sábado, 23 de agosto de 2014

Trève de soucis



Um meu grande prazer, quando leccionava literatura, era encontrar respostas bem escritas nos testes, que logo dava como modelo, na correcção que apresentava por escrito, também com a minha própria versão, não para efeitos de sobreposição mas de outras hipóteses de solução. Guardo ainda algumas dessas correcções, que reencontrei  na mudança de casa e me fizeram recuperar vivências felizes de outro tempo.
Um dia, nos avanços maravilhosos da modernidade, a Internet proporcionou-me leituras que igualmente me entusiasmaram e me fizeram participar nestes espaços cibernéticos de distância e proximidade. Os meus filhos Artur e Ricardo acharam que eu podia ter o meu blog, Ensinaram-me as manobras indispensáveis, o Artur criou os adornos artísticos da sua envolvência – uma bandeira portuguesa de especial fabrico, na cimeira, umas flores de cacto, tão belas quanto efémeras, do nosso jardim, no final da página. Assim fui participando e reagindo, desde 2008, nos vendavais do nosso mundo, para sentir a vida, embora tendo presente as críticas ferinas do Velho do Restelo aos mareantes atrevidos, que se deve sempre rever com atenção - para saborear paralelamente.
Já que nesta gostosa vaïdade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome, esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la Quem a dá:

«Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pola de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?

«Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe;
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a Fama te exalte e te lisonje
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia.
(Lus. IV, 99-101)
Assim, mau grado as condenações, sempre possíveis, sinto prazer nesta aventura participativa, e no meu blog transcrevo muitas vezes os textos que me tornam feliz, nesta parcimónia em que vivemos actualmente em questão de beatitude, uma felicidade de descoberta de valores que servem de apoio ao nosso orgulho pátrio, também parcimonioso.
Desta vez, foi o artigo de Teresa  de Sousa, saído no Público de 10/8, o responsável  pelo bem-estar espiritual, artigo que retrata, com seriedade e firmeza, os cordelinhos por que se move o mundo conturbado, de violência e condenação da dita, de interesses e cinismos sem trégua, e de ajudas que pretendem muitas vezes encobri -los.
Uma análise feita com rigor de informação e escrita com elegância e clareza, em torno do Presidente de um povo líder nos destinos do mundo, condenado a  participar numa guerra que antes condenara – a do Iraque – onde o terrorismo sectário se impôs, como, de resto, em outros focos incendiários em que os fundamentalismos estrebucham e provocam, para impor os seus interesses a coberto da bandeira dos seus dogmas religiosos. E Obama, de repente, não tem mãos a medir para acudir aos focos de incêndio que estalam – no leste europeu, na Palestina que exige generosidade incondicional no socorro humanitário contra a vizinha e invejada Israel, a quem não admite retaliação contra as suas próprias provocações. E Obama, que não quer sacrificar os seus homens, e dentro das premissas pacifistas que estabeleceu quando chegou ao poder, é obrigado, de repente, a agir - na Ásia com quem estabeleceu acordos económicos, na África, onde pretende avançar em termos económicos, já atrasado em relação à China, na Rússia de Putin, cuja impassibilidade e aparente cooperação de repente se revelam na sua fragilidade, por conta do cinismo e ambição de comando de antiga superpotência que o caso da Ucrânia aclarou…
Sintamos a justeza de análise de Teresa de Sousa… Nada de novo, afinal, num mundo de ambições e tentativas. Temos outras prioridades por cá.

