terça-feira, 29 de julho de 2014

Aftas que não matam mas moem


São vários os temas focados por Alberto Gonçalves no seu “Dias Contados” do DN de 27 de Julho:

Reza o primeiro sobre a exaltação que costumamos despender na nossa Feira das Vaidades e Despiques a respeito da expansão linguística portuguesa no espaço terreal, com Cavaco Silva em viagem por Timor explicando que a da CPLP é veículo de defesa dos direitos humanos, o que consiste numa grandessíssima atoarda, tanto no que se refere à recém-filiada Guiné Equatorial, (quer no que toca à expressão portuguesa, quer no que toca aos tais direitos), como até no que se refere a outros territórios africanos da CPLP que também dificilmente os defendem, sobretudo os de maior potencial económico e territorial. Por outro lado, estas vergonhas que passamos, com um AO feito de rebaixamento e permissividade de indignas flutuações ortográficas, revelam o ridículo de toda esta farfalheira exaltadora, no confronto com a dignidade de outras línguas que não precisam de ser exibicionistas para de facto se imporem.
Eis, pois, o primeiro artigo da “Dias Contados” que toma o abrangente título de “Língua Geográfica”, ao que parece uma moléstia física não muito grave, caso das alfinetadas deste inteligente crítico que, infelizmente, não penetram no córtex encefálico de quem o deveria ler para nisso meditar e alterar segundo os critérios nelas subentendidos.

Língua geográfica
Em Díli, Cavaco Silva garantiu que a CPLP se define através da língua e dos direitos humanos. Nem de propósito, a CPLP estendeu-se à Guiné Equatorial, onde a democracia é conceito discutível e onde se fala castelhano e dialectos. Mesmo no site do Governo local o anúncio da adesão foi feito apenas em espanhol, inglês e francês. Parece que o petróleo - e as pressões de Brasil e Angola - pesou nesta história. É a economia, estúpidos? Se calhar é, o que significa que pela primeira vez após anos de lirismo em redor das descobertas a CPLP descobriu uma razão de existir: a conversa da "projecção do português" era muito linda para juntar em cimeiras sujeitos que gostam de se juntar em cimeiras. Mas só.
Por pueril que soe dizê-lo em 2014, nem uma língua se "projecta" nem o seu peso depende de decisões políticas. O inglês não se tornou a língua franca dos nossos dias por decreto, e sim por causa da televisão e do cinema americanos, da música popular anglo-saxónica e da concentração das grandes empresas de informática na costa oeste dos EUA, que levam um fedelho a fazer search, download e convert antes de aprender a escrever "o popó da titi". Adicione-se, para os eruditos, o domínio do cânone literário contemporâneo, de Dickens ao "assimilado" Nabokov, de Fitzgerald a Bellow, e tem-se tudo aquilo que o português não tem e não terá. A pertinência dos escritores não aumenta ao enfiá-los no Panteão.
É grave? É assim. Os alemães, que em certo sentido (e apenas em certo sentido) possuem uma língua mais "restrita" do que a nossa, não se queixam. Os escandinavos, que comunicam em código cifrado, também não. E, coitados, vão vivendo, ao contrário dos guardiões oficiosos do português, que sofrem brutalmente com a respectiva insignificância. Em Setembro decorrerá em Brasília o Simpósio Linguístico-Ortográfico da Língua. O presidente da Academia de Letras lá do sítio publicou há dias um texto alusivo. O texto está repleto de locuções de sacristia e de erros primários, que ainda ninguém corrigiu. Em lugar de "projectar" o português, talvez fosse preferível escondê-lo.

O 2º texto, de 23 de Julho  - Juventude inquieta – é suficientemente explícito sobre a escassez mental de escrevinhadores que têm, todavia, o seu público, e que não estarão isentos de vir a ser consagrados com os prémios literários que a sua pujança criativa (aliada, possivelmente à sua pujança partidária), merecerá. (Mas trata-se esta observação de pura opinião pessoal. Alberto Gonçalves limitou-se a condenar, com q.b. de iracúndia):

Juventude inquieta
Com a excitação motivada pelos erros ortográficos de uma deputada socialista num texto do Facebook, ninguém reparou na publicação, já lá vão uns tempos, do novo romance de outra deputada socialista. Ninguém, ou quase ninguém, que o atento blogue Malomil fez há dias a indispensável recensão crítica de Apátrida, a obra com que Isabel Moreira demonstra aos escassos cépticos restantes que um assento parlamentar não só não é incompatível com o QI de Forest Gump como tal QI parece ser critério de admissão.
Sobre o conteúdo de Apátrida, encaminho os curiosos para o blogue citado, acrescentando apenas que não consumo produtos alegadamente literários que incluam pérolas como: "unilateralidade sem dolo", "esmurra o vomitado nas casas de banho" e "fumei três ganzas e bebi uma garrafa de vinho tinto", embora a combinação de estupefacientes com o álcool justifique plenamente que se escreva assim. A mera frase "deus a mijar-se de medo pelas pernas abaixo" (limito as citações às transcritas no Malomil) resume a essência da coisa: uma adolescente com corpo de adulta e cérebro de criança convence-se de que, se enfileirar muitas letrinhas num ecrã de computador, obtém algo similar a um pequeno livro. Se encher o livro com o tipo de patetices usadas pelos petizes para maçar os parentes, consagra-se junto de 12 semianalfabetos como autora "irreverente". Há imensos irreverentes do género por aí, com sorte enclausurados nas EB 2/3. Com azar, habitam os auditórios das Fnac e o Parlamento. Antes de escrever livros, a Dra. Isabel devia experimentar ler pelo menos um.

