terça-feira, 29 de julho de 2014

Aftas que não matam mas moem


São vários os temas focados por Alberto Gonçalves no seu “Dias Contados” do DN de 27 de Julho:

Reza o primeiro sobre a exaltação que costumamos despender na nossa Feira das Vaidades e Despiques a respeito da expansão linguística portuguesa no espaço terreal, com Cavaco Silva em viagem por Timor explicando que a da CPLP é veículo de defesa dos direitos humanos, o que consiste numa grandessíssima atoarda, tanto no que se refere à recém-filiada Guiné Equatorial, (quer no que toca à expressão portuguesa, quer no que toca aos tais direitos), como até no que se refere a outros territórios africanos da CPLP que também dificilmente os defendem, sobretudo os de maior potencial económico e territorial. Por outro lado, estas vergonhas que passamos, com um AO feito de rebaixamento e permissividade de indignas flutuações ortográficas, revelam o ridículo de toda esta farfalheira exaltadora, no confronto com a dignidade de outras línguas que não precisam de ser exibicionistas para de facto se imporem.
Eis, pois, o primeiro artigo da “Dias Contados” que toma o abrangente título de “Língua Geográfica”, ao que parece uma moléstia física não muito grave, caso das alfinetadas deste inteligente crítico que, infelizmente, não penetram no córtex encefálico de quem o deveria ler para nisso meditar e alterar segundo os critérios nelas subentendidos.

Língua geográfica
Em Díli, Cavaco Silva garantiu que a CPLP se define através da língua e dos direitos humanos. Nem de propósito, a CPLP estendeu-se à Guiné Equatorial, onde a democracia é conceito discutível e onde se fala castelhano e dialectos. Mesmo no site do Governo local o anúncio da adesão foi feito apenas em espanhol, inglês e francês. Parece que o petróleo - e as pressões de Brasil e Angola - pesou nesta história. É a economia, estúpidos? Se calhar é, o que significa que pela primeira vez após anos de lirismo em redor das descobertas a CPLP descobriu uma razão de existir: a conversa da "projecção do português" era muito linda para juntar em cimeiras sujeitos que gostam de se juntar em cimeiras. Mas só.
Por pueril que soe dizê-lo em 2014, nem uma língua se "projecta" nem o seu peso depende de decisões políticas. O inglês não se tornou a língua franca dos nossos dias por decreto, e sim por causa da televisão e do cinema americanos, da música popular anglo-saxónica e da concentração das grandes empresas de informática na costa oeste dos EUA, que levam um fedelho a fazer search, download e convert antes de aprender a escrever "o popó da titi". Adicione-se, para os eruditos, o domínio do cânone literário contemporâneo, de Dickens ao "assimilado" Nabokov, de Fitzgerald a Bellow, e tem-se tudo aquilo que o português não tem e não terá. A pertinência dos escritores não aumenta ao enfiá-los no Panteão.
É grave? É assim. Os alemães, que em certo sentido (e apenas em certo sentido) possuem uma língua mais "restrita" do que a nossa, não se queixam. Os escandinavos, que comunicam em código cifrado, também não. E, coitados, vão vivendo, ao contrário dos guardiões oficiosos do português, que sofrem brutalmente com a respectiva insignificância. Em Setembro decorrerá em Brasília o Simpósio Linguístico-Ortográfico da Língua. O presidente da Academia de Letras lá do sítio publicou há dias um texto alusivo. O texto está repleto de locuções de sacristia e de erros primários, que ainda ninguém corrigiu. Em lugar de "projectar" o português, talvez fosse preferível escondê-lo.

