quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Mas não houve caçador


Quando um dia se fizer a história deste país abjectamente curvado, nas vascas da sua agonia, aos pés do país onde outrora expandiu a sua língua, e onde agora expande o servilismo de a querer imitar graficamente para seu próprio uso, retirando-lhe a dignidade da sua formação com a mesma facilidade com que retira a estabilidade económica dos seus cidadãos, sobressairão sempre, julgo eu, as vozes e os escritos – mais estes do que aquelas – de quem quis lutar e perdeu, para comprazimento dos governantes nas suas tramoias rocambolescas de angariar projecção, pontapeando a língua como trapo sujo para a sarjeta das coisas desprezíveis.

O último artigo que leio é de uma das entidades marcantes da nossa intelectualidade nacional, e resume bem a problemática em torno de uma medida vilipendiosa, imaginando - (e isso nos conforta, em expectativa positiva) - que o seu “peso intelectual” poderá ter algum peso desviante de um acto consumado e que nenhum governante, por muito que se afirme amante da sua pátria, se propõe desfazer. Para isso, José Pacheco Pereira – que é dele o texto, do “Público” de 18/1 - deveria ter acordado mais cedo, antes da adopção por dicionaristas e gramáticos e mais literatura, do Acordo decretado. Mas o certo é que outros opositores ao A.O. o fizeram desde o início, e o resultado para evitar o desfecho – mesmo que outros países da lusofonia não tenham assinado o A.O. - não foi nenhum. Não somos povo para respeitar os cidadãos, a pátria, a língua. Dos cidadãos só pretendemos o voto, da pátria, o solo para habitar e curtir o seu sol, da língua, o suficiente para gritar anseios, sem exigência ortográfica.

Não, o caçador não virá salvar a Menina do Capuchinho Vermelho nem a sua Avozinha, da boca do Lobo Feroz. As recuperações com que o “caçador” está entretido absorvem-lhe, na totalidade, o sentido da decência, apesar de, antes do seu cargo governativo, ter afirmado a sua contestação ao dito acordo, logo esquecido dessa repugnância pré-eleitoral, após a ocupação do cargo – o que, de resto, jamais mereceu a atenção nem da assembleia nem dos partidos seus componentes, assunto virado definitivamente tabu, longe das preocupações reivindicativas dos assistentes parlamentares, porta-vozes do seu público exclusivamente insatisfeito com o desaforo económico recaído sobre as suas anteriores prerrogativas. «O mais espantoso é que muitos dos que atacaram o “eduquês” imponham este português pidgin, infantil e rudimentar, mais próximo da linguagem dos sms, e que nem sequer serve para aquilo que as línguas de contacto servem, comunicar.», afirmou José Pacheco Pereira cujo texto é grande e definitivo no teor da análise:

«ACORDO ORTOGRÁFICO: acabar já com este erro antes que fique muito caro»:

«A única força que joga a favor do acordo é a inércia que mantém as coisas como estão e que implica custos para o nosso défice educativo e cultural.

«O acordo ortográfico é uma decisão política. Não é uma decisão técnica sobre a melhor forma de escrever português, não é uma adaptação da língua escrita à língua falada, não é uma melhoria que alguém exigisse do português escrito, não é um instrumento de cultura e criação.

«É um acto político falhado na área da política externa, cujas consequências serão gravosas principalmente para Portugal e para a sua identidade, como casa-mãe da língua portuguesa. Porque o que mostra a história das vicissitudes de um acordo que ninguém deseja, fora os governantes portugueses, é que vamos ficar sozinhos a arcar com as consequências dele.

«O acordo vai a par do crescimento facilitista da ignorância, da destruição da memória e da história, de que a ortografia é um elemento fundamental, a que assistimos todos os dias. E como os nossos governantes, salvo raras excepções, pensam em inglês “economês”, detestam as humanidades, e gostam de modas simples e de modernices, estão bem como estão e deixam as coisas andar, sem saber nem convicção.

«O mais espantoso é que muitos dos que atacaram o “eduquês” imponham este português pidgin, infantil e rudimentar, mais próximo da linguagem dos sms, e que nem sequer serve para aquilo que as línguas de contacto servem, comunicar. Ninguém que saiba escrever em português o quer usar, e é por isso que quase todos os escritores de relevo da língua portuguesa, sejam nacionais, brasileiros, angolanos ou moçambicanos, e muitas das principais personalidades que têm intervenção pública por via da escrita, se recusam a usá-lo. As notas de pé de página de jornais explicando que, “por vontade do autor” não se aplicam ao seu texto as regras da nova ortografia, são um bom atestado de como a escrita “viva” se recusa a usar o acordo. E escritores, pensadores, cronistas jornalistas e outros recusam-no, com uma veemência na negação que devia obrigar a pensar e reconsiderar.

