sábado, 31 de janeiro de 2015

Camarotes de recato no teatro universal




A questão Charlie vai esmorecendo, ultrapassada por novos “atentados” – à bolsa, ao pudor, à paciência, ou seja lá o que for que o tempo implacável vai trazendo sucessivamente, a lembrar que somos mortais e esquecidos, embora não nos ódios, que até os espectros nos convidam a vingar-nos, como aconteceu com o espectro do pai de Hamlet, morto, ao que parece, pelo rei seguinte, Cláudio, que o substituiu na governança do reino da Dinamarca e no tálamo conjugal, junto de sua viúva Gertrudes, mãe de Hamlet. O pai de Hamlet não suportou tal ofensa e fez-se representar pelo seu espectro junto do filho transtornado, convidando-o a vingar-se. Contra a estranheza do seu amigo Horácio - e até do oficial da guarda, Marcelo, que anteriormente afirmara que algo de podre havia no Reino da Dinamarca - Hamlet observa, ciente da sua verdade a respeito das ordens do espectro: “Há mais coisas na terra e no céu, Horácio, do que sonha a vossa filosofia”. São histórias de outrora, mas histórias fortes, mais que as de agora, mais elegantes também, na efabulação e na expressividade dos sentimentos e na dimensão das réplicas. Um tempo actual mais exposto, o palco das enormidades do “algo de podre” assente no mundo inteiro, traduzindo-se na bestialidade, perante os espectadores da Terra, quer na criminalidade cozinhada à vista, quer na reacção de apoio espectacular das gentes defendendo a causa da liberdade em silêncio submisso e com desenho reivindicativo de partilha, “Je suis Charlie”, disparando como bala, mais ou menos conscientemente, mais ou menos infantilmente.
Apesar da filosofia ou dos conceitos moderados de alguns, que tentam disciplinar as mentes num sentido de racionalidade e sem demagogia. Tal é o caso do artigo claro e sereno do Juiz Pedro Vaz Patto, saído no Público de 23/1/2015
Só que as palavras serenas, segundo a parte contrária, não são tomadas, naturalmente, em conta, cada um impondo a sua voz, num mundo precipitando-se no nada:

