domingo, 30 de novembro de 2014

Pessoa em auto análise



Foi o que me ocorreu a propósito do artigo de Vasco Pulido Valente «Um fingidor», Público, 28/11, que logo me dispus a parafrasear como uma espécie de  heteropsicografia”:

Este homem é um fingidor
Finge com tanta patranha
Que chega a fingir que é manha
A manha em que é maior.

E os que lêem o que sente
Na sua manha lêem bem
Não as várias com que mente
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira cheio de certezas
 No combóio da sua moda
A abarrotar de riquezas.

Eis o artigo de Pulido Valente:

Um fingidor
Nunca gostei da personagem política “José Sócrates”, desde a campanha para secretário-geral do PS (em que ele prometeu não aumentar impostos que, de facto, aumentou) até à sua ascensão a primeiro-ministro, muito ajudado por Pedro Santana Lopes e pela reputação de autoritário que entretanto adquirira.
Não tranquiliza particularmente ser governado por um indivíduo que se descreve a si mesmo como um “animal feroz”, nem por um indivíduo que prefere a força política e legal à persuasão e ao compromisso. Se o tratam mal a ele agora, seria bom pensar na gente que ele tratou mal quando podia: adversários, serventes, jornalistas, toda a gente que tinha de o aturar por necessidade ou convicção. Sócrates florescia no meio do que foi a sufocação do seu mandato.
O dr. António Costa quer hoje separar os sarilhos de um alegado caso criminal do seu antigo mentor da política do Partido Socialista e do seu plano para salvar a Pátria. O que seria razoável, se José Sócrates não encarnasse em toda a sua pessoa o pior do PS: o ressentimento social, o narcisismo, a mediocridade, o prazer de mandar. Claro que, como qualquer arrivista, Sócrates se enganou sempre. Começou pelos brilhantíssimos fatos que ostentava em público, sem jamais lhe ocorrer se as pessoas que se vestiam “bem” se vestiam assim. Veio a seguir a “licenciatura” da Universidade Independente, como se aquele papel valesse alguma coisa para alguém. E a casa da Rua Braamcamp, que é o exacto contrário da discrição e do conforto e último sítio em que um político transitoriamente reformado se iria meter.
Depois de sair do Governo e do partido, Sócrates mostrava a cada passo a sua falsidade, não a dos negócios, que não interessam aqui, mas da notabilidade pública, por que desejava que o tomassem. Resolveu estudar em Paris, para se vingar da humilhação do Instituto de Engenharia e da Universidade Independente, e resolveu fazer um mestrado em “Sciences Po”, sem perceber que o mestrado é uma prova escolar de um estatuto irrisório. Em Paris, viveu no “seizième”, o bairro “fino”, como ele achava que lhe competia, e, de volta a Lisboa, correu para a RTP, onde perorava semanalmente para não o esquecerem: duas decisões ridículas que só serviram para o prejudicar, embora estivessem no seu carácter. Como o resto do país, não sei nem me cabe saber se o prenderam justa e justificadamente. Sei – e, para mim, chega – que o homem é um fingidor.

Na véspera, João Miguel Tavares tinha igualmente escrito, com lógica, no Público
sobre a presunção de inocência de Sócrates:

A presumível inocência de Sócrates:
Da mesma forma que os gatos têm sete vidas, eu acho excelente que um cidadão tenha sete presunções de inocência. O problema de José Sócrates, tal como o de um gato que falece, é que já as gastou. Sócrates foi presumível inocente na construção de casas na Guarda, foi presumível inocente na licenciatura da Independente, foi presumível inocente na Cova da Beira, foi presumível inocente no Freeport, foi presumível inocente na casa da Braamcamp, foi presumível inocente no assalto ao BCP, foi presumível inocente na tentativa de controlar a TVI, foi presumível inocente no pequeno-almoço pago a Luís Figo. Mal começou a ser escrutinado, a presunção de inocência tornou-se uma segunda pele.
Claro que José Sócrates continua presumível inocente aos olhos da justiça, e assim continuará até ao trânsito em julgado da sentença. Claro que a presunção de inocência é pedra angular de uma democracia decente e de qualquer sistema judicial digno. Mas eu não sou juiz, nem polícia. Sou um cidadão e um colunista. E, enquanto tal, tenho todo o direito – repito: todo o direito – de presumir, face ao que leio nos jornais, às minhas deduções, às minhas convicções, à minha experiência, à minha memória e ao esgotamento de sete presunções de inocência, que Sócrates é culpado daquilo que o acusam. E tenho todo o direito de o escrever – pela simples razão de que as regras do espaço público não são as regras de um tribunal.
Esta insistência em confundir o plano mediático com o plano da justiça é absurda. Levado ao extremo, faria com que só pudéssemos pronunciar-nos sobre a honorabilidade de José Sócrates daqui a sete ou oito anos, quando todos os recursos tivessem sido esgotados e a sua sentença transitado em julgado. Eu não tenho o poder de um juiz. Não posso, felizmente, prender ninguém. E se não tenho o seu poder, é óbvio que também não tenho as suas limitações. É por isso que a minha liberdade de expressão é mais lata do que a do juiz Carlos Alexandre: ele fala pouco porque pode muito; eu falo muito porque posso pouco. À justiça o que é da justiça, aos jornais o que é dos jornais.
Existe uma admirável coincidência entre os fazedores de opinião que estão a demonstrar uma hiper-sensibilidade às falhas do segredo de justiça e uma notável abnegação na defesa da presunção de inocência, e aqueles fazedores de opinião que durante anos e anos defenderam José Sócrates contra os ataques ad hominem e o julgaram vítima de infames conspirações. Quando vejo Miguel Sousa Tavares ou Clara Ferreira Alves mais entretidos a discutir fugas de informação e timings de detenção do que a possibilidade muito real de um ex-primeiro-ministro ser corrupto, eu sei que eles estão menos a defender Sócrates do que a defenderem-se a si próprios, e àquilo que andaram a escrever ao longo dos anos.
Ainda ontem, no DN, Ferreira Fernandes dizia o seguinte: “Em 2009, escrevi: ‘Prendam-no ou calem-se.’ A turba, com muita gana mas sem prova, chegou primeiro do que a opinião pública – e depois?” E depois, caro Ferreira Fernandes, é que ali entre 2007 e 2011 boa parte da opinião pública preferiu fechar os olhos ao elefante no meio da sala. Se não havia provas, havia infindáveis indícios – e boa parte da opinião pública preferiu engolir as teses surreais de Sócrates, mantendo-se impassível diante do sufoco evidente do poder judicial às mãos do poder político. Viram, ouviram e leram. Mas preferiram ignorar. É uma escolha, claro. Só que convém assumi-la, até para que ninguém a esqueça.
*    http://s.publico.pt/jose-socrates/1677518http://s.publico.pt/justica/1677518http://s.publico.pt/ministerio-publico/1677518http://s.publico.pt/politica/1677518http://s.publico.pt/media/1677518http://s.publico.pt/opiniao/1677518http://s.publico.pt/tribunais/1677518
*                 Leiamos Fernando Pessoa, tão superior, até como poeta fingidor, nos seus antagonismos de sensibilidade e razão:

AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

A batota balofa



O artigo de Francisco Louçã, do Público, de 16/11, pg 55, refere a proposta de António Costa “Uma década em agenda”, título que me parece megalómano. É claro que o mesmo Louçã põe dúvidas sobre a realização dessas coisas, tão precária é esta vida que não dá para grandes projectos, mas Louçã achou-lhe objectivos importantes, como o combate à pobreza, a negociação colectiva, a penalização das empresas de trabalho precário, a igualdade, o alargamento da adopção e procriação, etc., etc. Coisas válidas, reveladoras de bons sentimentos, como António José Seguro também revelava, sem se descoser demasiado, como fazem todos os candidatos a Primeiros Ministros, aliás - excepto Passos Coelho, comprometido com um empréstimo crucificante. Mas Louçã apresenta um Costa que vai à luta, arrancar dinheiro à Europa, segundo o compromisso de Juncker, para ajudar a relançar os povos deficitários, e vai propor coisas tais como:
“os principais objetivos da União Europeia devem ser:
• relançar a União como instrumento de democracia e prosperidade partilhada na Europa, designadamente pela promoção do crescimento económico e da criação de emprego;
• relançar a dinâmica comunitária de prossecução do interesse comum numa base de igualdade entre Estados Membros;
• restaurar a coesão social e reganhar a confiança dos cidadãos no modelo social europeu, voltando a colocar os direitos das pessoas no centro da construção europeia;
• reforçar a coesão regional;
• completar a arquitetura do euro, retomando a trajetória da moeda única como uma dimensão do projeto de convergência, desse modo contribuindo para resolver, de modo sustentável, os desequilíbrios macroeconómicos e orçamentais”.

Tenhamos, pois, fé, como Louçã. Mas faltou uma sugestão: o pedido para que nos seja facilitada a vida, perdoando parte da nossa dívida, como fizeram com a da Grécia. Eu bem sei que a Grécia foi o berço de tanta coisa bela que deitou cá para fora. Mas Portugal também se pode considerar uma longa cama que primeiro que ninguém alargou espaços ao mundo inteiro, também merecia que lhe fosse perdoada parte da dívida, para podermos levantar cabeça, embora não nos faltem, felizmente ainda, muitos com ela erguida.

Todavia, o artigo da página seguinte, de Vasco Pulido Valente, A Educação de Costa”, põe, naturalmente, os pontos nos is. Habituados que estamos aos seus esclarecimentos bem ponderados, recreemo-nos com o tom sardónico da sua prosa, sem  a cor a influir. Mas  mantenhamos a esperança no Costa, que Louçã também sabe dizer coisas, mesmo que sejam só para favorecer Costa nas próximas eleições:
A Educação de Costa
VASCO PULIDO VALENTE 15/11/2014
Os tempos de facilidade e de aclamação acabaram. António Costa passou de uma promessa a uma dúvida. A política – sobretudo a política orçamental – da Câmara de Lisboa começa a ser examinada a sério. Chegou tarde, mas chegou, o fim do pequeno comício semanal na “Quadratura do Círculo”.
Para preservar um pouco da aura de antigamente, Costa tenta não falar e, quando fala, não dizer nada. Só que um candidato a primeiro-ministro, queira ou não queira, tem de falar. Desta vez, foi uma entrevista à RTP para apresentar a sua moção ao congresso do partido – a única, de resto. Infelizmente para ele, não se arranjaram mais de 800 000 portugueses para o ouvir (e a concorrência ganhou a noite). Como sinal de entusiasmo é fraco e, além de fraco, muito lógico.
O prodígio António Costa não saiu do calão em uso, nem das generalidades mais rasteiras. Primeiro, não se comprometeu a diminuir a austeridade num futuro previsível. Mais prudente e vago, acenou de longe com a possibilidade de “travar a regressão social” (o que não significa nada)  e em “estabilizar e começar a inverter o ciclo para crescer” (o que significa menos). Quanto ao pão e à manteiga, pretende uma “política de rendimentos” segura e previsível. Vai repor as pensões (como eram antes dos cortes) e deixar por enquanto os salários do funcionalismo à providência do Altíssimo. A sobretaxa, ao que parece, ainda está para durar; e o desemprego também. Nestas coisas, todo o cuidado é pouco e Costa não tenciona criar ilusões à sua tresloucada esquerda.
Sobre a dívida, não houve o mais vago sinal às fantasias dos 74. Pensa num “debate a nível técnico e académico” (que certamente nos sossegará) e em “encontrar uma solução a nível da Europa”, que se reduzirá, suponho, a um “debate a nível técnico e académico”, porque  Portugal não pesa, nem decide. Costa gostaria, claro, que os credores espontaneamente nos desculpassem uma parte da dívida ou que um investimento indeterminado (mas por força grandioso) nos “libertasse do garrote”. Ninguém o deve impedir de se consolar com a ideia, que até o dr. Cavaco, num estilo mais presidencial, acha “positiva”. A educação do dr. António Costa já começou. Calculo que seja dolorosa e espero que seja profícua. Que mais se pode, no fundo, esperar dele.