«Se voltarmos ao lugar comum em que se tornou a frase pessoana de que a “minha pátria é a língua portuguesa”, o acordo é um acto antipatriótico, de consequências nulas no melhor dos casos para as boas intenções dos seus proponentes, e de consequências negativas para a nossa cultura antiga, um dos poucos esteios a que nos podemos agarrar no meio desta rasoira do saber, do pensar, do falar e do escrever, que é o nosso quotidiano.

«Aos políticos que decidiram implementá-lo à força e “obrigar” tudo e todos ao acordo, de Santana Lopes a Cavaco Silva, de Sócrates a Passos Coelho, e aos linguistas e professores que os assessoraram, comportando-se como tecnocratas – algo que também se pode ter do lado das humanidades, normalmente com uma militância mais agressiva até porque menos “técnicas” são as decisões – há que lembrar a frase de Weber que sempre defendi como devendo ser inscrita a fogo nas cabeças de todos os políticos: a maioria das suas acções tem o resultado exactamente oposto às intenções. O acordo ortográfico é um excelente exemplo, morto pelo ruído do mundo. O acordo ortográfico nas suas intenções proclamadas de servir para criar uma norma do português escrito, de Brasília a Díli, passando por Lisboa pelo caminho, acabou por se tornar irritante nas relações com a lusofonia. Suscitou uma reacção ao  paternalismo de querer obrigar a escrita desses países a uma norma decidida por alguns linguistas e professores de Lisboa e Coimbra. O problema é que sobra para nós, os aplicantes solitários da ortografia do acordo. O acordo, cuja validade na ordem jurídica nacional é contestável, que nenhum outro país aprovou e vários explicitamente rejeitaram, só à força vai poder ser aplicado. A notícia recente de que nas provas – que acabaram por não se realizar – para os professores contratados, um dos elementos de avaliação era não cometerem erros de ortografia segundo a norma do acordo mostra como ele só pode ser imposto por Diktat, como suprema prova de uma engenharia política que só o facto de não se querer dar o braço a torcer explica não ser mudado.

«Porém, começa a haver um outro problema: os custos de insistirem no acordo. A inércia é cara, e no caso do acordo todos os dias fica mais cara. A ideia dos seus defensores é criar um facto consumado o mais depressa possível. É esta a única força que joga a favor do acordo, a inércia que mantém as coisas como estão e que implica custos para o nosso défice educativo e cultural.

«É o caso dos nossos editores de livros escolares que começaram a produzir manuais conforme o acordo e que naturalmente querem ser ressarcidos dos seus gastos. Mas ainda não é um problema insuperável e, acima de tudo, não é um argumento. Passado um período de transição, pode voltar-se rapidamente à norma ortográfica vigente e colocar o acordo na gaveta das asneiras do Estado, junto com as PPP e os contratos swaps, e muita da “má despesa”. Porque será isso que o acordo será, se não se atalhar de imediato os seus estragos no domínio cultural.

«O erro, insisto, foi no domínio da nossa política externa com os países de língua portuguesa, e esse erro é hoje mais do que evidente; os brasileiros, em nome de cuja norma ortográfica foram introduzidas muitas das alterações no português escrito em Portugal, nunca mostraram qualquer entusiasmo com o acordo e hoje encontram todos os pretextos para adiar a sua aplicação. No Brasil já houve vozes suficientes e autorizadas para negar qualquer validade a tal acordo e qualquer utilidade na sua aplicação. Os brasileiros, que têm um português dinâmico, capaz de absorver estrangeirismos e gerar neologismos com pernas para andar muito depressa, sabem que o seu “português” será o mais falado, mas têm a sensatez de não o considerar a norma.

«Nós aqui seguimos a luta perdida dos franceses para a sua língua falada e escrita, também uma antiga língua imperial hoje em decadência. Querem, usando o poder político e o Estado, manter uma norma rígida para a sua língua para lhe dar uma dimensão mundial que já teve e hoje não tem. Num combate insensato contra o facto de o inglês se ter tornado a língua franca universal, legislam tudo e mais alguma coisa, no limite do autoritarismo cultural, não só para protegerem as suas “indústrias” culturais, como para “defender” o francês do Canadá ao Taiti. Mas como duvido que alguém que queira obter resultados procure no Google por “logiciel”, em fez de “software”, ou “ordinateur” em vez de “computer”, este é um combate perdido.