«Ser ou não ser Charlie»
 Pedro Vaz Patto
«A alternativa ao fanatismo fundamentalista não é a liberdade sem limites, nem uma sociedade onde nada é sagrado.
Foi com viva comoção que muitos assistiram à grande manifestação que se seguiu aos atentados de Paris, um grito de repúdio do terrorismo. A frase mais ouvida, Je suis Charlie, para muitos exprimia, antes de tudo, a solidariedade para com as vítimas, mesmo da parte de quem nunca se identificou com a linha ideológica do jornal Charlie Hebdo.
Mas por detrás dessa palavra de ordem também se nota a vontade de apresentar o estilo que tem caraterizado esse jornal (a sátira que não reconhece limites e ofende gravemente o que há de mais sagrado para crentes de várias religiões) como o ícone mais representativo da sociedade de liberdade e tolerância em que vivemos e queremos continuar a viver. Isto já não me parece aceitável.
Subjacente a esta ideia está um conceito de liberdade individualista, que não se detém diante do respeito pelo outro, pela sua dignidade e pela sua sensibilidade. Para esta visão, só a própria liberdade será sagrada; mas uma liberdade que se torna vazia, um fim em si mesmo e não um meio para alcançar a verdade e a realização pessoal no relacionamento com os outros.
A liberdade de expressão tem limites em qualquer sociedade livre e democrática.
Quem instiga à prática do crime e do terrorismo (como fazem alguns dos mentores de atos como os dos atentados de Paris) claramente ultrapassa esses limites. Nesta ocasião, o próprio Governo francês participou, pelo crime de propaganda do terrorismo, de um polémico ator, Dieudonné, que afirmou: Je suis Coulibaly (um dos autores de um dos atentados). Em Itália, decorre atualmente uma campanha contra o racismo em que se afirma, numa alusão ao insulto racista: "As palavras também podem matar".  Em sistemas jurídicos como o português, a difamação e a injúria (isto é, a imputação a outrem de factos desonrosos e a emissão pública de juízos atentatórios da honra de outrem) são crime. Há que distinguir a crítica de atos, que deve ser livre, da ofensa que atinge a dignidade da pessoa visada, seja ela quem for.
O que é próprio das sociedades livres e democráticas é o livre debate de ideias. A crítica da religião islâmica, como a da religião cristã ou das religiões em geral, não pode deixar de ser livre. Nem há que temer esse debate e essa crítica, porque às ideias pode sempre responder-se com outras ideias, e a Verdade impõe-se por si, pela luz e força que lhe são intrínsecas. É diferente da crítica motivada às religiões a falta de respeito pelos símbolos e figuras tidos por sagrados, o achincalhar gratuito desses símbolos e figuras, a ofensa aos sentimentos religiosos das pessoas. Às ideias pode responder-se com outras ideias e assim se gera o diálogo e o debate. Os insultos já saem fora do diálogo e do debate racional. Surge sempre a tentação de responder aos insultos com outros insultos, e assim se gera a violência verbal, que nada tem a ver com o debate que é próprio de sociedades livres e democráticas.
É verdade que os tribunais são cada vez mais reticentes no reconhecer o respeito pelos sentimentos religiosos das pessoas como limite à liberdade de expressão. Talvez isso se explique pelo peso da memória de épocas em que a religião serviu para limitar a liberdade de expressão de ideias, ou também por preconceito laicista (não liberal) contra a religião. Parece que há “dois pesos e duas medidas”: aceitam-se mais facilmente limites à liberdade de expressão noutros âmbitos, como quando estão em causa discriminações em razão da raça, ou, mais recentemente, da orientação sexual (desapareceu a sátira a pessoas homossexuais que, há alguns anos, era muito comum em programas humorísticos, e isso é de saudar, mas já não o é a tentativa de limitar a expressão de ideias contrárias à prática homossexual).
Mas não pode ignorar-se que, para muitas pessoas, não só uma ofensa verbal pode ferir mais do que uma ofensa física, como a ofensa ao que para elas é mais sagrado, aos seus sentimentos religiosos, fere mais do que uma ofensa à sua pessoa ou à sua família.
Nada disto justifica o homicídio terrorista, ou atenua a sua gravidade. Matar e odiar invocando o nome de Deus é também uma blasfémia (di-lo o Catecismo da Igreja Católica, no seu n.º 2148), talvez a mais grave de todas.
Mas a alternativa ao fanatismo fundamentalista não é a liberdade sem limites, nem uma sociedade onde nada é sagrado. A alternativa ao fundamentalismo é uma sociedade de diálogo entre religiões e entre crentes e não crentes. Um diálogo que comporta a liberdade do debate de ideias e da crítica, mas também o respeito pelo outro e pela sua sensibilidade. O diálogo serve para construir a paz e a fraternidade, o insulto não serve.»
Juiz; presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Fénix ressequida



Acabo de ouvir a “Quadratura do Círculo”, na arrogância fluente e elegante de José Pacheco Pereira, no – felizmente para a nossa auto-estima como povo que também sabe ponderar sensatamente – discurso claro, correcto, revelador de boa formação moral e ideológica de António Lobo Xavier, na expressão frontal, aparentemente serena de Jorge Coelho, o espertalhão do sucesso e do jogo pelo seguro. Ouvi. E não sei reproduzir. Como sempre, encantada com Lobo Xavier, pessoa isenta que não se deixa intimidar pelos extremismos dos seus antagonistas, sabendo reconhecer as contingências em que se movem os do Governo, e os esforços de recuperação que os outros fingem ignorar.
Pacheco Pereira arranca no seu ataque, prevendo bons resultados para o ministro grego na sua provocação à Europa, achando por bem que a Grécia continue a mamar do leite daquela sem mais obrigações do que ir suavemente correspondendo, em doses comedidas, à mama que dela colhe, sem mais escrúpulos de consciência. Pacheco Pereira considera as responsabilidades da Alemanha no descalabro dos países brincalhões do sul e do ocidente, entende que os do Plano Marshall ajudaram outrora a mesma Alemanha, facciosamente não reconhecendo a esta o trabalho de recuperação próprio de um povo ordeiro, consciencioso e trabalhador, continuando além disso a condenar ferozmente o Governo de Passos Coelho, tal como o fazem tantos da sua igualha - embora ele se considere único da sua espécie, Fénix gloriosa, renascendo a cada passo dos seus ódios e pretensões – sem querer ponderar quanto tem de grande e de heróico uma actuação governativa honesta, que trouxe ao nosso país – mau grado a penúria partilhada – o contentamento do procedimento correcto, que nos liberta do papel único de parasitas do esforço alheio.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Será que é?




