sábado, 31 de maio de 2014

O ódio é coisa intemporal



Ao contrário do que afirma Vasco Pulido Valente no seu artigo de 25/5 de “O Público”  - “O Ódio” – de que “o ódio cresce”, eu creio que é um mal antigo, bem incrustado na alma humana, mal de provérbio, que Rebelo da Silva aproveitou para intitular a sua narrativa histórica “Ódio velho não cansa” e tantos artistas plásticos ou da palavra justificam de variadas formas, caso da trágica “Medeia”, cujo amor frustrado por um ingrato e vira-casaca Jasão, a vira do avesso, como informa Eurípedes, matando os próprios filhos que dele tivera, por vingança de extremo impacto.

«O ódio»
«Estava a jantar com o meu velho e bom amigo Paulo Portas, quando de repente apareceu ao lado da nossa mesa o dr. Sócrates (segundo a universidade de Paris). O dr. Sócrates foi muito entusiástico com Portas: grandes manifestações de prazer por aquele encontro inesperado, mão no ombro e cortesias várias. Obviamente não achava que o outro era o principal responsável pelo “trabalho sujo” que se fazia contra ele. Hoje mudou de opinião e proclamou no Chiado que, afinal de contas, era mesmo Portas o autor moral da imbecilidade e do ódio da campanha. A “imbecilidade” é um insulto inócuo e, às vezes, necessário, que se costuma distribuir pelos mortos. Quanto ao ódio, o caso muda de figura, porque pode levar à violência, física ou outra, e acaba sempre por envenenar a política.
E não há dúvida, pelo menos para mim, que desde 2013 o ódio aumenta na cena pública portuguesa. Mas não se deve reduzir a coisa a uma simples perseguição promovida pela direita ao dr. Sócrates. Ele próprio admitirá que o seu retiro em Paris não o tornou na pessoa mais popular em Portugal. De resto, nem o PS o reconduziu a uma posição honrosa, nem ninguém lhe ofereceu um cargo internacional em que ele pudesse mostrar a beleza da sua alma e recuperar o seu prestígio. O dr. Soares, por razões que excedem, é o único que ainda agora o acarinha e consola. Além disto, e abandonando temporariamente Sócrates, a esquerda, como de costume, injuria e excomunga o primeiro infeliz com a desgraça de não concordar com ela, até em pontos sem pertinência imediata.
Porquê? Porque, se a direita barafusta e ofende, a esquerda quer mais do que isso: quer afirmar, e obrigar a populaça a reconhecer, a sua absoluta superioridade moral, como explicava o saudoso camarada Cunhal. E, se para este nobre fim, precisar de agredir e mentir, de exercer a sua doce hipocrisia ou de inventar uma utopia apetecível ao cidadão comum – a esquerda não hesita. O hate mail que ultimamente recebo, por exemplo, (pelo telemóvel, pela net ou pelo correio) e os telefonemas de rancor e desprezo que de quando em quando me surpreendem lembram o PREC e não têm a mais longínqua proporção com a minha importância. Mas tudo se esclarece, se percebermos que, para o verdadeiro crente, não existe nada pior do que alguém que lhe perturba as certezas de que se alimenta. O ódio cresce.»

