domingo, 31 de agosto de 2014

Ele avisou



Hoje a minha irmã não fez parte do nosso convívio domingueiro, pois que está de férias no Algarve, depois de me deixar ficar os Públicos que repartimos fraternalmente - eu recebendo-os para me ilustrar, ela pagando-os e dando-mos fraternalmente para ler, após a sua própria ilustração, e deste modo cumprindo nós ambas as funções alienantes e aprazíveis que competem à imprensa, exemplares que encaminho seguidamente para a minha amiga, atida ao princípio de partilha que nos define a época, para mais sendo o Público um jornal com muita qualidade, a exigir difusão.

A minha amiga vinha armada dos seus saberes, e largou, quando me mostrei assustada com a situação de ameaça de guerra que paira estupidamente no mundo:

- O que se está a ver, a Guerra está aí. Putin avisou do seu poder. Aos jihadistas: “Vocês sabem todos qual é o nosso poder nuclear!” Ao mais pequeno atrevimento entra em campo. Ele avisou! Ouvi em S. João do Estoril. Ele avisou do seu poder.

Lançada que estava, nem me deixou mostrar os meus próprios receios que têm a ver sobretudo com a Ucrânia, onde Putin joga todo o seu cinismo ameaçador. Mas eu estava sobretudo excitada com uma notícia que ontem ouvi na TV Cinq, sobre um Metropolitano 2 de Moscovo, ao que parece construído no tempo de Estaline, mais profundo do que o Metropolitano público, estreado em 1935, o qual era secreto, só conhecido do poder e do KGB. Uma das novas que ouvi foi a de que os construtores foram mortos depois de findo o trabalho, para o Metro 2 reservado à espionagem e sequelas, não vir a ser divulgado. Mas a minha amiga era alheia à informação, e fiquei na dúvida do que ouvira, receando ter-me equivocado. A informação não se arreda, contudo, dos íntimos pensamentos que o receio da terceira guerra, de grandes possibilidades arrasadoras, confirma, a propósito das crueldades das guerras anteriores – mundiais – e da Revolução Russa e do que se viveu sob o poder de Estaline, incluindo os pânicos da Guerra Fria, do Muro de Berlim, do comunismo na Ásia, de Mao Tsé-Tung… Presentemente, dos olhos álgidos de Putin. Não devo ter-me enganado a respeito da notícia sobre o Metro 2 de Moscovo, de execução dos seus construtores. O resto… é silêncio, para que todos tendemos, em precipitação laboriosa.

Mas entre os Públicos da semana que a minha irmã me deixou antes de partir para férias, o Público de 24  de Agosto vem pleno de referências a esta expectativa, que cada vez mais estamos augurando, de um conflito mundial por conta das disponibilidades cortantes dos olhos álgidos de Putin. São vários os articulistas, prova da preocupação geral, mas  o extenso artigo de Teresa de Sousa - «Europa: o mundo está a entrar-lhe pela casa dentro sem pedir licença» é uma lição que gostarei de guardar. Transcrevo-o da Internet, precedido da síntese e dos conceitos orientadores ali expostos. Uma lição para meditar:

«Europa: o mundo está a entrar-lhe pela casa dentro sem pedir licença»
A Europa joga o seu futuro na forma como agir na Ucrânia e no Médio Oriente. Deixou de poder ignorar o mundo. Mas ainda não sabe como pode lidar com ele. A Alemanha, pelo menos, já mudou.

Conceitos:


«Angela Merkel não costuma brincar em serviço. Concorde-se ou não com ela, provou-o na forma como geriu a crise do euro. Também não quis deixar dúvidas sobre a viragem súbita da política alemã em relação a Vladimir Putin. É verdade que foi preciso um avião com 300 pessoas a bordo, na sua maioria europeus, para fazê-la acelerar a mudança. Também aprendemos que gosta de agir no último minuto e com o menor custo possível. Desta vez, corrigiu a rota tão rapidamente que a imprensa ocidental ainda levou alguns dias a mudar, ela própria, de registo.
Desde o início da crise, a chanceler tinha decidido coordenar a resposta ao desafio bélico de Vladimir Putin com o Presidente Obama e foi o que fez, mesmo que alguns passos atrás. Manteve um contacto permanente com o Presidente russo. “Ele vive noutro mundo” disse a Obama pouco antes da anexação da Crimeia. Sempre disse que a Rússia teria de pagar um preço. Finalmente, a 29 de Julho, a decisão de passar ao “nível três” das sanções, aquele que verdadeiramente dói à economia da Rússia, foi o primeiro sinal claro dessa mudança
A chanceler percebeu que era a segurança europeia que estava posta em causa e que a geoeconomia que inspirou a sua política externa (muitas vezes com a fúria dos seus principais parceiros europeus) e que determinou a relação da Alemanha com a Rússia, deu lugar à geopolítica.
A Alemanha é o terceiro maior parceiro comercial da Rússia (a seguir à China e à Holanda) e um dos maiores investidores. Berlim sempre entendeu que as relações com Moscovo eram para tratar ao nível bilateral e não ao nível europeu. Merkel limitou-se a corrigir os excessos do anterior chanceler social-democrata Gerhard Schroeder, o grande amigo de Putin. Percebeu que não podia relacionar-se com Moscovo ignorando pura e simplesmente a Polónia e deu-lhe um lugar a bordo. O chefe da diplomacia polaca, Radeck Sikorski agradeceu a diferença. Elogiou a chanceler com uma frase estranha na boca de um polaco: “Tenho mais receio da falta de liderança alemã do que da sua liderança”. A Polónia e a maioria dos países de Leste que são hoje membros da União e da NATO sempre avisaram que Putin não era de fiar. Foram muitas vezes ignorados. Os líderes dos restantes países europeus encontraram no “unilateralismo” alemão na sua relação com a Rússia a desculpa ideal para prosseguirem com os seus negócios.
A crise na Ucrânia, que a Europa não conseguiu antecipar, pôs em causa este estado de coisas. O papel da Alemanha seria sempre crucial.

