soberana em que se encontra, gostando ou não.” Isto foi escrito há três anos e meio. Ou seja, já houve uma época em que a Alemanha defendeu a solidariedade para com os gregos. Simplesmente, essa confiança foi-se esfarelando com as sucessivas falhas nos pacotes de reformas. O esquematismo do grego mandrião e o simplismo de tantas abordagens em relação aos PIIGS é, em boa medida, uma consequência das dificuldades na implementação dos programas da troika. Não é bonito. Mas é compreensível.
Infelizmente, há uma abordagem da crise, muito popular, que é de tal forma desresponsabilizadora que convida às mais tristes simplificações. Certas analogias à esquerda são de molde a assustar qualquer um – ainda ontem, neste mesmo espaço, Rui Tavares ia buscar Versailles e o pós-Primeira Guerra Mundial para falar da reunião do Eurogrupo. E eu pergunto: mas houve alguma guerra na Grécia nos últimos anos de que não tivemos conhecimento? O seu défice deve-se a alguma sucessão de calamidades? Senhores: a Alemanha foi arrasada na década de 40, reunificada na década de 90, não tem petróleo e é o motor económico da Europa. Se não queremos ser caricaturados e simplificados, seja na Grécia ou em Portugal, convinha começar por acabar de vez com um discurso de tal forma desculpabilizador que nos transforma a todos em cidadãos inimputáveis. Se é esse o caminho único para a salvação da Europa, por favor, deixem-me circular em contramão.  

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