«O mundo trocou as voltas a Obama»
Quem diria que, três anos depois de pôr termo a uma guerra a que sempre se opôs, Barack Obama se visse confrontado com a decisão de intervir militarmente no Iraque?
Trata-se de uma intervenção limitada, também de natureza humanitária, para evitar um massacre e para impedir que os jihadistas do “Estado Islâmico” (uma nova versão mais radical da Al Qaeda) cheguem à cidade de Erbil, capital do Curdistão iraquiano. Desde Junho que o Iraque está a ferro e fogo, com uma poderosa e violenta a ofensiva do “Estado Islâmico do Iraque e do Levante” que ninguém viu chegar, correndo o risco sério de desagregação. “Bagdad pediu oficialmente a Washington que bombardeie a ofensiva jihadista” escreve o Monde no dia 20 de Junho a toda a largura da sua primeira página. Obama ignorou o apelo. Na quita-feira, subitamente, invocou razões humanitárias para lançar raids aéreos no Norte do país. Mas também garantiu aos americanos que “não haverá botas no terreno” nem os EUA se deixarão arrastar para um novo conflito.
Simbolicamente, esta decisão do Presidente mostra até que ponto o guião que apresentou para construir uma nova relação da América com o mundo foi demasiadas vezes posto em causa. O Presidente, como reconhecem muitos analistas em Washington, fez muitas coisas certas. Quis dar prioridade à diplomacia e reduzir o uso da força ao último recurso. Quis partilhar a responsabilidade da América pela segurança mundial com os aliados regionais e através das organizações multilaterais. Prometeu estender a mão aos “inimigos” para abrir um caminho à negociação. Dirigiu-se directamente ao mundo islâmico (no Cairo) para lhes garantir que a América não era sua inimiga. O mundo trocou-lhe as voltas. Talvez porque amigos e inimigos se deixaram cair na tentação de sobrestimar o declínio do poder americano, que a Grande Recessão veio acentuar. Obama prometeu uma nova forma de liderar o mundo. Os seus adversários entenderam a mensagem como um sinal de fraqueza. Os seus aliados também.
África foi, provavelmente, o continente que mais vibrou com a sua eleição e também aquele que menos lhe exigiu. Só agora Obama teve tempo para organizar uma cimeira africana, com uma nova estratégia que vá além do combate ao terrorismo. A África começa hoje a ser olhada como a nova “economia emergente”. O Presidente sabe que ainda tem capital político para gastar. “A influência americana no continente é pateticamente pequena, quando comparada à chinesa e à europeia”, escreve o colunista do New York Times David Brook. Mobilizou as empresas americanas, que corresponderam com um montante de 14 mil milhões de dólares para investir. Provavelmente, Obama não poderia imaginar, quando preparou a cimeira que devia aos africanos, que, na mesma semana, teria de ordenar raids aéreos sobre o Iraque, reforçar as sanções económicas contra a Rússia ou tentar pôr cobro à guerra de Gaza, lembrando-lhe que falhou na promessa de resolver um conflito que retirava aos palestinianos a sua própria dignidade. A incerteza e a imprevisibilidade são as características que predominam em períodos de transição da dimensão daquele que estamos a viver. Obama queria dedicar-se à “reconstrução” da nação americana e envolver-se o menos possível num mundo cuja segurança continua a depender, em grande medida, da América. Não teve essa sorte.
A invasão do Iraque foi a guerra desnecessária que a América travou, que Obama sempre criticou e à qual quis pôr termo o mais depressa possível. Não antecipou o risco de fragmentação. Entretanto, a Primavera Árabe transformou-se num triste Inverno (a única excepção é a Tunísia), sem sequer dar tempo aos EUA para rever a sua estratégia regional. “Felizmente”, escreve Robert Kagan, um crítico de Obama, “o Presidente ignorou os realistas que o aconselhavam a manter-se ao lado dos ditadores em colapso”. A Síria trava uma guerra civil sem fim à vista, que se traduz numa gigantesca tragédia humana. A Líbia está em desagregação. Um embaixador americano morreu em Bengazi. O Presidente recebeu na Casa Branca o Presidente egípcio Mohamed Morsi (membro da Irmandade Muçulmana) democraticamente eleito. Agora precisa do novo poder militar instalado no Cairo para intermediar a guerra em Gaza. O Grande Médio Oriente, que Bush queria democratizar à força, está mergulhado no caos. A dúvida paira sobre as negociações com o Irão para encontrar uma solução pacífica para o seu programa nuclear, que foram o maior êxito da sua política. Teerão partilha com os EUA a mesma preocupação perante o risco de desagregação do Iraque entre xiitas (no poder), sunitas e curdos. Pelo contrário, a Arábia Saudita, velha aliada da América, olha com desconfiança essa aproximação, enquanto arma as forças jihadista na Síria e no Iraque. Também as alianças já não são o que eram nesta perigosa rivalidade entre xiitas e sunitas pela hegemonia regional.

