sábado, 12 de julho de 2014

Guarde-te Deus no seu Panteão



Há muito já que o não lia, dispersa a vida nas suas manipulações díspares, entre as quais os desafios do far niente. E hoje, numa velha antologia dos tempos da docência, encontrei este «DESFECHO», que mais uma vez me fez transpor os limiares do Éden, no prazer divino da releitura em admiração inapagável.
A grandeza neste emparelhar  de forças, do Eu e de Deus, o Eu no desejo permanente de negação de Deus, o Deus que se impõe no Eu, não tendo este como negá-Lo, Presença assustadora na infinita insciência humana para o rebelde, (apaziguadora, naturalmente para o homem de fé).
E sempre a singeleza do discurso – directo – a sobriedade melodiosa do narrado, a que os elementos da terra – “o chão da caminhada”, “fechado num ouriço de recusas” - ou a adjectivação natural, sem pedantismo – “divina” (presença) “impertinente”, (vulto) “calado e paciente” … imprimem a força explosiva no grito constante do Homem contra o “silêncio” imponente do Deus sempre, afinal, presente.
E o desfecho desta “biografia” pela continuidade neste companheirismo de contraste, pela não cedência de nenhum dos antagonistas, a dúvida permanecendo no Homem, mau grado a rebeldia de uma “certeza” de facto inexistente. Apenas o silêncio final os irmanou, na inutilidade do discurso humano – “Já não tenho mais palavras”, “o tempo moeu na sua mó o joio amargo do que te dizia”. A infinita grandeza de um Deus imanente contra uma rejeição dolorida e condenada ao malogro, a extrema perícia de um discurso de simplicidade e dimensão humanística a que o verso irregular retira a solenidade,  conferindo-lhe a autenticidade do sentimento.
Um poeta que necessariamente se percebe e se ama. Miguel Torga:

DESFECHO
Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte.)

Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente...

E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.

Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.»      « Câmara Ardente» (1962)

Um comentário:

Anônimo disse...

Se Miguel Torga for para o Panteão, faço questão de pedir que seja este "poema em prosa" de Berta Brás posto no seu caixão, com, necessariamente, este formidável "grito" de Torga, que o irmana com Deus.
Ilda Martins