Não estás a entender, George
Tu não estás a entender, George, a Ucrânia nem sequer é um Estado, parte do seu território pertence à Europa de Leste mas a parte maior foi uma oferta que lhe fizemos”. A frase é de Vladimir Putin. Foi dita no dia 24 de Abril de 2008, depois da última cimeira da NATO em que George W. Bush participou, em Bucareste. Estava de partida, queria fazer as pazes com os aliados europeus, aceitou a pressão alemã para deixar cair a promessa de alargamento da Aliança à Geórgia e à Ucrânia. Três meses depois, a Rússia invadia a Geórgia a pretexto das minorias russas que viviam nos enclaves da Abekhazia e da Ossétia do Sul.
Nicolas Sarkozy partiu para Moscovo e para Tbilissi forçando um acordo que tinha duas versões diferentes, conforme a capital onde foi negociado. A Europa enterrou o problema e seguiu em frente. Alguns meses depois da ocupação, Varsóvia propôs a Berlim uma nova parceria de vizinhança virada para Leste, incluindo os países de fronteira entre a Rússia e a Europa. Frank-Walter Steinmeier, então e hoje o chefe da diplomacia alemã dos governos de coligação, rejeitou a proposta. O ministro estava a negociar na mesma altura uma “Parceria para a Modernização” com a Rússia. Sikorski uniu-se à Suécia onde o seu homólogo Carl Bildt percebia o que estava em causa. Hoje, a parceria já uma política europeia. Seguiram-se os acordos de associação que Bruxelas tratou de negociar, incluindo com a Ucrânia. Percebeu que qualquer coisa se passava quando, na véspera da cimeira em que o acordo devia ser assinado (Novembro de 2013), Kiev não compareceu. O que ninguém previu foi que os jovens que queriam ligar o destino do seu país à Europa, fossem para a rua defender a sua causa. Em seis meses, tudo mudou.

Angela Merkel resolveu garantir essa mudança com actos que nunca imaginaríamos como possíveis. Na semana passada foi a Riga dizer aos letões: “Quero insistir em que o Artigo 5.º da NATO – o dever de garantir apoio mútuo – não é uma coisa que apenas exista no papel, tem de ter uma tradução concreta”. Anunciou que jactos alemães vão participar numa missão da NATO de policiamento aéreo das fronteiras e que a Aliança está a acelerar a constituição de uma força de reacção rápida, “se a Rússia tentar desestabilizar a vizinhança dos Bálticos como fez na Ucrânia”. A Letónia e a Estónia, membros da União e da NATO, têm vastas minorias russas. Qualquer sinal de fraqueza em Kiev iria colocá-los na linha de mira de Putin.
No sábado, a chanceler foi a Kiev mostrar de que lado está, mesmo que também para encontrar com o Presidente ucraniano uma solução política que salva a face ao Presidente russo. Escreve Quentin Peel, o correspondente do Financial Times em Berlim: “Putin esperava que a Alemanha resistisse a qualquer medida que afectasse as suas exportações”. Enganou-se. “Cometeu um enorme erro de cálculo sobre a chanceler”. A crise na Ucrânia apenas acelerou uma revisão da política externa que já vinha de trás. Ulrick Speck escreve no site do Carnegie Europe: “Putin está a aprender que não colhe grande simpatia no seu estrangeiro próximo e, ao contrário do que ele pensava, quando confrontada com um desafio vital, a UE pode ser um opositor muito duro”. Os europeus perceberam, depois da anexação da Crimeia, que Putin “tornou claro que rejeita totalmente a ordem pós-Guerra Fria na Europa”, diz Stefan Meister do European Council on Foreign Relations.
A NATO não escondeu os perigos que a situação envolve, reafirmando por palavras e alguns actos que o artigo 5.º é para cumprir. A 17 de Agosto, uma opinião assinada pelo secretário-geral da NATO Anders Fogh  Rasmussen e pelo comandante supremo aliado, Philip Breedlove, notava  que, “pela primeira vez desde o fim da II Guerra um país europeu anexou parte de outro pela força”. “A nossa missão é garantir que a NATO quer defender todos os aliados contra qualquer ameaça”. Americanos, franceses, ingleses deslocaram para os Bálticos e para a Polónia aviões e soldados. Cada vez mais, mesmo que a contragosto, a Europa começa a perceber que o seu mundo “pós-moderno” e a sua visão normativa das relações internacionais, à imagem e semelhança da sua própria integração, já saiu de moda e que a espera lá fora um mundo cada vez mais vestefaliano, onde imperam as relações de poder. Não ligou grande coisa ao mundo mas o mundo, como se esperava, entrou-lhe pela casa dentro, sem se fazer convidado.
Estamos, porventura, perante um ponto de viragem que é o fim de um longo caminho que os europeus prosseguiram nos últimos 25 anos para tentarem adaptar-se ao mundo pós-Guerra Fria. Com o Tratado de Maastrich, em Dezembro de 1991, ficou garantido o compromisso da Alemanha unificada com a integração europeia (através do euro). Em 1992, durante a primeira presidência portuguesa, a Europa considerou que podia gerir os riscos de desagregação violenta da Jugoslávia, sem ter de recorrer aos EUA. A ilusão durou três anos e duas centenas de milhares de mortos. Sucederam-se os enviados especiais e os capacetes azuis.
Os fantasmas do passado regressaram quando Bona reconheceu a independência da Croácia sem sequer informar os seus parceiros, enquanto Mitterrand se mantinha fiel à Sérvia. Em 1995, apenas restou à Europa ir à Casa Branca com uma corda ao pescoço pedir ajuda a Bill Clinton para forçar uma negociação e garantir uma força militar suficientemente grande para fazer cumprir os seus resultados. No Kosovo a história repetiu-se. Tony Blair apresentou a sua doutrina da intervenção humanitária. A ONU integrou-a sob a forma do novo princípio da “responsabilidade de proteger”. Cansados da humilhação que sofreram nos Balcãs, com a sua incapacidade política e militar, Tony Blair e Jaques Chirac reuniram-se em St. Malo em 1999 para lançar as bases de uma defesa europeia. Depois veio o 11 de Setembro, o Afeganistão e o Iraque, que quebrou a meio a NATO e a União Europeia. Foi preciso a chegada de Nicolas Sarkozy ao Eliseu para que a França abandonasse a ideia de uma defesa europeia fora da NATO, que Londres recusava aceitar. O anterior Presidente integrou a França de novo na estrutura militar da Aliança (De Gaulle retirara-a de lá em 1966) e aproximou-se dos Estados Unidos, abrindo as portas a um novo entendimento com Londres. François Hollande não pôs essa reorientação em causa. Faltava a Alemanha definir o seu lugar.