«A caricatura é mais forte que as restrições e que as proibições. É imortal porque é uma das facetas daquele diamante que se chama verdade.»  Eça de Queirós -  leio no cabeçalho da última página do D.N de9/1/15.

De facto, a caricatura favorece o nosso comodismo, pela percepção imediata do traço avultado com que o caricaturista desejou acentuar o que a sua sensibilidade, parti pris ou intenção crítica captaram, geralmente em propósito satírico, não exigindo grande esforço de leitura gráfica ou iconográfica para a risada grossa da conivência com o grotesco. A desmistificação dos valores que hoje se projecta no cartunismo, já a encontráramos em Rabelais, a desmesura, a licenciosidade, a anarquia, a oposição ao preconceito sendo motivos da sua criatividade, de extraordinária dimensão e causadores do riso, (embora em leitura prolongada), segundo o seu conceito de que “Le rire est le propre de l’homme”.
O que leva um sorriso misterioso como o de Mona Lisa a uma vigília demorada de observadores em frente do quadro, para se decifrar nos olhos, no rictus bucal se se trata de uma postura de seriedade, ou de breve sorriso que os seus olhos parecem traduzir, e simultaneamente a nitidez clássica da paisagem envolvente da Gioconda, contrastando com a paisagem de escolas pictóricas mais recentes, de impressões e colorido, com sugestões apenas, por vezes, das figuras, num universo de captação e de prazer imediatos, percebemos quanto evoluiu o conceito de arte, em paralelo, aliás, e em consequência do aburguesamento social, de gente mais sensibilizada para colher o breve, o imediato, reduzido o esforço de atenção ao prazer da cor e da deformação dos traços de alusão satírica.
Eça tem bem a percepção de que as pinceladas dos seus descritivos figurativos, redundam, as mais das vezes, na criação de tipos sociais, no avolumar do traço caricatural, bem ao contrário de Balzac, Stendhal, Zola, Flaubert, cujo conhecimento da psicologia humana se traduziu em minúcia e autenticidade das personagens, que não excluíam a intenção irónica, em que Flaubert foi mestre, e bem assim Balzac.

«A caricatura é mais forte que as restrições e que as proibições. É imortal porque é uma das facetas daquele diamante que se chama verdade.»
Eça, todo vibratilidade e versatilidade, sentiu bem, todavia, a diferença entre ele e os seus congéneres na criação das suas figuras. Afirma-o em cartas aos amigos, com mágoa, por criar fantoches sem vida interior, na sua galeria social, tipos de farsa, caricaturais, que nos fazem rir. Mas por isso mesmo fortes, no traço forte, na sua intenção de condenação e de risada imediata.
Transcrevo uma carta de Eça a Ramalho, comprovativa destes dizeres, e, simultaneamente, da humildade intelectual de Eça, no reconhecimento dessas suas diferenças dos seus contemporâneos franceses:

« Eu por aqui – não fazendo, não pensando, não vivendo senão Arte. Acabei O Primo Basílio – uma obra falsa, ridícula, afectada, disforme, piegas e papoilosa – isto é, tendo a propriedade da papoila: -sonolificente. De resto Você lerá – isto é, dormirá. Seria longo explicar como eu – que sou tudo menos insípido – pude fazer uma obra insípida: …. Os personagens – e Você verá – não têm a vida que nós temos: não são inteiramente des images découpées – mas têm uma musculatura gelatinosa: oscilam, fazem beiço como os queijos da Serra, espapam, derretem. Há – inquestionavelmente – alguma cena, alguns traços correctos: e há maravilhas de habilidade, da habilidade de métier; enfim, sou uma besta. E o que é triste é que me desespero por isso. Nunca hei-de fazer nada como o Pai Goriot; e você conhece a melancolia em tal caso, da palavra nunca! Não falo naturalmente do Primo Basílio – isso é uma ninharia, abaixo da crítica de um crítico de Penafiel, mas mesmo este novo romance (“A Capital”) – de que estou tão contente – não dá, não sai. Faço mundos de cartão… não sei fazer carne nem alma. Como é? Como será? E todavia não me falta o processo: tenho-o, superior a Balzac, a Zola, e tutti quanti. Falta qualquer coisinha dentro: a pequena vibração cerebral; sou uma irremissível besta!» Newcastle, 3 de Novembro de 1877 (in "Correspondência" Vol. IV de OBRAS DE EÇA DE QUEIRÓS)