«Está na hora de acabar com o acordo ortográfico de vez e voltarmos a nossa atenção e escassos recursos para outros lados onde melhor se defende o português, como por exemplo, não deixar fechar cursos sobre cursos de Português nalgumas das mais prestigiadas universidades do mundo, ter disponível um corpo de literatura portuguesa em livro, incentivar a criatividade em português ou de portugueses e promover a língua pela qualidade dos seus falantes e das suas obras. Tenho dificuldade em conceber que quem escreve aspeto – o quê? – em vez de aspecto, em português de Portugal, o possa fazer.»

Como Pessoa, (mau grado a falta de convicção), insistamos, em apoio a Pacheco Pereira e a todos os que se indignaram no mesmo sentido que ele, relativamente ao A.O.: «É a Hora!»

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Uma candeia às avessas

Custa aceitar opiniões sobre pessoas ou acontecimentos que vão contra as “nossas próprias” opiniões (devia ter mais cuidado com a “pleonasmação” depois da leitura de um artigo muito bem feito por um “Anónimo” sobre o fenómeno, tão vulgar entre nós, que o Dr. Salles colocou no seu “A Bem da Nação”, mas o “próprias” da expressão  acima reforça o possessivo, em projecção que nos eleva aos próprios olhos (evitei, neste caso o possessivo “nossos” para escusar reincidências por “mim” também condenáveis, mesmo sem o “própria” do reforço, embora os franceses reforcem igualmente o seu pronome pessoal (moi-même, toi-même, nous-mêmes…) ou até o possessivo, sem que lhes caia o Carmo e a Trindade da iracúndia linguística superior, que não admite sequer a “licença poética” da retórica discursiva.

Mas Vasco Pulido Valente é de tal forma arguto e certeiro nas suas explanações argumentativas, que me leva muitas vezes a aderir aos seus pensamentos, apesar do sofrimento próprio que isso implica neste mar de sofrimento que ultimamente nos harmoniza – único padrão de harmonia, de resto - questão de fado - sob este sol ou sob esta chuva do único céu a que temos direito, perdidos “os outros céus diferentes” da nossa glória passada, que Sá de Miranda refere em carta ao “rei de muitos reis”, D. João III, o Pio.

Gosto de Nuno Crato e de Pires de Lima, que me parecem sérios, inteligentes e corajosos. Acredito que eles estão metidos nas talas de uma governação complicada, o que torna as suas manifestações públicas contraditórias e motivo de chufas de todos os que seríamos incapazes de assim proceder, honestos e talentosos que somos cá fora, incapazes de proceder como eles lá dentro, porque faríamos necessariamente melhor.

Mas o artigo de Vasco Pulido Valente, do “Público” de 17/1, “Como os ministros pensam” assenta que nem luva sobre o nosso pensamento assustado - que se me perdoe o concretismo prosaico da personificação literária - daí que o fixe no blog do meu refúgio, embora discorde da afirmação do articulista contida no início do segundo parágrafo de que “o dr. Nuno Crato apareceu numa conferência de imprensa conjunta com o dr. Pires de Lima”, como se o seu “aparecimento” fosse acto voluntário e não imposto pelos actuais juízes das acções governativas - sindicatos, partidos da oposição, no ilimitado verboso das suas reivindicações de uma altissonância impune:

«A Fundação para a Ciência e a Tecnologia atribuiu 298 bolsas de doutoramento, ou seja, a quase 40%, dos candidatos que se apresentaram. Para estudos pós-doutorais, a que concorreram 2035 pessoas, a dita Fundação deu generosamente 233 bolsas, ou seja, 11, 45% do total. Muitas coisas se poderiam dizer sobre isto. Mas como se escreveu neste jornal, os cortes foram um “massacre” que afectará muito tempo a Universidade portuguesa e que mata de repente uma tendência que já começava a ganhar uma certa força. O responsável pela coisa é o Dr. Nuno Crato, ainda ministro de um Governo que por aí vai sobrevivendo, sem direcção, sem programa e sem coerência. Não acreditam? Esperem pelo próximo episódio desta telenovela.