A decepção do Tratado de Lisboa
Há precisamente cinco anos a União dedicava-se pela primeira vez à escolha dos novos cargos que o Tratado de Lisboa criava para garantir um perfil mais forte da Europa na cena internacional: o presidente do Conselho Europeu e o Alto representante para a política externa e de segurança. Os líderes europeus, a começar pela chanceler, ainda olhavam de cima para a crise financeira como um problema americano. Os sinais de bancarrota eminente na Grécia já eram visíveis mas Merkel acreditava piamente na célebre cláusula do “no bail-out”. 
O Tratado de Lisboa dava muito maior importância à política externa e de segurança europeia. Criava uma nova estrutura diplomática (o Serviço Europeu de Acção Externa) chefiada por um Alto representante que presidiria também ao Conselho dos Negócios Estrangeiros e ocuparia uma das vice-presidências da Comissão. Não foi preciso muito tempo para perceber que os grandes países não tencionavam abdicar um milímetro do controlo da política externa e, ainda mais, das decisões militares. A nova chefe da Diplomacia europeia era uma ilustre desconhecida britânica sem qualquer experiência diplomática. Catherine Ashton compreendeu que pouco mais se esperava dela a não ser montar o Serviço Europeu de Acção Externa e produzir declarações suficientemente vazias para não incomodar ninguém. Só na parte final do seu mandato conseguiu apresentar trabalho. A discreta negociação entre o Kosovo e a Sérvia, que levou a bom fim, provou até que ponto a perspectiva de aderir à União ainda é suficientemente forte para enterrar os ódios nacionalistas do passado. Hillary Clinton estabeleceu uma boa relação com ela. Mas ninguém pode dizer que a Europa tenha hoje uma política externa e de segurança mais forte e mais coerente. Tem as estruturas institucionais e militares. Não tem a vontade política.
Nem tudo correu mal desde Maastricht. A Europa conseguiu levar a cabo a sua missão estratégica mais importante a seguir ao euro: unificar o continente europeu através da democracia e dos mercados. Na primeira década do novo século ainda se escreveram longos ensaios sobre a eficácia do seu poder de atracção, que se estendia para além das fronteiras europeias e que se revelava uma arma muito mais poderosa de “regime change” do que as guerras de Bush. As potências emergentes ainda não tinham emergido e o modelo europeu chegou a ser tentado em várias latitudes. A crise do euro gastou-lhe energias e uma boa parte do seu soft-power. Ninguém compreendeu, em Brasília, em Nova Deli ou Pequim, como é que o bloco económico maior e mais rico do mundo não conseguia vencer uma crise que começou por atingir um país que representava 2% da sua riqueza, ao ponto de ir mendigar apoio ao FMI e ao G20. Não ignorou apenas o seu flanco Leste. Ignorou a Turquia, deixando Erdogan à vontade para a sua deriva em direcção ao autoritarismo.
Quem vão escolher os líderes europeus no próximo dia 30 de Agosto para substituir Lady Ashton? Já ninguém acredita em milagres. Mas Putin fez à Europa um grande favor de mostrar ao obrigá-la a encarar o mundo tal como ele é. A Síria e o Iraque mostraram-lhe até que ponto um Médio Oriente mergulhado em violência é, como disse Laurent Fabius, um problema de segurança europeia. As imagens da decapitação de um jornalista americano fizeram-na acordar para uma realidade demencial da qual não pode fugir. A França teve de ir quase sozinha ao Mali para impedir a tomada do poder por um grupo jiahdista radical. Merkel ainda não estava disponível para “pagar as guerras dos outros”. Antes disso, quando o Conselho de Segurança decidiu sobre a operação na Líbia, resolveu abster-se ao lado da China, da Rússia e do Brasil. Desde aí tentou corrigir o tiro.
Até às imagens insuportáveis do jornalista americano degolado por alguém de forte acento britânico, europeus e americanos queriam ver o Iraque como um problema humanitário. Na sexta-feira, François Hollande disse o mesmo que o secretário da Defesa americano Chuck Hagel: “Creio que a situação internacional é a pior que vimos desde o 11 de Setembro”. Diz o editor europeu da BBC, Gavin Hewitt, que o Presidente francês foi ao cerne da questão: “Já não podemos manter o debate tradicional sobre intervenção ou não intervenção.” David Cameron não resistiu à tentação de recorrer ao tom churchiliano a que nenhum primeiro-ministro britânico resiste para proclamar o combate a esta nova era do terror. A imprensa diz que foi apenas o tom. O primeiro-ministro conservador tem sido um desastre em matéria de política externa, levando o seu país para uma marginalidade europeia e transatlântica, incluindo militar, onde nunca esteve. Desta vez, a própria Alemanha não precisou de tempo para se juntar à decisão francesa de envio de armamento para os curdos iraquianos. Paris quer uma conferência para uma estratégia internacional em Setembro.
Para além da importância crescente da relação transatlântica, o futuro da Europa num mundo que lhe é cada vez mais hostil vai depender da forma como resolver a crise ucraniana e enfrentar a nova ameaça da barbárie jihadista. Vivem na Europa mais de 20 milhões de muçulmanos. Não é uma coisa que possa ficar lá fora. O problema é que a segurança tem um custo que os europeus podem não estar dispostos a pagar, habituados que estão a não ter de escolher entre a manteiga e a espingarda, graças à garantia americana. Na próxima cimeira da NATO, no início de Setembro, os EUA vão insistir novamente em que a Europa não pode continuar a reduzir os seus orçamentos de defesa. No clima de austeridade criado pela crise, vai ser muito difícil aos governos explicarem isso aos seus eleitores. Mas alguma coisa vai ter de mudar na economia e na política externa, se a Europa não quer mergulhar na instabilidade e na irrelevância.
Teresa de Sousa