sábado, 29 de novembro de 2014

Uma pena que não se cumpra o dever



Quando julgava que o português já estava despachado, conjuntamente com territórios vários, despachados primeiramente, e partes específicas do seu terreno a despachar diariamente, já que não voltei a ouvir falar do desacordo com o Acordo e muito menos as justificações que nos idiotizam, deparou-se-me este artigo de José Manuel Martins, do Público de15/11/2014, «Despachar o português: o dever de recusa» com o apoio dos docentes da Universidade de Évora, infracitados, que nos mostrou que ainda não feneceu o ardor linguístico, prova de amor pátrio, como o são também as demonstrações embandeiradas das medalhas olímpicas ou mesmo só europeias, além da satisfação pátria e sobretudo regional nos ganhos patrimoniais de canções folclóricas, terras ou antiguidades preservadas, que outros países nos concedem para enriquecimento cultural da Humanidade.
Penaliza-me que estes professores da Universidade de Évora, já que o governo se está nas tintas para a escrita da sua língua, não submetam este seu protesto tão lógico a uma entidade idónea estrangeira que proibisse tal maculação de uma  língua de origem igualmente universal como a dessa entidade – neste caso do grego e do latim – impondo o tal “dever de recusa” em despachar a escrita  portuguesa do universo.
«Apelamos aqui, não à "desobediência civil", mas tão simplesmente a este português em que escrevemos.», afirma energicamente José Manuel Martins, acompanhado por vários docentes da mesma Universidade, neste documento tão pleno de sabedoria. E, naturalmente, de profundo sarcasmo. Infelizmente não atinge os responsáveis, nem sequer os que governam ou virão a governar. No gesto tão modernaço quanto burocraticamente hirto com que abusivamente se procura dar por "oficializado" esse disparate técnico e essa inépcia política designados "Acordo Ortográfico de 1990", uns, mais papistas que o Papa, emitem despachos: e os subpapistas despacham-se a cumpri-los, pelo facto de serem despachos.

Por decisão pessoal, declaro que não escrevo neste português do AO.

