sábado, 13 de dezembro de 2014

Auto-estima é o que se quer



Lembrei-me da primeira estrofe do poema “Camões” de Almeida Garrett ao ler o artigo de Vasco Pulido Valente “Uma Agitação Mental” (Público, 30/11/14) que transcreve a observação bem meditada de José Sócrates a respeito da Dignidade paralela à Liberdade ou vice-versa: “Só deixa de ser livre quem perde a Dignidade”.
Foi só por uma questão de rima com “Saudade”, com que começa a estrofe garrettiana, e sua definição, recheada de expressões antitéticas, que bem se poderiam aplicar ao aforismo de Sócrates, embora este não o explicite, que me veio à ideia o início dessa estrofe. Vejamos:

«Saudade! Gosto amargo de infelizes,
Delicioso pungir de acerbo espinho
Que me estás repassando o íntimo peito
Com dor que os seios d’alma dilacera,
Mas dor que tem prazeres - Saudade!

A mim, repito, pareceu-me que as mesmas antíteses se poderiam aplicar à Dignidade e à Liberdade, abstracções sinónimas na asserção socrática, que foram obtidas com gostosura mas que sempre supus amarga, o pungir dos tais espinhos mas delicioso, a dor embora com seus prazeres, conquistadas nos idos de 74, com cravos e não rosas no cano das espingardas (e por isso menos pungente na altura) a garantir a conquista da Liberdade lusitana em Dignidade (democrática) ou a da Dignidade lusitana em Liberdade (igualmente democrática).
A Dignidade foi então sujeita a uma revisão, tal como se fez com a Liberdade, que cada um seguiu com os princípios éticos próprios, mas sempre em busca de outra rima da Saudade - neste caso, a Felicidade, e tendo sempre em vista a rima com a Amizade, sinónima de companheirismo, e por isso proporcionando inegáveis prazeres de corpo e alma. Não vou negar esses prazeres da Dignidade de Sócrates, que se me assemelham aos da Respeitabilidade de outros comparsas, defendida com unhas e dentes nas liberdades que a Democracia proporcionou. E assim temos vivido, por conta da preservação da Dignidade dos homens livres, segundo o dizem, com alguns espinhos pelo meio, mas compartilhados com os muitos prazeres que a vida fornece aos que sabem definir a Liberdade como motivação para a Dignidade, ou vice-versa. Que são as  deles.

Mas a justa explicação dos espinhos vem, naturalmente, no artigo de Vasco Pulido Valente:

Uma agitação mental
30/11/2014
 De Évora, Sócrates disse ao jornal “Expresso” que “se sentia mais livre do que nunca”. Isto à primeira vista parece incompreensível, quando ele está detido numa cadeia de alta segurança. Mas Sócrates vai explicando que “só deixa de ser livre quem perde a dignidade” e que, aparentemente, ele não perdeu a dele.
Alguém lhe terá de explicar que não foi preso pela PIDE, a KGB ou a STASI por razões políticas. E que, pelo contrário, a Judiciária e um tribunal civil independente o puseram em Évora por suspeitas de que ele é um criminoso. Cá fora não o espera a apoteose de um herói por uma causa qualquer. Se nada se provar contra ele, encontrará um grupo de amigos, com certeza um pouco embaraçados, que lamentarão o equívoco como lamentam hoje um erro da justiça.
Infelizmente, no meio da excitação que o episódio provocou (e também a condenação de Duarte Lima, a falência do BES e os vistos “Gold”), algumas pessoas acabaram por se convencer da morte iminente do regime. Rui Rio, por exemplo, um homem com reputação de inteligência e bom senso, anunciou agora que “em 1974 caiu um regime”; que “o actual regime já fez 40 anos” e “não é eterno”; e, sobretudo, que “se todos os regimes tiveram um fim, este também terá”. Não sei se Rui Rio se tornou um presidencialista e suspira pelo dia em que voltará de Colombey, perante o regozijo do povo. Mas sei que existe um presidente da República, um exército que lhe obedece, um governo e as suas polícias, juízes nos tribunais e meia dúzia de partidos com dezenas de milhares de militantes. Não reconheço neste arranjo das coisas uma situação “pré-revolucionária”.
O que reconheço é a deturpação das legislativas de Outubro (ou de Setembro). Sócrates foi promovido a Diabo pela direita, como fautor da crise e da “austeridade” e, desde a semana passada, como detido 44 da cadeia de Évora. E, por outro lado, a esquerda anda a promover desde 2011 o grande Diabo colectivo da finança internacional e nacional, os patrões, os fanáticos do “neo-liberalismo” e até, indiscriminadamente, “os ricos”. No fundo, a guerra que se prepara será a guerra entre estes dois Diabos: o Diabo da Esquerda, talvez Ricardo Salgado, e o Diabo da Direita, inevitavelmente Sócrates. Lamento o esforço de Passos Coelho e de António Costa. Mas gostava de lhes lembrar que, mal ou bem, a mesma gente, nomeada por eles, se irá sentar na Assembleia da República. 

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