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Orfeu tangendo



Lembro-me desta definição que me ficou da linguística, dos meus tempos de Coimbra, a respeito da  etimologia de “prosa”: um discurso que segue direito, que vem do latim “prorsus”, contrariamente ao que se passa com “versus” - o étimo de verso - um discurso que retorna, que volta atrás (nos ritmos, nas rimas, nas aliterações, nas múltiplas repetições…).
Vem isto a propósito do livro – “A Casa Quieta” de Rodrigo Guedes de Carvalho, romance de estrutura circular, que se inicia, após os versos de NOVEMBRO (1º capítulo) de homenagem primeira evocativa - «…e foi quando o teu sorriso» - com a incompreensão enlouquecida do vazio deixado – no narrador inicial – Salvador - pela morte da mulher – Mariana – no 2º capítulo – OUTUBRO – estrutura que acaba em DEZEMBRO 2005, com a homenagem em verso, de saudade da sua Gioconda de “sorriso intransponível” que

«Me faz o caminho só na tua direcção
Onde parece saber que esperas
Serena
Gioconda
Que vamos durar sem mesmo sabermos
Dadas as mãos as mãos dadas
Intransponíveis
Serão duas aos olhos e são tudo o que temos
E são tudo»

Entretanto, a perspectiva temporal – em espiral decrescente, relativamente à data da morte – ano 2005 da I Parte – abrangendo os meses anteriores, até Janeiro; em perspectiva mensal crescente nas partes restantes – II Parte, 1985 (JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO); III Parte, 1995 (Abril, Maio); IV, 2005 (JUNHO; JULHO; SETEMBRO; OUTUBRO; NOVEMBRO; DEZEMBRO), juntamente com os diferentes registos de atitudes, de personagens, de focalizações internas, - a do narrador principal, (Salvador), em evidência, a mistura de discursos, de diálogos e emoções, no jeito que Saramago introduzira com tanto vigor, em que os caracteres e os sentimentos de rejeição ou interesse e amizades se vão desenhando à medida dos momentos, momentos familiares, mais antigos, mais próximos, o clímax surgindo no desmaio da mulher nas escadas, na sarabanda dos telefonemas para Salvador, num momento de conferência de trabalho, juntamente com o aviso telefónico da recaída do irmão de Salvador, António, louco, que o frio pai nunca escutara, mas a quem apoiara financeiramente, e as interrogações e a psicanálise escondendo-se por todo um chorrilho de discursos, muitas vezes desarticulados e repetitivos, numa ânsia de originalidade verdadeiramente infernal, a que não falta o sentido de crítica social.
Uma história de vida, uma história de amor, Orfeu tangendo – inutilmente - na incompreensão desvairada do destino humano.
Um livro em prosa, um livro em verso, seguindo ora a direito, ora contorcendo-se, no clamor do sofrimento e da recordação, indiferente ao convencionalismo da ordem discursiva, no atropelo e desconexão do mundo íntimo, no atropelo e abandono, a espaços, da sintaxe e da pontuação, compensados noutros momentos por grande elegância de pensamento e expressão.

Por analogia de tema – o sofrimento de amor no homem, causado pelo abandono da mulher- por morte ou fuga –A Casa Quietade Guedes de Carvalho, trouxe-me à memória o livro Silêncio em Outubrodo dinamarquês Jens Christian Grøndahl, este tão simples, tão verdadeiro, tão expressivo das coisas banais da vida, como um extracto bancário, no caso de uma partida de fuga sem aviso, possibilitando o reconhecimento do percurso inicial da fugitiva. Transcrevo o primeiro parágrafo, que nos descreve algures de Lisboa, pelo narrador, e se referencia a partida de Astrid, com pretensa calma daquele, a que se segue o auto retrato que o desalento ditou. Com profunda agudeza, sem rebuscamentos que contrariariam a sinceridade da sua dor, uma elegância natural num discurso atento ao pormenor pinturesco e auto-análise psicológica de um saber reflectido, que se funda no absurdo da condição humana, condenada ao desconhecimento integral da mesma:

«A Astrid na amurada, de costas para a cidade. O vento levanta-lhe o cabelo castanho como uma bandeira esfiapada. Está de óculos escuros e sorri. Há uma afinidade perfeita entre a cidade e o branco dos dentes dela nesta fotografia que tirei há sete anos, pela tarde, num dos pequenos cacilheiros do Tejo. Só à distância se percebe porque se chama “cidade branca” a Lisboa, quando as cores se misturam e as fachadas de azulejo se fundem em reflexos do sol; a luz baixa incide horizontalmente nas casas ao longe, que se erguem atrás umas das outras sobre o Terreiro do Paço, nas colinas do Bairro Alto e de Alfama, no outro lado do rio. Há um mês que partiu. Ainda não tive notícias dela. A única pista é o extracto do banco, que acusa os movimentos da nossa conta comum. Alugou um carro em Paris e usou o MasterCard na rota de Bordéus, San Sebastian, Santiago de Compostela, Porto e Coimbra. A mesma rota que seguimos naquele Outono. Levantou uma grande soma em Lisboa a dezassete de Outubro, e deixou de usar o cartão. Não sei por onde pára. Nem posso saber. Tenho quarenta e quatro anos, e nunca soube tão pouco. Quanto mais velho fico, menos sei. Quando era novo, julgava que a sabedoria cresceria com o tempo, dilatando-se constantemente como o universo, e que a parte crescente de certezas rejeitaria o correspondente montante reduzido das incertezas. Era de facto muito optimista. O tempo fez-me admitir que sei aproximadamente o mesmo, ou menos ainda do que sabia, sem as mesmas certezas de então. A minha dita experiência não é sinónima de qualquer sabedoria. É mais, como direi, uma espécie de caixa de ressonância, dentro da qual o pouco que sei soa oco e a pouco. Um crescente vazio à volta do meu pouco saber, quais sementes secas dentro de uma cabaça. A minha experiência é uma experiência de ignorância e do seu poço sem fundo; nunca saberei quanto me falta saber e quanto se deve apenas àquilo em que acreditei.»