            O ódio que o fácies de Sócrates bem demonstrou, falando para a televisão num dos últimos cortejos pré-eleitorais, ao fazer ruir com estrondo o edifício de elegância e distinção de Portas, acusando-o e aos do seu Governo, de uma abstracta “imbecilidade” na instigação ao ódio contra si, dr. Sócrates - doutor “segundo a universidade de Paris” na afirmação maligna de Pulido Valente - parece mais também um acto de vingança, por ver gorado o seu gesto de aproximação e cortesia espalhafatosa no tal jantar de amigos que refere Pulido Valente. Julgo que, sob a capa da ironia, Pulido Valente sente de facto pena do ostracismo a que é votado Sócrates, na pátria que o despreza, apesar das aparências cordeais com que a RTP lhe estendeu os braços para o ouvir debitar razões e lamentos aos domingos.
Segundo Pulido Valente, ele está reduzido ao amor “sacana” ( é meu o epíteto) de um velho “sacana” (igualmente meu, este), que também se sente marginalizado (o que me causa pena, também,) apesar das falsas aparências de estima geral, por ser considerado um fundador de qualquer coisa – democracia, ao que parece, no seu país – embora uma democracia em expressão de psitacismo bacoco.  E esse velho marginalizado mas astuto, a juntar aos demais velhos que é para isso que vamos todos tendendo, expelem velho ódio por quem lhes faz frente, na tentativa de equilibrar a barca soçobrada, puxando-a para cima.
Não, ninguém esperava tanta resistência desses jovens, apesar da constante agressão, que chega do próprio Tribunal Constitucional, de velhos ou a caminho disso, que não querem perder as prerrogativas e as espórtulas das suas togas poderosas desvirtuando o sentido de democracia e de liberdade, e por isso – não por amor do povo castigado – opõem a muralha do seu chumbo, para mais incitar à irrisão e ao ódio da praça pública, e forçar a mais quebra-cabeças de um Governo que precisa de salvar a todo o custo o país que se propôs salvar. Velhos esplendidamente pagos, esses tais do TC, sabendo que tanto esses dinheiros com que eles e todos os mais fomos, há uns anos, aumentados, não provinham de produção nacional mas de empréstimo, mas que reivindicam como de direito - o que não faziam em tempos passados, quando se seguiam outros parâmetros menos beneméritos mas mais cordatos nas contas, segundo os esquemas de outro velho.
Quanto à esquerda ululante, o termo que melhor a define, quanto a mim, é “peixeirada”, a dessas mulheres e homens gesticulando e guinchando razões e ironias no Parlamento, espectáculo de fealdade, condenando um país já sem nível a um abaixamento ainda maior quer na educação, quer na reflexão, reduzidas, essas, a gritos da boca e a pão para a boca. Sim, a sociedade que nos é revelada em espectáculo parlamentar ou outro, televisivo, exceptuando a educação demonstrada pelos do Governo, não me parece escola a merecer crédito, salvo as boas tiradas que dão prazer ouvir, em que sobressaem a argúcia e o bom timbre de Portas, a argumentação justa de Coelho, e uns e outros oradores do Governo ou do PS, menos aguerridos ou mais objectivos.
Quanto à população, não resisto a transcrever o artigo de Vasco Pulido Valente, de 24/5 - «Os grandes portugueses” - mais uma sua pequena obra-prima, no descritivo caricatural, reduzindo os interesses populares, na sua passividade cultural, a uma expressão de embotamento e exaltação futebolísticos, de que a televisão se faz eco, ou lança o clarão responsável, na idiotia do excesso de programas de futebol, sobre futebol, em honra do futebol, antes dos jogos de futebol, durante e depois deles… E mais os programas sobre a violência e os muitos casos de violência cada vez mais entranhados no nosso país.
Ódio?... Miséria!....

O texto de Vasco Pulido Valente:

«Os grandes portugueses»
Melhor do que isso, cada português pôde viver esta epopeia em pormenor: os jogos, que nos animaram e apoquentaram; os prognósticos délficos dos sócios; os comentários (muito variados do treinador e dos jogadores do dia); as sessões triunfais no Marquês de Pombal e em vilas num canto obscuro da província. Esta força, esta glória, que desabaram vicariamente sobre nós consolam muito. E também a análise douta dos peritos, que revela o que nós não conseguimos ver e nos descobre de repente a cintilante beleza de um movimento táctico. O Benfica, confessemos, subiu à vertiginosa altura de Portugal. Só a lesão muscular de Ronaldo, que não passa de vez, verdadeiramente nos preocupa. Ele precisa ainda de ganhar a Champions e o Campeonato do Mundo para nos curar e redimir.
Entretanto, além da final entre o Real e o Atlético de Madrid e as próximas batalhas do Brasil, a televisão e a imprensa oferecem, para a nossa distracção e aprimoramento cultural, uma dose tranquilizante de crime crapuloso. Não faltam tiros, não faltam facadas, não faltam crianças desaparecidas. Caso mais notável, não faltam mesmo malfeitores desaparecidos. Manuel Baltazar, o Manuel “Palito”, por exemplo, que matou a sogra e uma tia e feriu a mulher e a filha, resistiu à perseguição da Judiciária e a forças da GNR a pé e a cavalo durante 34 dias, no imenso território de São João da Pesqueira. A confiança das populações na autoridade, se existia antes, com certeza que se fortificou. E o português valente ressuscitou. Bem precisava.»