O pivô asiático
Quando chegou à Casa Branca em 2009 Barack Obama tinha a sua própria concepção sobre as prioridades externas da América e a forma de as alcançar. A primeira visita de Hillary Clinton depois de tomar posse como secretária de Estado foi à Ásia. Com o centro de gravidade da economia a passar do Atlântico para o Pacífico e com a cada vez mais rápida ascensão da China ao estatuto de superpotência, o novo Presidente considerou que estava aí o maior desafio estratégico que os Estados Unidos tinham de enfrentar nas próximas décadas. Foi o tempo em que muito se falou de G2, apesar do G20, e em que a Europa ficou a roer as unhas sem saber qual era o seu papel na nova doutrina americana.
Obama quis mostrar a Pequim que os EUA continuavam a ser uma potência asiática embora disposta a cooperar com a China na resolução dos grandes problemas mundiais. Seria sempre um exercício difícil: combinar a “contenção” com a “cooperação”. A China já deixou para trás a “ascensão pacífica”, afirma-se em África ou na América Latina como um actor político importante, investe nas economias europeias do Sul, fragilizadas pela crise da dívida, enquanto reforça o seu poderio naval para impor o seu domínio nos mares da China do Sul e da China Oriental. Não hesita em “exercitar os músculos” na disputa que trava com o Japão em torno de uma ilha habitada por tartarugas. A chegada de Shinzo Abe ao poder, com um discurso nacionalista e alguns gestos desnecessários que lembraram a memória das calamidades cometidas na II Guerra, criou um clima de tensão. O problema é que os japoneses, com razão ou sem ela, começam a duvidar da vontade americana de travar uma guerra para defendê-los. Abe “iniciou uma agenda de reformas da política de defesa, destinadas a melhorar o capacidade do Japão para responder às grandes tendências regionais”, escreve Sheila Smith do Council on Foreign Relations. As economias dos dois países asiáticos têm hoje um elevado nível de interdependência (o Japão é o maior investidor na China) mas a História também ensina que o poder destruidor do nacionalismo é ilimitado. Numa crítica à política de Obama na Ásia, Gideon Rachman, colunista do Financial Times, escreve que “até à data, os esforços americanos foram suficientes para antagonizar a China mas não para tranquilizar os aliados.”
Visto do lado de cá do Atlântico, o pivô americano para o Pacífico suscitou algum nervosismo. Obama chegou à Casa Branca determinado reconciliar-se com os aliados europeus (o que não seria difícil vista a onda de entusiasmo que a sua eleição causou), cansados das guerras de Bush, mas também a inverter as péssimas relações entre Washington e Moscovo herdadas da fase final do mandato do seu antecessor. Avisou que a relação transatlântica tinha um preço: partilhar mais equitativamente o fardo da segurança europeia, incluindo uma maior responsabilidade pela segurança regional. A América continuaria a “liderar” só que “do banco de trás”. Esse foi o modelo aplicado à Líbia, quando o Reino Unido e a França decidiram que era preciso intervir.