«Despachar o português: o dever de recusa»
 José Manuel Martins,

Anda por aí à solta uma epidemia da obediência antecipada, um zelo narcísico em obedecer e uma pressa institucional em se fazer obedecer, a bem dos brandos costumes. Por toda a parte onde se escreva e não se questione: nas editoras, nas universidades, na escola, nos serviços públicos, nas entidades privadas "esclarecidas".
No gesto tão modernaço quanto burocraticamente hirto com que abusivamente se procura dar por "oficializado" esse disparate técnico e essa inépcia política designados "Acordo Ortográfico de 1990", uns, mais papistas que o Papa, emitem despachos: e os subpapistas despacham-se a cumpri-los, pelo facto de serem despachos. Nessa concha fechada do institucionalismo, emitiriam e cumpririam também os despachos opostos, uns com a alegria maldosa do álibi hierárquico, os outros com o prazer perverso ligado ao acto simbólico do puro exercício formalista do poder. Ainda outros, entregues à tara provinciana de serem os primeiros; quando não é o caso de terem na mira uma oportunidade de negócio em letra impressa: "já" estarem do lado bom das vendas.
Essa admirável cultura da legalidade ignora viciosamente o vasto historial argumentativo da resistência científica e, por isso, cívica que desde 1986 torna tudo menos "evidente" (e "de vosselências mui atento e obrigado") o cumprimento de despachados despachos.
Ah, admirável superstição de amanuenses dóceis, que nos vêm recordar, caso estivéssemos esquecidos, que a Lei é a Lei, e que a tal ponto esta tautologia é majestosa e em si mesma, que, dizem, submete por igual soberanos e súbditos, enchendo-nos a todos de candura e paz! Talvez seja vício filosófico perguntá-lo, mas, na fórmula mágica "igualdade perante a Lei", perante que instância é que essa famosa "Lei" por sua vez responde? 
Um caso a vários títulos eloquente, a este respeito, foi o de Vasco Graça Moura, à frente do Centro Cultural de Belém, posto onde demonstrou sossegadamente a absoluta irrelevância, quer da teologia da obediência, quer de algum esbracejante anarquismo da desobediência (que ele jamais reconheceria, porém, como ingénua "desobediência"): limitou-se com toda a tranquilidade a continuar a escrever recusando-se à aplicação, não da Lei ou de temerosos despachos, mas da rábula técnica e da mistificação diplomático-editorial que dá pelo nome de "Acordo Ortográfico".
Ah – e proclamando-o publicamente. Ponto importante, e pouco português, que nos acusa: moles!, lassos! E coragem exemplar que nos envergonha duplamente, não só por ele a ter tido, mas por nos ter assim mostrado a todos que essa imaginária vigilância kafkiana a que a inércia, mais que o temor, nos subordina, é um tigre de papel.
O que deve, em tais circunstâncias, fazer um agente institucional médio à frente de um serviço de Estado sob despacho? Pois, escrever tranquilamente o seu português e lamentar a quantidade de gralhas persistentes que os revisores de comboio forem, em seguida, capazes de descobrir todos lampeiros no sucinto trajecto entre Carcavelos e a gare de Oeiras.
Esses zelosos oficiais de pala bem podem então correr a levar ao senhor Chefe de Estação os escandalosos bilhetes apreendidos, e ele que os faça passar, se lhe aprouver, pelo olho de Lince do programa corretor, nosso patrono, restituindo a Ordem das coisas e do seu estado, e repondo a moral pública e o aprumo no sistema ferroviário nacional, expurgado de choques e atrasos. Desde que eu não os assine pelo meu punho na sua nova versão aguada e ignara. Pois só se deve assinar aquilo que se escreve.
Sem sermos aqui demasiado kierkegaardianos, o que Graça Moura fez foi escolher a escolha – e não a falsa alternativa entre obedecer e desobedecer. A liberdade que ele exerceu não se mede contra o constrangimento de uma regra, mas escolhendo o que liberta – a língua, que é do que se trata, e não a norma, cuja forma – o ser-norma – é por definição alheia à língua, à qual trata como seu objecto. Pode-se escolher como se vive: na língua – ou como funcionário.
Paradoxalmente, o zelota é aquele que defende com tanto arreganho a ortografia anterior, como qualquer uma que pretenda revogá-la: uma ortografia é correcta por obedecer à lei, não à língua, e eis que a Lei é o melhor argumento linguístico que há, senão o único: questão de regulamento interno por despacho de sua excelência.
Não é aqui o lugar para mergulhar numa filosofia da linguagem ou numa teoria da escrita. Limitemo-nos a apontar uma evidência que esvazia em cinco segundos toda e qualquer pertinência de uma proposta de "acordo ortográfico" baseada na alegação de que a unificação ortográfica produziria uma unificação linguística suficiente: para todos os efeitos práticos, um acordo ortográfico não serve absolutamente para nada, porque é falso que unifique o português escrito e o brasileiro escrito, nem sequer no plano ortográfico (onde se multiplicam casos de dupla grafia, o "AO" auto-sabotando assim o seu próprio princípio formal), quanto mais nos outros três dos quatro planos em jogo, insanavelmente divergentes e livremente criativos. Com efeito, no dia em que nos fóruns internacionais a lusofonia queira expressar-se a uma só voz (incluindo a Guiné Equatorial do simpático falante Obiang) e num documento unificado, a versão que soar terá ainda que escolher se dirá "ônibus", "machimbombo" ou "autocarro" (são alternativas lexicais não unificáveis); se formulará "policial" ou "polícia" (são alternativas morfológicas não unificáveis); se articulará "me deixa te dizer" / "deixa-me dizer-te" (são alternativas sintácticas não unificáveis). A multiplicar por mil.
A extensão e a profundidade das diferenças lexicais, morfológicas e sintácticas sobrepassam esmagadoramente as divergências ortográficas, epidérmicas em relação àquelas – tornando o "acordo" impróprio para os embaciados fins político-diplomáticos que foi sugerido esperarem-se dele. Apelamos, pois, aqui, não à "desobediência civil", mas tão simplesmente a este português em que escrevemos.