sexta-feira, 30 de maio de 2014

Aterrador!



Publicou Salles da Fonseca no seu blog “A Bem da Nação”, o seguinte texto de   António da Cunha Duarte Justo denunciador de um futuro de pesadelo, com novas estratégias de domínio universal verdadeiramente risíveis,  de povos de ambição desmedida, que pretendem ser donos do mundo, sem sequer pararem para pensar nos Alexandres Magnos da História, movidos por iguais interesses de domínio, e que uma qualquer Justiça – talvez a divina -  se encarregou de punir:

«RÚSSIA E CHINA – O EIXO DA POLÍTICA DO SÉC. XXI?»

«UCRÂNIA ENTRE IMPERIALISMO RUSSO E OCIDENTAL»

«A Ucrânia, tal comos a região dos Balcãs, na primeira grande guerra mundial, dá ocasião ao surgir de uma nova configuração política das potências determinadoras do futuro no séc. XXI.
A Rússia, ao ser contrariada pelos interesses da EU/NATO na Ucrânia, demonstra ostensivamente a sua reivindicação ao direito de ser reconhecida como potência mundial; para tal vira-se para a China e para a América Latina em oposição à política dos países da NATO. Utiliza uma estratégia própria na combinação oportuna de “ vendas de armas, instalações militares e grandes projectos económicos, de infra-estrutura e de energia”. A nova estratégia de parceria com a China pode mudar o eixo axial da política no séc. XXI. O negócio entre a Rússia e a China da construção da conduta para fornecimento de gás à China e a construção de um canal transoceânico da Nicarágua como alternativa ao canal do Panamá, são passos que indicam determinação no sentido de as duas potências se unirem num projecto comum.
Ao avanço da presença do Ocidente ao longo das fronteiras da Rússia e na Ucrânia, a Rússia contrapõe a sua presença, como potência mundial, na América Latina.
A presença política arrasta consigo o negócio. Então, países como a Alemanha aceitarão o desenrolar natural dos acontecimentos e orientar-se-ão pelo brilho do negócio. Esta ofensiva económico-estratégica revela-se tão desesperada que pode determinar a divisão da Ucrânia.
Piora o clima entre as potências mundiais logo surgem centros ciclónicos devastadores das mais belas paisagens e dos mais belos biótopos culturais. Por trás das ventanias que arrasam florestas e destroem a bonomia do clima entre amigos e familiares, encontram-se interesses políticos, económicos e estratégicos. Quem aspira a mais organiza-se em grupos de interesse porque sabe que no governo ou na oposição sempre se recebe mais do que no seio do povo.
 Os grupos da Ucrânia, agora divididos e guiados pelas forças de ventos invisíveis, a modo das árvores no vendaval, batem-se uns contra os outros à mercê dos centros ciclónicos do poder. Os que se querem orientar pela Europa e os que preferem seguir a Rússia. Em nome da soberania popular dá-se a redistribuição de poderes e influências.
A Ucrânia, o maior país da Europa, tem 44,6 milhões de habitantes sendo 77,8% de etnia ucraniana e 17%, de russos e romenos está em perigo de ser dividida. O povo ucraniano já foi vítima do genocídio provocado por Estaline que vitimou milhões de ucranianos e da ocupação nazi que matou muitos milhões de pessoas, sofre as consequências de se encontrar como fronteira de dois imperialismos: o russo e o ocidental.
 Quem pensa em termos humanos e de povo é contra a intromissão estrangeira; quem pensa em termos estratégicos e de poder compreende a luta das potências: uns a favor dos russos, outros a favor do ocidente.
Um país soberano deveria ter a possibilidade à autodeterminação.
Uma Alemanha interessada em acordos de comércio com o leste, uma UE interessada num acordo de associação, e uma federação russa amedrontada, não são indícios de bons resultados para a Ucrânia; a Rússia sente-se ameaçada economicamente pela UE, militarmente pela Nato e socialmente pelos valores ocidentais de liberdade e democracia. A UE defende os seus interesses económicos e estratégicos na Ucrânia argumentado hipocritamente de pretender a salvaguarda dos direitos humanos e de um Estado de Direito. Infelizmente não usou da diplomacia para saber antepor-se aos combates armados entre a população ucraniana nem teve em conta uma Rússia traumatizada pela queda da União Soviética. A Rússia tem os mesmos interesses na Crimeia e nas zonas orientais da Ucrânia como os ingleses no Gibraltar e nas ilhas Malvinas…