No dia seguinte, ou pouco mais tarde, o dr. Nuno Crato apareceu numa conferência de imprensa conjunta com o dr. Pires de Lima. Nessa conferência os dois resolveram falar sobre “empreendorismo e inovação”. Tanto um como outro falaram com entusiasmo da colaboração entre a ciência e a economia: prometeram 50 milhões de euros, uma série de programas de utilidade duvidosa e um esforço para mandar infinitos doutorados para empresas de grande futuro. Mas como bons burocratas que são, e nunca deixarão de ser, anunciaram também a sua coroa de glória: a criação de uma “agência interministerial” para se ocupar do assunto; o que significa evidentemente mais funcionários, mais conselheiros, mais secretárias, mais despesa e por aí fora.

Claro que, se o “presidente” ou o “director” desta original loucura tiver um resto de juízo, manda ao sr. Pires de Lima e ao sr. Nuno Crato uma cartinha, aconselhando este excelentíssimo par a devolver as bolsas a quem as tirou e pedindo respeitosamente a sua demissão. Mas, como uma criatura destas não é fácil de encontrar em Portugal, só nos resta, para nos divertir, fazer listas comentadas das contradições destes cavalheiros e de Passos Coelho e Portas, que os deveriam vigiar. Verdade que o tempo não está para risotas sobretudo num caso destes. De qualquer maneira talvez não deixasse de confortar os portugueses compreender a inteligência e a subtileza de quem os pastoreia. Quando o disparate ferve, convém estar preparado para qualquer emergência. Nada impede que amanhã eles nos declarem uma colónia de Andorra em nome da independência nacional.»

A nossa triste verdade é que o disparate ferve por toda a parte, em toda a nossa tessitura social. Sempre ferveu, é de longa data, que o digam Gil Vicente, Camões, Eça… E os historiadores das governações…. E as salas de psiquiatria, onde muitos professores repousam das violências de uma sociedade de adolescentes que lhes passa pelas mãos e culminará nos crimes de uma praxe imbecil e torpe, que já Verney criticava, há mais de dois séculos, e que não é democrático eliminar…

Não, não é fácil de encontrar, o tal que Diógenes procurava, de candeia acesa em pleno dia…

sábado, 25 de janeiro de 2014

“O Macaco Gramático” de Octávio Paz


Se fosse vivo, meu pai faria hoje 113 anos. Recordação que permanece intacta, gostaria de lhe oferecer qualquer coisa de surpreendente, e o surpreendente para mim é este livro que estou a ler, do escritor mexicano Octavio Paz, “O Macaco Gramático”, prémio Nobel de Literatura de 1990, publicado pelo D.N,  numa iniciativa de extremo interesse, que me faz procurar, na fileira arrumadinha da estante, os livros que não conhecia e os poucos que conhecia e me fizeram retornar aos tempos da infância ou da adolescência das leituras do nosso contentamento. “O Livro das Lendas” de Selma Lagerlof, prémio de 1909, já fora encanto então, juntamente com a sua “Maravilhosa Viagem de Nils Holgerson através da Suécia” das leituras frequentes, ao longo dessa infância de liberdade e vigor. “O Drama de João Barois”, prémio Nobel de 1937, lido em francês, juntamente com os sete volumes de “Les Thibault”, no meu 7º ano, da estante do liceu, livros que assim que pude comprei, companheiros na viagem da vida. E Sartre, e Gide, e Pirandello, Camus ... “Histórias Maravilhosas do Oriente”, um livro de Pearl Buck, das nossas leituras da adolescência, este prémio de 1938, que não conhecia, e me fez recuar às miríficas histórias de fadas do universo encantado da infância. E Saramago, que admiro – não, contudo, o doentio “Ensaio sobre a Cegueira” do prémio de 1998. Confesso que vivi”, de Neruda, prémio de 1971, seria um livro que meu pai apreciaria, tal como amou o “Diário” de Torga, e outras obras suas, que tanto mereceriam o prémio, mas não teve o apoio de que Saramago usufruiu para o obter.

Estou prestes a acabar este livro de Octavio Paz  - “O Macaco Gramático” – e confesso que nunca lera uma obra tão orgíaca – orgia de linguagem, de descritivos, de argumentações paradoxais, de erotismos, de mutações, de transformações, de luxúria verbal, de delírio narrativo e filosófico e gramatical e poético, Babel de confusão de línguas e de vozes, de elementos de erudição assombrosos, resultado das suas muitas leituras, das suas muitas viagens, dos seus muitos estudos versando as mais diversas áreas, entre as quais a da linguística com a componente semântica, a filosofia, as religiões, a botânica, os costumes dos povos e sobretudo o da Índia... Um livro torrencial, que lembra o portentoso “Fausto” de Goethe na busca do saber e de Deus, ou “La Légende de Saint Julien l’Hospitalier” de Flaubert, ou mesmo Eça, sobretudo na sua “Lenda de Santo Onofre”, com temáticas parecidas da procura de Deus na variedade das religiões, e o sensacionismo e o panteísmo de Caeiro, e o sensacionismo exacerbado e provocante de Álvaro de Campos, e talvez o seu tédio e cansaço, na ironia analítica que de tudo descrê e põe em causa, que afirma e logo nega, e o surrealismo, e o sensorialismo, o realismo, e a luxúria absoluta de um discurso poderoso e absurdo de racionalismo ou sequer de troça. Talvez pura poesia transfiguradora em prosa, mesmo na sua função metalinguística.