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A propósito do livro de Luís Soares de Oliveira «Guerra Civil de Espanha», um comentário



Também tive acesso ao livro “Guerra Civil de Espanha” de Luís Soares de Oliveira, que vou lendo nos espaços de outros momentos do baloiçar da vida. Parece-me um livro sensacional – pela informação, que nos faz rever os nossos próprios momentos de um acordar abrilino para as realidades a que éramos alheios, “protegidos” por manuais de estudo da História omissos nas estreitas relações entre a doutrinação comunista e os movimentos revolucionários de “Frentes Populares” em França e Espanha que só conhecíamos de nome. Este livro esclarece sobre as lutas pelas melhorias de condição dos trabalhadores, e o sindicalismo e o anarquismo, que começaram mais cedo do que aqui, ou pelo menos de forma mais decidida, a nossa primeira República parecendo uma brincadeira de crianças num povo dependente e imaturo, em comparação com o que se passava em Espanha, de povo aguerrido, a caminho da segunda República, em que «A crescente influência da CNT (Confederação Nacional do Trabalho, fundada em 1910) - (a UGT fora fundada em 1889) – junto dos trabalhadores colocou o Estado espanhol nos braços da “tenaz infernal”: corrupção, à direita; terrorismo à esquerda.», retrato perfeito da nossa própria vivência actual - e cujas crises várias, vividas por Afonso XIII, entre as quais a da “peseta”, em 1929, o forçariam a renunciar, a II República proclamada em 14 de Abril de 1931, apesar da descrença nesta, segundo Miguel Unamuno: «Miguel Unamuno afirma que “em Espanha ninguém crê no que diz ser o seu credo: os socialistas não crêem no socialismo. nem na luta de classes, nem na lei férrea do salário e outros símbolos marxistas; os comunistas não acreditam na comunidade e ainda menos na comunhão; os conservadores não acreditam na conservação; nem os anarquistas na anarquia. Povo de pedintes! E crê alguém em si mesmo? O povo cala-se!”» E Soares de Oliveira contesta, com ironia: «No caso, Unamuno pecou por excesso de redução. O embuste na descrição não significava fraqueza de convicções. Havia crenças e fortes: os anarquistas acreditavam no terrorismo, e por mor deste, acreditavam que tudo é possível; o baixo clero nem sob tortura abjurou, e em Marrocos surgira entretanto a crença no valor militar que também iria ter fortes consequências, O problema não seria o cepticismo; seria talvez a multiplicação dos credos. A ética não tolera a diversidade.»
Uma obra para ler devagar, na revelação de factos e nomes e envolvência das histórias, conflitos, participações ou artimanhas de outros povos, um livro de grande elegância expositiva, a par do domínio dos dados de uma história para mim desconhecida ou vaga, que nos interessa sobremaneira. E que nos diz respeito, como bem o afirma Francisco Gomes de Amorim, a respeito das duplicidades de Salazar no conflito intestino espanhol.
Um livro que merece entusiástico Bravo!
O texto de Francisco Gomes de Amorim, do blog A Bem da Nação sobre este livro:

«Ler História Dramática e rir»
A primeira reação de quem ler o título acima, vai ser: este sujeito ou é louco ou masoquista. Rir da desgraça? Pior ainda quando souber que me rio quando vejo a inteligência e astúcia do “patego de Santa Comba”, como lhe chamava o meu sogro, meter no bolso os grandes dirigentes mundiais.
Para grande espanto, e encantamento meu, recebi há dias um presente magnífico de um “amigo” que não conhecia, a não ser de nome, que muito simpático e amável, me ofereceu o livro que acabou de ser publicado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, uma segunda edição revista e aumentada: Guerra Civil de Espanha – Intervenção ou não intervenção Europeia – Uma análise, do embaixador Luis Soares de Oliveira.
Análise sem pretensão de tomar partido de um ou outro beligerante, mas relatando, com base em documentos oficiais, toda a trama que envolveu a horrível guerra civil em Espanha, o modo como se envolveram, ou camufladamente “não” se envolveram, os diversos países europeus.
Muitíssimo bem escrito e minuciosamente detalhado e informado, a sua leitura, para quem conheceu a habilidade de Salazar (é bom ler Kennedy e Salazar - o Leão e a Raposa, de José Freire Antunes, onde é evidente a habilidade do tão querido, odiado e mal tratado dirigente português, em lidar, baseado na sua diminuta dimensão geopolítica com o “rei” do mundo na ocasião, o presidente dos EUA), tem passagens que são uma delícia.
Nos anos trinta, quando a guerra estava para se declarar em Espanha, ou já em andamento, as potências europeias eram a Grã-Bretanha e a França, crescia a força da Alemanha e da Rússia, a Itália também queria impor-se, e Portugal permanecia aquele pequeno retângulo “à beira mar plantado”, mas sabendo-se ameaçado pela União das Repúblicas Ibéricas Soviéticas, que incluía nos seus planos a sovietização da Espanha e, a bem ou à força, de Portugal.
É evidente que Portugal estava a par de toda a trama, e o que ninguém queria era a mentira soviética implantar-se no país, mentira essa propalada pelos jovens aliciados pelo Comintern que acreditavam que na União Soviética não existiam patrões, que os operários viviam na abundância, o que arrastava os idealistas que pensam, alguns ainda hoje, que o comunismo e o anarquismo são os “Elíseos terrenos”!
Os poderosos ingleses faziam da política externa a alavanca para se manterem no poder interna e eternamente. A França dividida entre comunistas, anarquistas, socialistas e liberais, metia os pés pelas mãos e não sabia se devia ajudar abertamente os nacionalistas espanhóis ou entregar a batata quente nas mãos dos ingleses. Queria vender-lhes oficialmente armas, sobretudo aviões obsoletos, e passá-los de contrabando através das fronteiras norte e sul dos Pirenéus.
Este livro tem que ser lido por quem gosta de história. A abrangência ali tratada, as intrigas, as falsidades, os congressos e comités, tudo feito para nada fazer, a nossa tão querida e velha aliada a ver se nos prejudicava, e o Salazar a meter os “caras” todos no bolso: desde os frios e arrogantes britânicos, aos franceses, italianos, russos, nem que seja só para ver essas manobras dum homem de raras qualidades, o livro já merece ser lido.
Mas toda a sua leitura faz-nos compreender a razão por que essa horrenda guerra civil durou mais de três anos e fez meio milhão de vítimas, deixando o país arrasado, roubado e, até hoje, dividido.
Obrigado, embaixador Luis Soares de Oliveira, primeiro por ter escrito o livro, e principalmente... por mo ter oferecido.
Uma bela obra. Voltarei a falar nela.