O jogo de Putin
A cimeira da NATO em Lisboa, em Novembro de 2010, serviu para adoptar um novo conceito estratégico que reafirmava o compromisso do Artº 5º do Tratado de Washington. Mas serviu também para encenar uma nova era de cooperação com a Rússia que anunciava um ponto final definitivo à Guerra Fria. Dmitri Medvedev apresentava a face mais simpática da Rússia e parecia entender que o Ocidente era essencial para sua modernização. Obama ofereceu-lhe a participação no sistema de defesa antimíssil destinado a proteger o território da Aliança. O Presidente via na Rússia um parceiro importante para a resolução de alguns conflitos regionais e um interlocutor fundamental para o seu objectivo de reduzir drasticamente as armas nucleares. O alargamento da NATO ficava implicitamente congelado, cabendo à Europa integrar esses países de fronteira através de acordos de associação. Nada ainda fazia suspeitar da reviravolta a que acabamos de assistir nos últimos meses.
O regresso de Vladimir Putin mudou tudo, ainda que não imediatamente. Foi o Presidente russo que poupou Obama a uma guerra que não queria travar contra o regime sírio, quando Bashar Al-Assad atravessou a linha vermelha, ao utilizar armas químicas contra a população. Obama ficou sem alternativa, senão um castigo militar. Londres disse que sim mas David Cameron conseguiu tirar a água do capote, levando a decisão a Westminster, que a rejeitou. Obama seguiu-lhe o exemplo, prometendo ir ao Congresso. Acabou por ser Putin a salvá-lo in extremis (salvando ao mesmo tempo os seus enormes interesses na Síria) ao obter de Damasco a garantia de entrega do seu arsenal químico. Putin já dissera muitas vezes ao que vinha: restituir à Rússia o estatuto de superpotência respeitada a nível global. Na Geórgia, pôs em prática a maneira como tencionava fazê-lo, alegando a protecção das minorias russas perante a passividade ocidental. Este era o pretexto. O objectivo era recuperar a sua influência sobre o chamado “estrangeiro próximo”, da Ucrânia até à Ásia central. Quando em Dezembro de 2013 impediu o governo pró-russo de Kiev de assinar um acordo de associação negociado com a União Europeia, estabeleceu um novo limite para a sua relação com o Ocidente. Com a anexação da Crimeia, ultrapassou outro tabu: a alteração das fronteiras europeias pela força. Putin escolheu definitivamente o seu lado: contra o Ocidente. O anúncio do fim da Guerra Fria apenas durou três anos. Obama dizia há um ano perante as Nações Unidas que o mundo “não estava no tempo da Guerra Fria nem existe um ‘Grande Jogo’  a ganhar”. A dureza com que se tem referido à Rússia revela um sentimento de traição. Numa entrevista recente à Economist afirma sem contemplações que “a Rússia não fabrica nada nem os imigrantes fazem bicha para ir para Moscovo à procura de uma oportunidade”. Acrescenta que é preciso garantir “que eles não entrem numa escalada até ao ponto em que as armas nucleares voltem a entrar na discussão”.
Não se sabe ainda onde vai acabar este antagonismo entre o Ocidente e a Rússia que Putin está a testar na Ucrânia. Desta vez, são os bálticos ou os polacos que temem que a América não esteja disposta a morrer por eles. A NATO vai reunir-se em Setembro numa cimeira onde terá de reavaliar de novo a sua missão. A Economist interrogava recentemente: “A América está disposta a lutar por quem?” É esta a questão que assombra os aliados”. Obama quis libertar-se do fardo da segurança europeia. Putin obrigou-o a reconsiderar. Conter a Rússia ou conter a China? Ou conter ambas? A China também quer criar a sua própria zona de influência na Ásia.
“Kerry simboliza o dilema do papel global dos Estados Unidos no século XXI”, escreve a Spiegel alemã, comentando os esforços do chefe da diplomacia americana, que corre de incêndio para incêndio sem conseguir apagar as chamas. “Até que ponto pode a política externa americana ser bem-sucedida se depende mais de palavras fortes do que de tanques e porta-aviões”. Esta é a crítica dos velhos falcões republicanos, que acusam Obama de ter alienado a credibilidade americana. 
Edward Luce escreve na sua coluna habitual no Financial Times que “é a incerteza, e não a China, que está a substituir o poder americano”. O estado do mundo parece dar-lhe razão. Os adversários de Obama na América acusam-no de não compreender as ameaças que a América enfrenta quando reduz o orçamento da defesa. Que é, no entanto, sete vezes maior do que o russo e igual ao dos 10 países seguintes na lista dos maiores orçamentos. A economia começa a dar sinais da sua tradicional vitalidade. E, ao contrário da China ou da Rússia, a América continua a ser o íman que consegue atrair toda a gente que quer uma nova oportunidade.

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