Com o apoio dos docentes da Universidade de Évora:

Hélio Alves  (Linguística e Literaturas)

João Brigola  (História)

João Eduardo Rabaça  (Biologia)

João Paulo Fernandes  (Ciências do Ambiente)

João Príncipe  (Física)

Jorge Rivera  (Filosofia)

Manuel Mota  (Biologia)

Nuno Neves  (Geografia)

Olga Gonçalves  (Linguística)
http://s.publico.pt/NOTICIA/1676255 

Não se deve estranhar



Enviou-me o meu filho Ricardo o seguinte texto de Mia Couto sobre  Maputo, a velha Lourenço Marques, cantada com tanto encanto por Tudela, e que revemos nas fotos que a Internet nos apresenta. Uma cidade bonita que vai sendo devorada pela miséria, pela guerra intestina, pela selvajaria, pelo terrorismo que se previa, terra descomandada, sem ordem, que já foi uma cidade tranquila, tal como outras, que se vão desfazendo em Moçambique. Mas Mia Couto não está a mudar de opinião. Foi um puro desabafo de receio actual, jamais previsto, que a descolonização era ponto assente, na sua obra.

Texto de Mia Couto - A Cidade que nos resta

Caixa de entrada

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Perguntava-me um amigo estrangeiro, acabado de chegar a Maputo, em que ruas ele podia circular à vontade.
- À vontade?  Perguntei, apenas para ganhar tempo.
 O fulano ficou olhando o meu rosto pensativo. Poucos anos antes eu teria respondido sem muita hesitação. A cidade mantinha áreas de relativo sossego, onde o pacato cidadão podia circular sem riscos. Mas naquele dia eu acabava de receber a notícia que um colega meu do serviço, em plena Rua Joaquim Lapa, a escassos metros da Esquadra, tinha sido assaltado à mão-armada, em pleno dia. No dia anterior, assim rezava o jornal, uma mulher fora violada na marginal. Não acontecera no lusco-fusco. Sucedera à luz do dia. Na noite anterior eu escutara no noticiário televisivo bairros inteiros reclamando contra o reino de terror da bandidagem. Na semana anterior, um estrangeiro que visitava a nossa empresa, próximo do Hotel Polana, tinha sido agredido por um grupo de jovens. Nós tínhamos informado esse mesmo consultor que o bairro era tranquilo e que ele podia caminhar pelas redondezas sem problema. Horas depois, estávamos visitando o pobre homem no Hospital.
 - Ora caminhar à vontade... - Ruminei eu, já consciente do preço da minha demora.
 O visitante salvou-me do embaraço, decidindo filosofar sobre a tendência universal do aumento da criminalidade. Eu acreditava que o mau momento passara quando ele lançou nova interrogação:
 - E conduzir?
 - Conduzir?
 Ao menos, eu fizesse uso de mais imaginação. A repetição da pergunta era um estratagema que ameaça saturar.
 - Sim, conduzir um carro? Acha que posso?
- Claro que pode, se tiver carta de condução.
- Tenho, sim. Mas é seguro?
- Bem... Quer dizer... É preciso ter alguns cuidados...
- Como, por exemplo… por exemplo...
Desta feita, as imagens cruzaram-me a mente com a velocidade de um chapa cem. Como explicar ao pobre turista que nos semáforos não se arranca quando abre o verde. Como explicar que, em certas esquinas, o vermelho corresponde ao verde e só se para no amarelo? Que em outros cruzamentos o verde corresponde ao amarelo? Como esclarecer que os chapas nunca param nos semáforos e param sempre no meio da estrada?
O estrangeiro entendeu a demora na minha resposta. Deve ter ficado a matutar: a pé não podia, de carro não devia. Como usufruiria ele da cidade?
E a mim mesmo eu me questionei: que cidade nos resta a nós, cidadãos de Maputo? Não podemos oferecer a cidade aos outros porque ela está deixando de ser nossa.
- Deixe estar, disse ele para me tranquilizar. Eu vou ficando no Hotel.
Num impulso eu quase dizia: eu também me vou mudar para o seu Hotel.  E enquanto conduzia o meu amigo rumo ao seu alojamento eu fui olhando Maputo e pensando se como o cidadão está perdendo a cidade, como nos restam de Maputo as sobras daquilo que a voragem do caos não está ainda dominando.