Segundo “A Classical Dictionary of Hindu Mythology” por John Downson, M.R.A.S, em texto que precede o I dos 29 capítulos ou poemas de “O Macaco Gramático”, HANUMAN, é um macaco humanoide, chefe dos macacos, segundo a mitologia hindu exposta no Ramayana, macaco de perfeições e proezas, entre as quais o de gramático: “The chief of monkeys is perfect; no one equals him in the sastras, in learning, and in ascertaining the sens of scriptures...”

É certamente, o inspirador do narrador ou sujeito poético, nesta portentosa viagem de ida ao encontro de algo que poderá significar o seu reverso, no caótico  de um discurso circular, que afirma e se desdiz, discurso intangível, onde tudo é floresta de metáforas, e a figura do macaco surge representada nas estátuas que o povo baniano venera.

Alguns excertos:

I: O melhor será tomar o caminho de Galta, percorrê-lo novamente (inventá-lo à medida que o percorro) e sem  me dar conta, quase insensivelmente, ir até ao fim – sem me preocupar com saber o que quer dizer “ir até ao fim”, nem com o que quis dizer ao escrever esta frase.”

VI: “Manchas: moitas: borrões. Preso nas linhas, as lianas das letras. Asfixiado pelos traços, os laços das vogais. Mordido, picado pelas pinças, os ganchos das consoantes. Moita de signos: negação de signos. Pletora térmica em extinção: os signos comem os signos. A moita converte-se em deserto, algaraviada em silêncio: areais de letras. .....Moita: pululação homicida: baldio. Repetições, andas perdido por entre repetições, és uma repetição entre as repetições. Artista das repetições, grande maestro das desfigurações, artista das demolições. As árvores repetem as árvores, as areias as areias, a selva de letras é repetição, o areal é repetição, a pletora é vazio, o vazio é pletora, repito as repetições, perdido na moita de signos, errante pelo areal sem signos, manchas na parede sob este sol de Galta, manchas nesta tarde de Cambridge, moita e areal, manchas na minha fronte que congrega e desagrega paisagens incertas. És (sou) é uma repetição entre as repetições. É és sou: sou é és: és é sou. Demolições: estendo-me por sobre as minhas devastações, eu habito as minhas demolições.”

XXVIII: A visão da poesia é a da convergência de todos os pontos. Fim do caminho. É a visão de Hanuman ao saltar (gêiser) do vale para o pico do monte ou ao precipitar-se (aerólito) do astro até ao fundo do mar: a visão vertiginosa e transversal que revela o universo não como uma sucessão, um movimento mas como uma assembleia de espaços e tempos, uma quietude. A convergência é quietude porque no seu cume os distintos movimentos, ao fundirem-se, anulam-se; ao mesmo tempo, do alto dessa imobilidade, percebemos o universo como uma assembleia de mundos em rotação. Poemas: cristalizações do jogo universal da analogia, objectos diáfanos que ao reproduzirem o mecanismo e o movimento rotativo da analogia, são fonte de novas analogias. Neles, o mundo brinca ao mundo, que é o jogo das semelhanças geradas pelas diferenças e o das semelhanças contraditórias. Hanuman escreveu nas rochas uma peça de teatro, “Mahanataka”, cujo tema era o mesmo de Ramayana; ao lê-la, Valmiki temeu que esta ofuscasse o seu poema e suplicou-lhe que a ocultasse. O Macaco cedeu ao pedido do poeta, quebrou a montanha e lançou as rochas para o oceano. A tinta e a pena de Valmiki no papel são uma metáfora do raio e da chuva com que Hanuman escreveu o seu drama nos penhascos. A escrita humana espelha a do universo, é a sua tradução, mas igualmente a sua metáfora, diz algo totalmente diferente e diz o mesmo.....