sábado, 23 de agosto de 2014

Trève de soucis



Um meu grande prazer, quando leccionava literatura, era encontrar respostas bem escritas nos testes, que logo dava como modelo, na correcção que apresentava por escrito, também com a minha própria versão, não para efeitos de sobreposição mas de outras hipóteses de solução. Guardo ainda algumas dessas correcções, que reencontrei  na mudança de casa e me fizeram recuperar vivências felizes de outro tempo.
Um dia, nos avanços maravilhosos da modernidade, a Internet proporcionou-me leituras que igualmente me entusiasmaram e me fizeram participar nestes espaços cibernéticos de distância e proximidade. Os meus filhos Artur e Ricardo acharam que eu podia ter o meu blog, Ensinaram-me as manobras indispensáveis, o Artur criou os adornos artísticos da sua envolvência – uma bandeira portuguesa de especial fabrico, na cimeira, umas flores de cacto, tão belas quanto efémeras, do nosso jardim, no final da página. Assim fui participando e reagindo, desde 2008, nos vendavais do nosso mundo, para sentir a vida, embora tendo presente as críticas ferinas do Velho do Restelo aos mareantes atrevidos, que se deve sempre rever com atenção - para saborear paralelamente.
Já que nesta gostosa vaïdade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome, esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la Quem a dá:

«Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pola de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?

«Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe;
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a Fama te exalte e te lisonje
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia.
(Lus. IV, 99-101)
Assim, mau grado as condenações, sempre possíveis, sinto prazer nesta aventura participativa, e no meu blog transcrevo muitas vezes os textos que me tornam feliz, nesta parcimónia em que vivemos actualmente em questão de beatitude, uma felicidade de descoberta de valores que servem de apoio ao nosso orgulho pátrio, também parcimonioso.
Desta vez, foi o artigo de Teresa  de Sousa, saído no Público de 10/8, o responsável  pelo bem-estar espiritual, artigo que retrata, com seriedade e firmeza, os cordelinhos por que se move o mundo conturbado, de violência e condenação da dita, de interesses e cinismos sem trégua, e de ajudas que pretendem muitas vezes encobri -los.
Uma análise feita com rigor de informação e escrita com elegância e clareza, em torno do Presidente de um povo líder nos destinos do mundo, condenado a  participar numa guerra que antes condenara – a do Iraque – onde o terrorismo sectário se impôs, como, de resto, em outros focos incendiários em que os fundamentalismos estrebucham e provocam, para impor os seus interesses a coberto da bandeira dos seus dogmas religiosos. E Obama, de repente, não tem mãos a medir para acudir aos focos de incêndio que estalam – no leste europeu, na Palestina que exige generosidade incondicional no socorro humanitário contra a vizinha e invejada Israel, a quem não admite retaliação contra as suas próprias provocações. E Obama, que não quer sacrificar os seus homens, e dentro das premissas pacifistas que estabeleceu quando chegou ao poder, é obrigado, de repente, a agir - na Ásia com quem estabeleceu acordos económicos, na África, onde pretende avançar em termos económicos, já atrasado em relação à China, na Rússia de Putin, cuja impassibilidade e aparente cooperação de repente se revelam na sua fragilidade, por conta do cinismo e ambição de comando de antiga superpotência que o caso da Ucrânia aclarou…
Sintamos a justeza de análise de Teresa de Sousa… Nada de novo, afinal, num mundo de ambições e tentativas. Temos outras prioridades por cá.