Uma Ucrânia endividada até à garganta com a dívida do gás e quase na bancarrota. Deve à Rússia 2,6 mil milhões de Euros pelo que Putin tenciona, a partir de Junho, só fornecer gás à Ucrânia a pronto pagamento. Até à ocupação da Crimeia vendia o gás à Ucrânia 30% mais barato, devido à Ucrânia permitir lá a base russa.
 A Ucrânia, depois das eleições de 25 de Maio, irá ter de compreender amargamente a frase de Bismark: “Estados não têm amigos, apenas têm interesses”.
 As missões de observação eleitoral da OSZE julgarão sobre o decorrer das eleições. Depois delas surgirá a discussão sobre quem as reconhece e quem não. As eleições não conseguirão o problema da Ucrânia que nela resume o conflito entre a Rússia e o Ocidente e entre população pró-Rússia e pró-UE.
 A Rússia é o maior país do mundo mas nas suas infraestruturas, é de facto, em grande parte, um país de terceiro mundo.
 O futuro irá aproximar ainda mais a Rússia e a China até por razões de afinidade na defesa da integridade territorial e devido à sua extensão e aos povos separatistas.
 No séc. XIX combatiam-se os estados, no séc. XX as ideologias e no século XXI combater-se-ão as culturas. Com a queda da União Soviética (1998) acaba-se o mundo bipolar para se iniciar a multipolaridade. Das guerras passar-se-á às guerrilhas; na formação de novas constelações, a guerrilha muçulmana tem-se mostrado a única arma estratégica eficiente contra a prepotência da guerra económica. Livre-nos Deus desta perspectiva real para o futuro.»
  António da Cunha Duarte Justo

Ouçamos Luís Góis, nos pequeninos gestos de felicidade que tão bem canta, e assim arredemos o receio de tais previsões sobre os novos monstros em formação, destruidores da paz no mundo:

É preciso acreditar (bis)

Que o sorriso de quem passa
É um bem para se guardar
Que é luar ou sol de graça
Que nos vem alumiar
Com amor alumiar.
 
Que a canção de quem trabalha
É um bem para se guardar
Que não há nada que valha
A  vontade de cantar
A qualquer hora cantar.

Que uma vela ao vento solta
É um bem para se guardar
Que se um barco parte ou volta
Passará no alto mar
E que é livre o alto mar.

Que esta chuva que nos molha
É um bem para se guardar
Que sempre há terra que colha
Um ribeiro a despertar
Para um pão por despertar.