Simultaneamente, e segundo o dístico no cabeçalho da última página do DN, Eça é bem o homem que se sente feliz consigo próprio, pois com a sua arte ele pôde determinar o alcance social da caricatura, o traço forte e saliente tornando-se espelho do grupo social que o reflecte. Daí a função daquela, semelhante à da comédia de costumes: “Ridendo castigat mores”.

O certo é que o tal “diamante que se chama verdade”, pode ser facetado de diversas maneiras, segundo fontes de opinião diversificada, não deixando de ser um conceito subjectivo, tal como os demais conceitos, cuja verdade é hoje posta em causa, em liberdade democraticamente flexível.
Daí que as caricaturas do tipo “Charlie Hebdo”, na desmesura da sua verdade, tenham, como efeito, muitas vezes, uma risada amarela de resposta. Com consequências bem mais sombrias do que no tempo de Eça.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

É de morte tanto cinismo a Ocidente


É de morte tanto cinismo a Ocidente

Um texto do blog “A Bem da Nação”, de António da Cunha Duarte Justo:

«MORREU O REI DA ARÁBIA SAUDITA GRANDE PROMOTOR DO TERRORISMO»

«O Comprometimento do Ocidente com o terrorismo internacional

Ontem, 23.01, morreu Abdullah, o rei da Arábia Saudita. Para se perceber a paciência do Ocidente com o maior fomentador do terrorismo islâmico sunita, interessa ter-se presente os interesses económicos e as inter-relações de importações e exportações entre o Ocidente e os países produtores de petróleo.
A Arábia Saudita financia o terrorismo internacional e a construção de mesquitas fora dos países islâmicos.
Na Arábia Saudita as mulheres têm poucos direitos. Só podem sair de casa na companhia de um homem, não podem conduzir carro e só podem estudar e casar com consentimento prévio; não possuem quase nenhum direito de decisão. Desde 2001 já podem requerer um bilhete de identidade.
Pratica-se a tortura, o espancamento, o açoitamento, a privação do sono, a torção dos membros, choques electrostáticos, assim como a ameaça de mordidelas de animais; há execuções públicas como castigo normal para crimes como: assassinato, adultério, sabotagem e apostasia.
Apesar de tantos crimes contra a humanidade e contra os direitos humanos o Ocidente é o grande aliado da Arábia Saudita.
Como exemplo refiro informações da HNA segundo as quais a Alemanha em 2013 fez exportações para a Arábia Saudita no valor de 1,7 mil milhões de euros (máquinas, produtos químicos, veículos e peças de veículos. A exportação de armas foi de 316 milhões de euros. Em 2013 as exportações da Arábia Saudita para a Alemanha atingiram os 9,2 mil milhões de euros. Além disso a Alemanha, em 2011, fez investimentos directos na Arábia Saudita no valor de 713 milhões de euros e em contrapartida a Arábia Saudita investiu na Alemanha, no mesmo ano, 25 milhões de euros. A Arábia Saudita fomenta o wahhabismo (interpretação fundamentalista do Islão) que produziu al Qaida e a ideologia do “Estado Islâmico”.
O dinheiro compra tudo; até a consciência democrática defensora dos direitos humanos não escapa.»
António da Cunha Duarte Justo

Não, não é caso para entoar os conhecidos versos de Mário Sá Carneiro, que foi génio no que escreveu e só se prejudicou a si próprio nas borrascas pessoais. Tem direito às suas explosões denunciadoras de sofrimento e que nos servem a nós de referência em momentos de riso e de espalhafato ou para afastar o agoiro:

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.