NOTÍCIAS DA SEGUNDA GUERRA
Por Paula Almeida

28 de novembro/
1934
¾   Winston Churchill avisa o primeiro-ministro britânico Stanley Baldwin para não subestimar o poder aéreo alemão.
1939
¾     O governo soviético renuncia ao pacto de não-agressão com a Finlândia, assinado em 1932. São alegados disparos feitos por tropas finlandesas sobre as tropas soviéticas em torno de Leningrado. Enquanto isso, são emitidas ordens ao Exército Vermelho para invadir a Finlândia a 30 de novembro.
¾     Na Polónia ocupada, Hans Frank ordena a criação do Judenrat (Conselho Judaico) em cada gueto, para fazer cumprir as ordens nazis.
¾     O governo britânico declarou que todas as exportações alemãs são contrabando.
1941
¾       As tropas alemãs abandonam Rostov.
¾       Na África Oriental, são aceites os termos de rendição italianos e 22.000 tropas italianas rendem-se. Termina o Império Romano de Mussolini nesta região. 
1942
¾       Na frente oriental, continuam os avanços soviéticos na área ao redor de Rzhev, nos arredores de Moscovo.
¾       As Forças Francesas Livres ocupam a ilha de Reunião, no oceano Índico.
1943
¾     0Confer
ências de Teerão, Irão – O líder soviético Josef Estaline, o presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt e o primeiro-ministro britânico Winston Churchill (foto) reúnem-se durante três dias para discutir a Operação Overlord, que inclui os desembarques na Normandia, França, agendados para maio de 1944. Os desembarques foram adiados, ocorrendo a 6 de junho de 1944, incluídos na estratégia final da guerra contra a Alemanha e os seus aliados. Durante a reunião ficou prometido o reconhecimento da independência do Irão pelos três líderes. Recorde-se que este país foi invadido em 1941 pela Grã-Bretanha e pela União Soviética. 
1944
¾     Na frente oriental, as forças soviéticas chegam ao Rio Danúbio a norte da confluência do rio Drava.
¾     O primeiro comboio aliado chega a Antuérpia, na Bélgica libertada.
1946
¾     Anton Mussert, um reputado nazi holandês, é condenado à morte por alta traição. Anton Adriaan Mussert foi um dos fundadores do Movimento Nacional-socialista dos Países Baixos e seu líder formal. Por essa razão, foi o nacional-socialista mais proeminente da Holanda antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Durante o conflito, conseguiu manter esta posição devido ao apoio que recebeu dos alemães.