«As vidas de Elisa Antunes» de Guilherme de Melo



Já em tempos fizera uma apreciação ao livro «À sombra dos dias” do mesmo autor (em “Anuário – Memórias Soltas”, 1999). A curiosidade me levou a ler este, uma boa encadernação do Círculo de Leitores (1998). Costumava ler as poesias que Guilherme de Melo ia publicando na “Página da Mulher” do Notícias de Lourenço Marques e lembro-me de que gostava mais dele como poeta do que do autor das prosas que escrevia no Notícias. Mas esta narrativa sobre uma figura de mulher feia e apagada, que passa na vida de forma baça, no retraimento e seriedade de um destino condenado à partida, interessou-me, como complemento céptico de uma temporalidade que vivemos sem esperança, mas que em nada favorece a mudança para um estado de espírito mais optimista.
Uma progressão narrativa cronológica, iniciada com a referência à personagem central que dá o nome à obra – Elisa Antunes – e estruturada em duas partes subentendidas – a primeira, mais curta (60 páginas), que poderíamos sublinhar como origens, percorrendo seis capítulos pontuados com um nome – o nome  dos seres justificativos da sua existência terrena e figura física e psicológica; a segunda parte (115 páginas), centrada na figura de Elisa e dos comparsas da sua vivência como ser que a vida a cada passo frustrou.
Temos, pois, a trisavó Margaretha, judia holandesa fugida com a filha Erika à monstruosa insânia nazi. Dela herdou o nariz que, juntamente com os olhos “piscos” das muitas dioptrias e a fealdade herdada do avô paterno, Mateus Antunes, desde a escola, lhe valeram a humilhante alcunha de Maria Cegonha. Casara aquele com Erika, por manigâncias interesseiras da mãe desta, sabendo aproveitar-se do enamoramento deslumbrado do beirão Mateus, profissional cumpridor num banco em Lisboa, que vivia em casa dos padrinhos. Falhado o casamento, por conveniência da astuciosa Margaretha – que irá prosseguir com a filha a sua existência como donas de uma casa de passe - para escândalo do pobre Mateus - é André, o filho abandonado por Erika e Margaretha, educado na província, pelos avós paternos e sobretudo pela bisavó Domingas – Maria Lua – velha “sibila” com conhecimentos primitivos, que se regia pelo “relógio da Lua”, nos seus hábitos toscos que maravilhavam o bisneto. Feito o liceu na província, segue André para Lisboa, para junto do pai, frequenta o curso de Românicas, que não acaba, sonhador inveterado, procurando junto dos colegas de estúrdia e de tendências demolidoras  do salazarismo, os complementos dos seus interesses e ausência de responsabilidade. Casa com a colega da Faculdade, Laura, é mobilizado para Bissau, quando regressa, a filha Elisa já tem três meses, mas Laura morre num novo parto gorado, aos três anos da filha, e com grande dor do pai. Elisa é criada pelo pai, e por uma namorada simpática deste – Helena – com grande escândalo do avô Mateus. André morre de cancro, o avô recolhe a neta, que tem quinze anos.
Inicia-se, com o capítulo “Elisa”, a segunda parte da novela, com a descrição do espaço habitacional que se transcreve, na curiosidade de um discurso cujo realismo tem tanto de elegante como de colorido e despojado de condescendência disfarçadora, como, de resto, se caracteriza o estilo sereno e frontal de Guilherme de Melo, em que o sentido crítico raramente usa de ironia, optando pela caracterização directa, da observação objectiva, não isenta do calão ou do termo mais próprio da oralidade grosseira, e em que o adjectivo e o verbo são elementos estruturais do seu  processo narrativo, bem longe da luminosidade do modo impressionista, característica formal do estilo queirosiano:

«A rua era larga e sossegada. Não uma daquelas vias de passagem, iguais entre si em todas as grandes cidades, por onde o trânsito flui no decurso do dia como um rio constante no seu caudal. Ali, os carros eram os carros de quem nela morava. Ou de quem lá ia com um objectivo definido.
Certinhos, alinhados ao longo dos passeios, os prédios não ultrapassavam o terceiro andar e quase todos tinham águas furtadas. Num ou noutro, havia vasos com flores aligeirando as fachadas austeras. Sem serem prédios de estilo moderno, tinham, porém, um ar limpo e cuidado. Alguns ostentavam mesmo um revestimento em azulejos de tons esbatidos que lhes imprimia uma certa dignidade.
Mas era Lisboa e, naturalmente, na modorra das janelas que deitavam para a rua, havia estendais onde as toalhas e os lençóis, as saias, as cuecas, as calças de ganga e os aventais de cozinha secavam ao sol como pendões de romaria drapejando ao vento. E havia também as gaiolas dos canários e dos periquitos dependuradas de grandes pregos cravados junto às sacadas. Nelas, as aves chilreavam, sonhando com o azul que avistavam para lá das grades.
Por detrás dos vidros dormitavam gatos gordos e castrados, enquanto aqui e ali as portas se entreabriam, pela manhã e ao cair da tarde, a deixar passar os cães para virem defecar ao passeio. Nos beirais, bandos de pombos aguardavam a hora exacta em que as velhas do costume assomassem à varanda para lhes lançar as carcaças da véspera desfeitas em água e uma ou duas mancheias de milho.
A rua era, como tantas outras ruas de Lisboa mais desviada do bulício, um pedaço de aldeia esquecido no coração da cidade. Com o talho do senhor Custódio logo ao voltar da esquina, a leitaria da dona Rosa com a meia dúzia de mesinhas habituais e as empadas, os folhados e os queques na vitrina do balcão, e a mercearia do senhor Nunes e da mulher, a dona Leocádia, com as alfaces, os tomates, as laranjas e as clementinas colorindo a manhã nos escaparates que ladeavam a entrada.
Este o pequeno mundo, feito de cheiros e de sons familiares, olhos espiando por detrás das vidraças e pombos descendo em revoada dos telhados, onde Elisa Antunes iria entrar, pela mão do avô Mateus, com a timidez e a cautela características dos seres que aprenderam a crescer sem vontade própria e desde sempre se deixaram conduzir pela vontade dos outros. Mas também com a insegurança da adolescente que começa a tornar-se mulher e que desde criança procurou, em vão, referências femininas num mundo estruturalmente masculino, como foi aquele em que aprendeu a movimentar-se.»

A história, pois, de uma “pobre rapariga feia” tímida e recalcada e receosa do mundo, embora possuindo bens herdados do avô, e competente no seu trabalho, tal como fora boa estudante, forma de se elevar perante si e os outros, e que tendo sofrido a desilusão da falsa paixão e grosseria de um colega sabido e interesseiro – Filipe - se enamora por um jovem de uma fotografia encontrada por acaso e para esse – a quem chamará Ricardo - constrói o seu romance, que a transfigura. O encontro ocasional com o rapaz da foto, que reconhece - João, como se apresenta, sob a farda de polícia - causará a sua morte por atropelamento, tal o alvoroço sentido.
Um funeral concorrido, ao descobrir-se, em sua casa, roupas masculinas, a dedicatória do rapaz à sua amada, outros traços de ternura, causando o escândalo entre a vizinhança, para quem fora a Elisinha, e cuja família há muito deixara de existir.
E a lição final ocorre no diálogo entre dois colegas de regresso do funeral:

«E, com solenidade:
- Ao fim e ao cabo, quantas vidas terá cada um de nós? A que na realidade vivemos? A que fantasiamos para nós mesmos? A que outros imaginam que é, de facto, a nossa vida? Hum… E qual é a verdadeira, já pensaste nisso, Justino?
O colega soltou uma gargalhada:
- Ó Saraiva, poupa-me!
E apressaram o passo, direitos ao carro. É que, de repente, a chuva voltara a cair.»

O paralelo desta com a cena final dos dois amigos Carlos e Ega, correndo para apanhar o americano  enquanto iam filosofando sobre a vacuidade dos desígnios humanos que os não faria alargar o passo para nada – teoria logo desfeita para o jantar com os amigos no Bragança que os forçava a correr, é evidente, retirado o efeito cómico do contraste entre desígnio e acção n’Os Maias, que se transforma nesta novela em banal teoria finalizadora sobre a existência humana, encarada sob vários ângulos.