Se assim foi com o Rei árabe, como informa Duarte Justo, as pompas dele são outras, o rei que se segue providenciará nesse sentido glorificador do seu pai e preparar-se-á para lhe seguir os passos, com a conivência Ocidental, que o ajudará a perpetrar uma política criminosa - a qual depois combate em parangonas de apoio aos charlies da liberdade.

domingo, 25 de janeiro de 2015

«Tratar da constipação quando temos uma pneumonia»



A frase ouvi-a eu ontem, à representante do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, figura seráfica que vai escorregando noções de boa formação moral, olhos azuis de menina modesta que acusa, acusa, como se não soubesse fazer mais nada neste mundo do que acusar, que para isso foi ensaiada, no seu discurso paralelo aos demais discursos da mesma banda, gotas de água caindo do telhado, monocórdicas, intransigentes, puras e embaladoras, numa solidariedade vivificadora da terra ressequida dos mais necessitados. Para ela não há desvios na sua visão dos acontecimentos, dura e inflexível no seu show macio de anjo azul que se preza, ditando pareceres condenatórios. Do lado do Governo apenas vê o negativo, sem cuidar das contingências, e sem se espantar dos gastos extraordinários da população que ela defende como pobrezinha, no espectáculo de uma tal Violeta - tão sintomático de pobreza real, de facto, mas não, afinal, no sentido pecuniário do termo.
Vem mais dinheiro da Europa e isso é mais um motivo para se acusar o Governo - Catarina Martins também - Governo a quem todos os homens e mulheres cultos deste nobre país diziam que era preciso renegociar a dívida, antes de a pagar. Também foi a opinião do Sr. Mário Draghi, homem rico, generoso e dirigente actual do BCE, o qual, contrariando a dura Srª Merkel, mulher de trabalho e exigente de boas contas, resolveu injectar mais dinheiro nas economias esfarrapadas, na tentativa de as erguer.
Mas ao invés de nos alegrar, tal decisão de imediato provocou rixas e novos ataques ao Governo, lembrando o espectáculo dos muitos cães agarrados ao osso, cada qual rosnando mais alto, sem deixarem o Governo parar para ponderar na forma de proceder.
Cuido que Catarina Martins entende que tal dinheiro serve apenas para mezinhas de tratamento de constipação, não chega para a nossa pneumonia.
Assim somos, ab initio, míseros, mesquinhos e ávidos, saecula saeculorum. Espertalhões, sempre, adeptos da fórmula, segundo o nosso Vieira, "Comei-vos uns aos outros", aplicada aos peixes apenas para disfarçar, com a particularidade de os maiores devorarem em maior quantidade. É certo que não é exclusivo nosso. Mas se tantos o escreveram entre nós, senhores, além disso, de uma “Arte de Furtar” do século XVII, decisiva na acusação da corrupção geral, se o próprio João de Deus o diz tão airosamente, que havemos de fazer para o impedir, frágeis que somos? Riamos com João de Deus:

O Dinheiro
O dinheiro é tão bonito,
Tão bonito, o maganão!
Tem tanta graça, o maldito,
Tem tanto chiste, o ladrão!
O falar, fala de um modo...
Todo ele, aquele todo...
E elas acham-no tão guapo!
Velhinha ou moça que veja,
Por mais esquiva que seja,
                            Tlim!
                            Papo.

E a cegueira da justiça
Como ele a tira num ai!
Sem lhe tocar com a pinça;
E só dizer-lhe: «Aí vai...»
Operação melindrosa,
Que não é lá qualquer coisa;
Catarata, tome conta!
Pois não faz mais do que isto,
Diz-me um juiz que o tem visto:
                            Tlim!
                            Pronta.

Nessas espécies de exames
Que a gente faz em rapaz,
São milagres aos enxames
O que aquele demo faz!
Sem saber nem patavina
De gramática latina,
Quer-se um rapaz dali fora?
Vai ele com tais falinhas,
Tais gaifonas, tais coisinhas...
                            Tlim!
                            Ora...

Aquela fisionomia
É lábia que o demo tem!
Mas numa secretaria
Aí é que é vê-lo bem!
Quando ele de grande gala,
Entra o ministro na sala,
Aproveita a ocasião:
«Conhece este amigo antigo?»
— Oh, meu tão antigo amigo!
                            (Tlim!)
                            Pois não!

João de Deus, in 'Campo de Flores'