Todos os poemas dizem o mesmo e cada poema é único. Cada parte reproduz as outras e cada parte é distinta. Ao começar estas páginas decidi seguir literalmente a metáfora do título da colecção a que estão destinadas, “Los Caminos de La Creación”, e escrever, traçar um texto que fosse efectivamente um caminho e que pudesse ser lido, percorrido como tal. À medida que ia escrevendo, o caminho de Galta apagava-se e eu desviava-me e perdia-me nos seus despenhadeiros. Vezes sem conta tinha de voltar ao ponto de partida. Em vez de avançar, o texto rodava sobre si mesmo. A destruição é criação? Não sei, mas sei que a criação não é destruição. A cada curva o texto desdobrava-se num outro, simultaneamente a sua tradução e a sua transposição: uma espiral de repetições e reiterações que se consolidaram numa negação da escrita enquanto caminho. Agora me apercebo de que o meu texto não ia a lado nenhum, a não ser ao encontro de si mesmo. ...................................»

Eis um pedacinho de um escritor que eu não conhecia e gostei de conhecer. Presente para um pai que permanece na fixidez da sua eternidade. Inesquecido.

 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

As armas das nossas penas

Eis uma história da nossa memória
Que La Fontaine a Esopo foi buscar
De uma águia que as penas perdeu
E o caçador aproveitou
Para com elas armar
A seta com que a matou.
Da história se retirou a sentença vulgar
De que o aguilhão da dor é mais pungente
Quando pelas nossas próprias armas somos batidos,
O que é acidente
Muito frequente,
E La Fontaine não deixou de apontar
Com a referência a Prometeu, filho de Japeto,
Que a sua estátua de barro animou
Com o fogo que do Céu roubou,
E a raça humana assim criou
E condenou.
Mas também foi castigado,
No Cáucaso, agrilhoado,
E com uma águia a roer-lhe os fígados,
Coitado!

«O pássaro ferido com uma flecha»
«Mortalmente atingido por uma flecha emplumada,
Extraídas as plumas de aves de formosura,
Um pássaro deplorava a sua triste sina
E dizia, num acréscimo de amargura:
“E contribuímos nós para a nossa infelicidade!
Cruéis humanos! Vós disparais
Contra as nossas asas fulgurantes
Para fazerdes voar sobre nós
Essas máquinas perfurantes
E letais.
Mas não troceis, vilões sem piedade:
Muitas vezes vos acontece a vós
Sorte semelhante à nossa sorte.
Dos filhos de Japeto,
Sempre uma metade, à outra
Fornecerá armas mortais.»

 Na verdade, o fogo que Prometeu roubou
A Júpiter, que disso o puniu,
Fogo da inteligência e da humana razão,
Já Camões o exprobou
Pela boca do Velho do Restelo
Que, segundo as suas sentenças,
Não aceitava tamanhas mudanças
De desperdício infindo
Para conquista do mundo.

 «Trouxe o filho de Jápeto do Céu
O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu,
Em mortes, em desonras (grande engano!).
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
E quanto pera o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogo de altos desejos, que a movera!»

 De facto, assim sucederia
E assim sempre sucedeu.
É o que se vê hoje em dia,
O inferno das armas, da destruição,
Armas nucleares, químicas, ameaçadoras,
Além da fome e das drogas da sujeição.
Por toda a parte se vai fazendo guerra
Se ameaça a Terra nos jogos da ambição.
É o que se vê no Médio Oriente,
Foi o que se viu antigamente,
O que corrói a Ocidente,
Com as armas que se vão fabricando
Que se vendem sorrateiramente
Que se compram sofregamente,
Uns aos outros enganando…

 Não por aqui, todavia.
As nossas armas são outras.
Armas da hipocrisia,
Da adulação ou da condenação
Ao sabor da fantasia.
Mas ,no final das nossas traças
E trapaças,
Espera-nos um Panteão
Como galardão,
Segundo sugestão
Dos mentores mores.

 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Advogada do Diabo



É o que julgo ser, ao enviar estes dados para o meu blog, com uma pena infinita de que o texto que me chegou por email seja o que diz. Sou das que pensa que não teve razão o Estado quando me aumentou bastante o vencimento, com dinheiro que não nos pertencia, e que se foi acomodando nas descidas mensais, para colaborar no ressarcimento da dívida pública. Mas o texto do e-mail agonia-me, e concordo com a indignação de quem o escreveu, seja de que partido for. O texto é o seguinte, não requer explicações:

«O Saramago é que tem razão»

«2014 aumento global de 4,99% nos vencimentos dos deputados. Dá para acreditar? Precisamente no dia em que recebemos a informação sobre a CES (Contribuição Extraordinária de Solidariedade) que de extraordinária não têm nada. Leia com atenção este abuso descarado... Foi aprovado por unanimidade!. Ninguém na Assembleia da República contestou !!!!!