«O mundo trocou as voltas a Obama»
Quem diria que, três anos depois de pôr termo a uma guerra a que sempre se opôs, Barack Obama se visse confrontado com a decisão de intervir militarmente no Iraque?
Trata-se de uma intervenção limitada, também de natureza humanitária, para evitar um massacre e para impedir que os jihadistas do “Estado Islâmico” (uma nova versão mais radical da Al Qaeda) cheguem à cidade de Erbil, capital do Curdistão iraquiano. Desde Junho que o Iraque está a ferro e fogo, com uma poderosa e violenta a ofensiva do “Estado Islâmico do Iraque e do Levante” que ninguém viu chegar, correndo o risco sério de desagregação. “Bagdad pediu oficialmente a Washington que bombardeie a ofensiva jihadista” escreve o Monde no dia 20 de Junho a toda a largura da sua primeira página. Obama ignorou o apelo. Na quita-feira, subitamente, invocou razões humanitárias para lançar raids aéreos no Norte do país. Mas também garantiu aos americanos que “não haverá botas no terreno” nem os EUA se deixarão arrastar para um novo conflito.
Simbolicamente, esta decisão do Presidente mostra até que ponto o guião que apresentou para construir uma nova relação da América com o mundo foi demasiadas vezes posto em causa. O Presidente, como reconhecem muitos analistas em Washington, fez muitas coisas certas. Quis dar prioridade à diplomacia e reduzir o uso da força ao último recurso. Quis partilhar a responsabilidade da América pela segurança mundial com os aliados regionais e através das organizações multilaterais. Prometeu estender a mão aos “inimigos” para abrir um caminho à negociação. Dirigiu-se directamente ao mundo islâmico (no Cairo) para lhes garantir que a América não era sua inimiga. O mundo trocou-lhe as voltas. Talvez porque amigos e inimigos se deixaram cair na tentação de sobrestimar o declínio do poder americano, que a Grande Recessão veio acentuar. Obama prometeu uma nova forma de liderar o mundo. Os seus adversários entenderam a mensagem como um sinal de fraqueza. Os seus aliados também.
África foi, provavelmente, o continente que mais vibrou com a sua eleição e também aquele que menos lhe exigiu. Só agora Obama teve tempo para organizar uma cimeira africana, com uma nova estratégia que vá além do combate ao terrorismo. A África começa hoje a ser olhada como a nova “economia emergente”. O Presidente sabe que ainda tem capital político para gastar. “A influência americana no continente é pateticamente pequena, quando comparada à chinesa e à europeia”, escreve o colunista do New York Times David Brook. Mobilizou as empresas americanas, que corresponderam com um montante de 14 mil milhões de dólares para investir. Provavelmente, Obama não poderia imaginar, quando preparou a cimeira que devia aos africanos, que, na mesma semana, teria de ordenar raids aéreos sobre o Iraque, reforçar as sanções económicas contra a Rússia ou tentar pôr cobro à guerra de Gaza, lembrando-lhe que falhou na promessa de resolver um conflito que retirava aos palestinianos a sua própria dignidade. A incerteza e a imprevisibilidade são as características que predominam em períodos de transição da dimensão daquele que estamos a viver. Obama queria dedicar-se à “reconstrução” da nação americana e envolver-se o menos possível num mundo cuja segurança continua a depender, em grande medida, da América. Não teve essa sorte.
A invasão do Iraque foi a guerra desnecessária que a América travou, que Obama sempre criticou e à qual quis pôr termo o mais depressa possível. Não antecipou o risco de fragmentação. Entretanto, a Primavera Árabe transformou-se num triste Inverno (a única excepção é a Tunísia), sem sequer dar tempo aos EUA para rever a sua estratégia regional. “Felizmente”, escreve Robert Kagan, um crítico de Obama, “o Presidente ignorou os realistas que o aconselhavam a manter-se ao lado dos ditadores em colapso”. A Síria trava uma guerra civil sem fim à vista, que se traduz numa gigantesca tragédia humana. A Líbia está em desagregação. Um embaixador americano morreu em Bengazi. O Presidente recebeu na Casa Branca o Presidente egípcio Mohamed Morsi (membro da Irmandade Muçulmana) democraticamente eleito. Agora precisa do novo poder militar instalado no Cairo para intermediar a guerra em Gaza. O Grande Médio Oriente, que Bush queria democratizar à força, está mergulhado no caos. A dúvida paira sobre as negociações com o Irão para encontrar uma solução pacífica para o seu programa nuclear, que foram o maior êxito da sua política. Teerão partilha com os EUA a mesma preocupação perante o risco de desagregação do Iraque entre xiitas (no poder), sunitas e curdos. Pelo contrário, a Arábia Saudita, velha aliada da América, olha com desconfiança essa aproximação, enquanto arma as forças jihadista na Síria e no Iraque. Também as alianças já não são o que eram nesta perigosa rivalidade entre xiitas e sunitas pela hegemonia regional.

O pivô asiático
Quando chegou à Casa Branca em 2009 Barack Obama tinha a sua própria concepção sobre as prioridades externas da América e a forma de as alcançar. A primeira visita de Hillary Clinton depois de tomar posse como secretária de Estado foi à Ásia. Com o centro de gravidade da economia a passar do Atlântico para o Pacífico e com a cada vez mais rápida ascensão da China ao estatuto de superpotência, o novo Presidente considerou que estava aí o maior desafio estratégico que os Estados Unidos tinham de enfrentar nas próximas décadas. Foi o tempo em que muito se falou de G2, apesar do G20, e em que a Europa ficou a roer as unhas sem saber qual era o seu papel na nova doutrina americana.
Obama quis mostrar a Pequim que os EUA continuavam a ser uma potência asiática embora disposta a cooperar com a China na resolução dos grandes problemas mundiais. Seria sempre um exercício difícil: combinar a “contenção” com a “cooperação”. A China já deixou para trás a “ascensão pacífica”, afirma-se em África ou na América Latina como um actor político importante, investe nas economias europeias do Sul, fragilizadas pela crise da dívida, enquanto reforça o seu poderio naval para impor o seu domínio nos mares da China do Sul e da China Oriental. Não hesita em “exercitar os músculos” na disputa que trava com o Japão em torno de uma ilha habitada por tartarugas. A chegada de Shinzo Abe ao poder, com um discurso nacionalista e alguns gestos desnecessários que lembraram a memória das calamidades cometidas na II Guerra, criou um clima de tensão. O problema é que os japoneses, com razão ou sem ela, começam a duvidar da vontade americana de travar uma guerra para defendê-los. Abe “iniciou uma agenda de reformas da política de defesa, destinadas a melhorar o capacidade do Japão para responder às grandes tendências regionais”, escreve Sheila Smith do Council on Foreign Relations. As economias dos dois países asiáticos têm hoje um elevado nível de interdependência (o Japão é o maior investidor na China) mas a História também ensina que o poder destruidor do nacionalismo é ilimitado. Numa crítica à política de Obama na Ásia, Gideon Rachman, colunista do Financial Times, escreve que “até à data, os esforços americanos foram suficientes para antagonizar a China mas não para tranquilizar os aliados.”
Visto do lado de cá do Atlântico, o pivô americano para o Pacífico suscitou algum nervosismo. Obama chegou à Casa Branca determinado reconciliar-se com os aliados europeus (o que não seria difícil vista a onda de entusiasmo que a sua eleição causou), cansados das guerras de Bush, mas também a inverter as péssimas relações entre Washington e Moscovo herdadas da fase final do mandato do seu antecessor. Avisou que a relação transatlântica tinha um preço: partilhar mais equitativamente o fardo da segurança europeia, incluindo uma maior responsabilidade pela segurança regional. A América continuaria a “liderar” só que “do banco de trás”. Esse foi o modelo aplicado à Líbia, quando o Reino Unido e a França decidiram que era preciso intervir.