Em “Vícios”, (25/7), trata o articulista do cinismo tenebroso de membros parlamentares e outros membros ainda mais cimeiros, na condenação e simultaneamente no aproveitamento dos lucros dos jogos de azar para benefício social:

 Vícios
Muito depois de Francisco Louçã condenar a economia de casino, outro beato, Ribeiro e Castro, aparece a condenar os casinos na economia. Parece que o homem está preocupado com uma proposta de lei da secretaria de Estado do Turismo, a qual pelos vistos desviaria parte das receitas actuais do jogo online das políticas ditas sociais para onde hoje convergem.
Já é engraçado o deputado do CDS aceitar sem problemas o recurso ao dinheiro de um vício que abomina. É mais engraçado ainda o Dr. Ribeiro e Castro não reparar, ou fingir não reparar, que a aplicação "social" desse dinheiro pode servir precisamente para ajudar as vítimas do próprio vício. E é engraçadíssimo que, à semelhança de tantos outros colegas de classe, o Dr. Ribeiro e Castro se julgue conhecedor dos comportamentos recomendáveis aos cidadãos.
Notam o paradoxo? De uma penada, o Dr. Ribeiro e Castro resume a velha hesitação do Estado entre padronizar a vida alheia e lucrar com os desvios ao padrão. Na dúvida, opta por tentar ambas as proezas - e com frequência realiza-as, o que é um feito. Feitos estamos nós.

Igualmente o artigo sobre o escândalo do BES e a impunidade que tem apoiado os Robertos Salgados no nosso país. Um texto violento e justo, de alguém que não necessita de trocadilhos para condenar a corrupção:

O poder e o povo
Há meses, um americano nascido na Grécia explicava-me o que distingue o país de origem do país de destino: no primeiro, os poderosos cometem crimes impunemente; no segundo há poderosos na cadeia. Embora populista, simplória e pouco original, a tese possuía certa pertinência. Além disso, era uma oportunidade para praticar um dos poucos desportos a que me dedico: dar a conhecer lá fora o meu querido Portugal e admitir, com aquela peculiar mistura de vergonha e de gozo, que em matéria de descaramento somos muito mais parecidos com os gregos do que com os americanos.
Quantos sujeitos com poder ou influência estão presos por aqui? Contas bem feitas, nenhum. Salvo pelo ocasional autarca, o indígena bem colocado é livre de estraçalhar as contas públicas, alinhar em evidentes esquemas de corrupção ou surripiar milhões ao próximo sem que daí lhe advenha qualquer mal.
Nisso, esta semana foi atípica, já que um banqueiro de renome se viu detido. Ou foi uma semana normalíssima, já que o banqueiro deixara o cargo recentemente e a detenção ficou-se pelo estatuto de arguido. A minha opinião? Não tenho uma, ainda que o facto seja susceptível de embaraçar um opinador profissional e ainda que dezenas de leitores me invectivem regularmente nos comentários do DN online a pronunciar-me sobre Ricardo Salgado e o escândalo do BES.
Os leitores julgam tocar numa questão que me é incómoda. Julgam mal. Sucede apenas que não conheço o indivíduo de lado algum, não integro os quadros da Judiciária e não consigo interessar-me pelas aventuras, lícitas ou ilícitas, da alta finança. Os senhores da banca parecem-me as criaturas menos fascinantes da Terra, logo depois de constitucionalistas, activistas e sindicalistas. Para desilusão das massas, limito-me a esperar - sem histeria ou grande esperança, é verdade - que se cumpra a lei e que o Sr. Salgado pague pelos seus alegados crimes.
De resto, não estou com as massas nem na condenação imediata dos poderosos caídos em desgraça nem no inevitável reverso: a adulação dos poderosos em estado, com ou sem maiúscula, de graça. Em circunstâncias diversas, vi demasiadas pessoas insultar pelas costas governantes ou administradores para, cinco minutos decorridos, arranjarem uma hérnia enquanto lhes osculavam a mãozinha. Não adianta resmungar contra quem manda se se aprecia ser mandado e mandar. Nas democracias, a impunidade não cai do céu (ou, no caso grego, do Olimpo). Mas há democracias a cair por causa da impunidade.

Finalmente, um curto texto corajoso sobre um Israel alvo de ataques pelos cínicos defensores dos fracos que não desistem, e lembrando os tempos em que os Israelitas foram perseguidos e lamentados quando eram selvaticamente perseguidos.

Bons tempos
Se bem percebo as notícias indignadas que chegam do Médio Oriente, o direito de Israel à defesa do seu território termina no momento em que morre a primeira mulher ou criança em Gaza. Matar mulheres e crianças, árabes ou israelitas, é uma prerrogativa que apenas assiste aos árabes no desempenho das limpezas de honra locais e do terrorismo libertário. Além disso, o potencial bélico de Israel é muito superior ao do Hamas, o que torna a guerra injusta, como injustos serão todos os conflitos em que o "povo judaico" não saia a perder. A História recorda-nos alguns cujo resultado foi o inverso, e aí sim, a guerra dava gosto e não indignava ninguém. Quanta saudade.

 Farpas – aftas , em «língua geográfica» - de uma mente esclarecida e séria.  Um prazer de leitura.
 

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