«A notícia é mesmo verdadeira e vem no Diário da República.
O orçamento para o funcionamento da Assembleia da República foi já aprovado em 25 de Outubro passado, fomos ver e notámos logo, contudo já sem surpresa, que as despesas e os vencimentos previstos com os deputados e demais pessoal aumentam para 2014.
Mais uma vez, como é já conhecido e sabido, a Assembleia da República dá o mau exemplo do despesismo público e, pelos vistos, não tem emenda.
Em relação ao ano em curso de 2013, o Orçamento para o funcionamento da Assembleia da República para 2014 prevê um aumento global de 4,99% nos vencimentos dos deputados, passando estes de 9.803.084 € para 10.293.000,00 €.
Mais estranho ainda é a verba relativa aos subsídios de férias de natal que, relativamente ao orçamento para o ano de 2013, beneficia de um aumento de 91,8%, passando, portanto, de 1.017.270,00 € no orçamento relativo a 2013 para 1.951.376,00 € no orçamento para 2014 (são 934.106,00 € a mais em relação ao ano anterior!).
Este brutal aumento não tem mesmo qualquer explicação racional, ainda assim fomos consultar a respetiva legislação para ver a sua fórmula de cálculo e não vimos nenhuma alteração legal desde o ano de 2004, pelo que não conseguimos mesmo saber as causas e explicações para tanto..
Basta ir ao respetivo documento do orçamento da Assembleia da República para 2014 e, no capítulo das despesas, tomar atenção à rubrica 01.01.14, está lá para se ver.
Já as despesas totais com remunerações certas e permanentes com a totalidade do pessoal, ou seja, os deputados, assistentes, secretárias e demais assessores, ao serviço da Assembleia da República aumentam 5,4%, somando o total € 44.484.054.
Os partidos políticos também vão receber em 2014 a título de subvenção política e para campanhas eleitorais o montante de € 18.261.459.
Os grupos parlamentares ainda recebem uma subvenção própria de 880.081,00 €, sendo a subvenção só para despesas de telefone e telemóveis a quantia de 200.945,00 €.
É ver e espantar!
Caso tenham dúvidas é só consultarem o D.R., 1.ª Série, n.º 226, de 21/11/2013, relativo ao orçamento de 2014, e o D.R., 1.ª Série, n.º 222, de 16/11/2012, relativamente ao orçamento de 2013.

Foram eles os beneficiários…»

Por isso, Saramago tem razão quando escreveu:

«Portugal não tem partidos de direita, de esquerda, de nada, tem um bando de salafrários que se reúnem para roubar juntos.»


Serei advogada do diabo, ao tornar-me porta-voz da voz colérica que se pode intuir na escrita acima. É uma desilusão grande para mim, que acreditei no rigor e escrúpulo de quem governa, embora sofrendo com a dilapidação a que esses vão sujeitando a organização do nosso país, vendido a retalho. Barato, pois não cobre dívida nenhuma!...
Continuaremos a dilapidar… “até que a voz nos doa”. Que a consciência nunca doerá, de rija que é. 

A valentia do amor




Um artigo forte, o de Jaime Nogueira Pinto, que segue, saído no blog “A Bem da Nação”, um artigo de saber e desassombro – como revelara no livro em dois volumes, que dele possuo (outros mais escreveu) – “Portugal  Os anos do fim” (1976, E&F). É sobre as utopias igualitárias e libertárias apoiadas em falsos pretextos de expurgação do vício, segundo interpretação fundamentalista de antiga doutrina ou segundo ideologias de aperfeiçoamento social, que em nome da fraternidade e da igualdade esquece a fraternidade e a igualdade para descambar em perversão do mais absoluto rigor implacável. No caso citado de Kim Jong-un, o requinte de crueldade e de insanidade, por questões económicas de alianças dos seus familiares com a China, selvajaria que o mundo olha impotente, enquanto a fera aguarda, na sombra do seu armazenamento nuclear, o júbilo da destruição do mundo:

OS CÃES DA UTOPIA
Uma das características das utopias – de todas as utopias, mas ainda mais das utopias igualitárias e libertárias – é conduzirem ao contrário dos seus objectivos, quando acontece a desgraça de serem postas em prática.
A organização racional e totalitária de sociedades perfeitas – desprezando e pretendendo transformar a natureza humana - acaba sempre num frenesim de opressão e massacre. Como aquelas seitas proféticas do século XVI (lembro os anabaptistas de Münster, evocados magistralmente por Marguerite Yourcenar em A Obra ao Negro) que aspirando à pureza bíblica e evangélica terminaram na máxima promiscuidade e violência. Ou, a obsessão da instauração da 'Virtude' pelos jacobinos na revolução fundadora da idade democrática, que trouxe o Terror e o primeiro genocídio da História europeia – o da Vendeia.
A tradição comunista está bem ilustrada por um século de crimes, massacres e genocídios. Que, pelo menos em número de vítimas, ultrapassam largamente os hitlerianos e todas as ditaduras fascistas e militares do século XX. O líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un, o terceiro da tenebrosa dinastia do 'socialismo real' que resta, decidiu livrar-se do seu tio, Jang Song-thaek, e de cinco dos seus cúmplices, através de um processo de execução que lembra alguns horrores circenses da Antiguidade.
Os condenados foram despidos, metidos numa jaula e entregues à fúria faminta de 120 cães que, para a finalidade, não comiam há três dias. O festim durou cerca de uma hora e a ele assistiu o jovem líder, acompanhado por 300 altos dirigentes do Partido.
A história veio contada no jornal Wen Pei Po, de Hong Kong, órgão oficioso do Partido Comunista chinês. Na sequência, o Global Times, ligado também ao Diário do Povo, outro jornal comunista chinês, criticava duramente o dirigente norte-coreano, aconselhando o Governo de Pequim a afastar-se de Pyongyang.
Jang, um elemento considerado realista, tinha boas relações com Pequim e foi acusado por Kim de conspiração e crimes económicos – vendas a preços baixos de metais, carvão e também de terras – a interesses chineses.
O caso, além de revelar selvajaria do homem e do regime, vem reforçar a tese de uma parte da liderança chinesa de que a RPC não pode nem deve continuar a apoiar o regime norte-coreano. Um responsável militar chinês, o general Wang Hongguang, foi mesmo ao ponto de prevenir os responsáveis de Pequim dos riscos de uma viragem na política da Coreia do Norte, dada a natureza perversa e paranóica do líder. Outros observadores asiáticos e ocidentais, além das características terroristas da execução e do seu objectivo intimidatório a nível da classe dirigente, lembram que Jang era um elemento reformista do regime, uma espécie de Deng Xiaoping.
Ao contrário dos predecessores – Kim Il-sung e Kim Jong-il – que em casos semelhantes de familiares dissidentes, se limitaram a afastá-los ou exilá-los, Kim Jong-un foi a este limite para demonstrar aos compatriotas e ao exterior que está disposto a tudo para conservar o poder. E a Coreia do Norte tem armas nucleares.
14 de Janeiro, 2014
 Jaime Nogueira Pinto

São também de Jaime Nogueira Pinto, do seu Prefácio a “Portugal – Os anos do fim”, livro dedicado aos “Mortos que não soubemos merecer” as arrogantes palavras da sua definição, naquele Portugal de 1976, em que as liberdades democráticas se mostravam ainda mal definidas:

«Este livro não é um livro “político”, no sentido que não vai agradar à classe política portuguesa, no poder ou na desgraça. Dos saudosistas dos “good old days” do antigamente, aos fanáticos do “povo unido”, da massa falida de jovens progressistas e tecnocratas que transitaram dos grandes marcellistas para os quadros da partidocracia actual, ou seguiram, habilidosamente, na burocracia oficial, dos bons conservadores que sempre se acolhem ao poder, seja ele qual for, aos pequenos energúmenos que de há dois anos para cá gritam e riscam paredes, dos escribas oficiosos do melhor dos mundos reacionário aos plumitivos do concentracionarismo colectivista, dalguns generais de cabide que pela sua incompetência e comodismo tudo deixaram preparar, aos jovens capitães que se ilustraram no RALIS, na P.M., no COPCOM, nas alegrias do PREC, não creio que entre relíquias de ontem e vedetas de hoje , haja qualquer receptividade ou interesse pelo que aqui fica escrito.
Mas como não tenho por verdadeira a observação dum velho barão do liberalismo constitucional, que ensinava que o país são os políticos, e julgo que Portugal ainda vale a pena, tão-pouco me molesta, antes me anima, tal reacção.»

Portugal ainda vale a pena. O mundo também. Os fundamentalismos são traição. E os jogos económicos espectacularmente absurdos.