O jogo de Putin
A cimeira da NATO em Lisboa, em Novembro de 2010, serviu para adoptar um novo conceito estratégico que reafirmava o compromisso do Artº 5º do Tratado de Washington. Mas serviu também para encenar uma nova era de cooperação com a Rússia que anunciava um ponto final definitivo à Guerra Fria. Dmitri Medvedev apresentava a face mais simpática da Rússia e parecia entender que o Ocidente era essencial para sua modernização. Obama ofereceu-lhe a participação no sistema de defesa antimíssil destinado a proteger o território da Aliança. O Presidente via na Rússia um parceiro importante para a resolução de alguns conflitos regionais e um interlocutor fundamental para o seu objectivo de reduzir drasticamente as armas nucleares. O alargamento da NATO ficava implicitamente congelado, cabendo à Europa integrar esses países de fronteira através de acordos de associação. Nada ainda fazia suspeitar da reviravolta a que acabamos de assistir nos últimos meses.
O regresso de Vladimir Putin mudou tudo, ainda que não imediatamente. Foi o Presidente russo que poupou Obama a uma guerra que não queria travar contra o regime sírio, quando Bashar Al-Assad atravessou a linha vermelha, ao utilizar armas químicas contra a população. Obama ficou sem alternativa, senão um castigo militar. Londres disse que sim mas David Cameron conseguiu tirar a água do capote, levando a decisão a Westminster, que a rejeitou. Obama seguiu-lhe o exemplo, prometendo ir ao Congresso. Acabou por ser Putin a salvá-lo in extremis (salvando ao mesmo tempo os seus enormes interesses na Síria) ao obter de Damasco a garantia de entrega do seu arsenal químico. Putin já dissera muitas vezes ao que vinha: restituir à Rússia o estatuto de superpotência respeitada a nível global. Na Geórgia, pôs em prática a maneira como tencionava fazê-lo, alegando a protecção das minorias russas perante a passividade ocidental. Este era o pretexto. O objectivo era recuperar a sua influência sobre o chamado “estrangeiro próximo”, da Ucrânia até à Ásia central. Quando em Dezembro de 2013 impediu o governo pró-russo de Kiev de assinar um acordo de associação negociado com a União Europeia, estabeleceu um novo limite para a sua relação com o Ocidente. Com a anexação da Crimeia, ultrapassou outro tabu: a alteração das fronteiras europeias pela força. Putin escolheu definitivamente o seu lado: contra o Ocidente. O anúncio do fim da Guerra Fria apenas durou três anos. Obama dizia há um ano perante as Nações Unidas que o mundo “não estava no tempo da Guerra Fria nem existe um ‘Grande Jogo’  a ganhar”. A dureza com que se tem referido à Rússia revela um sentimento de traição. Numa entrevista recente à Economist afirma sem contemplações que “a Rússia não fabrica nada nem os imigrantes fazem bicha para ir para Moscovo à procura de uma oportunidade”. Acrescenta que é preciso garantir “que eles não entrem numa escalada até ao ponto em que as armas nucleares voltem a entrar na discussão”.
Não se sabe ainda onde vai acabar este antagonismo entre o Ocidente e a Rússia que Putin está a testar na Ucrânia. Desta vez, são os bálticos ou os polacos que temem que a América não esteja disposta a morrer por eles. A NATO vai reunir-se em Setembro numa cimeira onde terá de reavaliar de novo a sua missão. A Economist interrogava recentemente: “A América está disposta a lutar por quem?” É esta a questão que assombra os aliados”. Obama quis libertar-se do fardo da segurança europeia. Putin obrigou-o a reconsiderar. Conter a Rússia ou conter a China? Ou conter ambas? A China também quer criar a sua própria zona de influência na Ásia.
“Kerry simboliza o dilema do papel global dos Estados Unidos no século XXI”, escreve a Spiegel alemã, comentando os esforços do chefe da diplomacia americana, que corre de incêndio para incêndio sem conseguir apagar as chamas. “Até que ponto pode a política externa americana ser bem-sucedida se depende mais de palavras fortes do que de tanques e porta-aviões”. Esta é a crítica dos velhos falcões republicanos, que acusam Obama de ter alienado a credibilidade americana. 
Edward Luce escreve na sua coluna habitual no Financial Times que “é a incerteza, e não a China, que está a substituir o poder americano”. O estado do mundo parece dar-lhe razão. Os adversários de Obama na América acusam-no de não compreender as ameaças que a América enfrenta quando reduz o orçamento da defesa. Que é, no entanto, sete vezes maior do que o russo e igual ao dos 10 países seguintes na lista dos maiores orçamentos. A economia começa a dar sinais da sua tradicional vitalidade. E, ao contrário da China ou da Rússia, a América continua a ser o íman que consegue atrair toda a gente que quer uma nova oportunidade.