O 2º texto, de 23 de Julho  - Juventude inquieta – é suficientemente explícito sobre a escassez mental de escrevinhadores que têm, todavia, o seu público, e que não estarão isentos de vir a ser consagrados com os prémios literários que a sua pujança criativa (aliada, possivelmente à sua pujança partidária), merecerá. (Mas trata-se esta observação de pura opinião pessoal. Alberto Gonçalves limitou-se a condenar, com q.b. de iracúndia):

Juventude inquieta
Com a excitação motivada pelos erros ortográficos de uma deputada socialista num texto do Facebook, ninguém reparou na publicação, já lá vão uns tempos, do novo romance de outra deputada socialista. Ninguém, ou quase ninguém, que o atento blogue Malomil fez há dias a indispensável recensão crítica de Apátrida, a obra com que Isabel Moreira demonstra aos escassos cépticos restantes que um assento parlamentar não só não é incompatível com o QI de Forest Gump como tal QI parece ser critério de admissão.
Sobre o conteúdo de Apátrida, encaminho os curiosos para o blogue citado, acrescentando apenas que não consumo produtos alegadamente literários que incluam pérolas como: "unilateralidade sem dolo", "esmurra o vomitado nas casas de banho" e "fumei três ganzas e bebi uma garrafa de vinho tinto", embora a combinação de estupefacientes com o álcool justifique plenamente que se escreva assim. A mera frase "deus a mijar-se de medo pelas pernas abaixo" (limito as citações às transcritas no Malomil) resume a essência da coisa: uma adolescente com corpo de adulta e cérebro de criança convence-se de que, se enfileirar muitas letrinhas num ecrã de computador, obtém algo similar a um pequeno livro. Se encher o livro com o tipo de patetices usadas pelos petizes para maçar os parentes, consagra-se junto de 12 semianalfabetos como autora "irreverente". Há imensos irreverentes do género por aí, com sorte enclausurados nas EB 2/3. Com azar, habitam os auditórios das Fnac e o Parlamento. Antes de escrever livros, a Dra. Isabel devia experimentar ler pelo menos um.

Em “Vícios”, (25/7), trata o articulista do cinismo tenebroso de membros parlamentares e outros membros ainda mais cimeiros, na condenação e simultaneamente no aproveitamento dos lucros dos jogos de azar para benefício social:

 Vícios
Muito depois de Francisco Louçã condenar a economia de casino, outro beato, Ribeiro e Castro, aparece a condenar os casinos na economia. Parece que o homem está preocupado com uma proposta de lei da secretaria de Estado do Turismo, a qual pelos vistos desviaria parte das receitas actuais do jogo online das políticas ditas sociais para onde hoje convergem.
Já é engraçado o deputado do CDS aceitar sem problemas o recurso ao dinheiro de um vício que abomina. É mais engraçado ainda o Dr. Ribeiro e Castro não reparar, ou fingir não reparar, que a aplicação "social" desse dinheiro pode servir precisamente para ajudar as vítimas do próprio vício. E é engraçadíssimo que, à semelhança de tantos outros colegas de classe, o Dr. Ribeiro e Castro se julgue conhecedor dos comportamentos recomendáveis aos cidadãos.
Notam o paradoxo? De uma penada, o Dr. Ribeiro e Castro resume a velha hesitação do Estado entre padronizar a vida alheia e lucrar com os desvios ao padrão. Na dúvida, opta por tentar ambas as proezas - e com frequência realiza-as, o que é um feito. Feitos estamos nós.

Igualmente o artigo sobre o escândalo do BES e a impunidade que tem apoiado os Robertos Salgados no nosso país. Um texto violento e justo, de alguém que não necessita de trocadilhos para condenar a corrupção:

O poder e o povo
Há meses, um americano nascido na Grécia explicava-me o que distingue o país de origem do país de destino: no primeiro, os poderosos cometem crimes impunemente; no segundo há poderosos na cadeia. Embora populista, simplória e pouco original, a tese possuía certa pertinência. Além disso, era uma oportunidade para praticar um dos poucos desportos a que me dedico: dar a conhecer lá fora o meu querido Portugal e admitir, com aquela peculiar mistura de vergonha e de gozo, que em matéria de descaramento somos muito mais parecidos com os gregos do que com os americanos.
Quantos sujeitos com poder ou influência estão presos por aqui? Contas bem feitas, nenhum. Salvo pelo ocasional autarca, o indígena bem colocado é livre de estraçalhar as contas públicas, alinhar em evidentes esquemas de corrupção ou surripiar milhões ao próximo sem que daí lhe advenha qualquer mal.
Nisso, esta semana foi atípica, já que um banqueiro de renome se viu detido. Ou foi uma semana normalíssima, já que o banqueiro deixara o cargo recentemente e a detenção ficou-se pelo estatuto de arguido. A minha opinião? Não tenho uma, ainda que o facto seja susceptível de embaraçar um opinador profissional e ainda que dezenas de leitores me invectivem regularmente nos comentários do DN online a pronunciar-me sobre Ricardo Salgado e o escândalo do BES.
Os leitores julgam tocar numa questão que me é incómoda. Julgam mal. Sucede apenas que não conheço o indivíduo de lado algum, não integro os quadros da Judiciária e não consigo interessar-me pelas aventuras, lícitas ou ilícitas, da alta finança. Os senhores da banca parecem-me as criaturas menos fascinantes da Terra, logo depois de constitucionalistas, activistas e sindicalistas. Para desilusão das massas, limito-me a esperar - sem histeria ou grande esperança, é verdade - que se cumpra a lei e que o Sr. Salgado pague pelos seus alegados crimes.
De resto, não estou com as massas nem na condenação imediata dos poderosos caídos em desgraça nem no inevitável reverso: a adulação dos poderosos em estado, com ou sem maiúscula, de graça. Em circunstâncias diversas, vi demasiadas pessoas insultar pelas costas governantes ou administradores para, cinco minutos decorridos, arranjarem uma hérnia enquanto lhes osculavam a mãozinha. Não adianta resmungar contra quem manda se se aprecia ser mandado e mandar. Nas democracias, a impunidade não cai do céu (ou, no caso grego, do Olimpo). Mas há democracias a cair por causa da impunidade.

Finalmente, um curto texto corajoso sobre um Israel alvo de ataques pelos cínicos defensores dos fracos que não desistem, e lembrando os tempos em que os Israelitas foram perseguidos e lamentados quando eram selvaticamente perseguidos.

Bons tempos
Se bem percebo as notícias indignadas que chegam do Médio Oriente, o direito de Israel à defesa do seu território termina no momento em que morre a primeira mulher ou criança em Gaza. Matar mulheres e crianças, árabes ou israelitas, é uma prerrogativa que apenas assiste aos árabes no desempenho das limpezas de honra locais e do terrorismo libertário. Além disso, o potencial bélico de Israel é muito superior ao do Hamas, o que torna a guerra injusta, como injustos serão todos os conflitos em que o "povo judaico" não saia a perder. A História recorda-nos alguns cujo resultado foi o inverso, e aí sim, a guerra dava gosto e não indignava ninguém. Quanta saudade.

 Farpas – aftas , em «língua geográfica» - de uma mente esclarecida e séria.  Um prazer de leitura.
 

segunda-feira, 28 de julho de 2014

O ABC da portugalidade


Texto de Por Vasco Pulido Valente , Público, 25/7/14:
«Um velho erro»
«As dezenas de milhares de emigrantes “qualificados” de hoje são o equivalente aos meninos de 1870.
Desde quase há dois séculos que vários Governos decretaram a educação gratuita e universal e, às vezes mesmo, também obrigatória. Este preceito piedoso nunca se chegou a cumprir. Por uma razão muito simples: saber ler, escrever e contar não ajudava a população rural; e a escola diminuía ou anulava o valor económico dos filhos, que sempre serviam para guardar o gado ou malhar o trigo.
De resto, como é notório, na Europa nenhum país se esforçou por alfabetizar os seus súbditos (tirando a França, só existiam monarquias), pensando no que hoje se chama “crescimento”. Os protestantes queriam que as criancinhas conhecessem a Bíblia; os jacobinos queriam combater a “superstição” católica; e todos queriam reforçar a unidade da nação e o nacionalismo, no clima de conflito em que se vivia.
Por aqui, as coisas foram bem diferentes. Uma parte, embora pequena, da “inteligência” e do Estado, que o iluminismo e, a seguir, o liberalismo influenciou, achava que a educação iria salvar Portugal de um “atraso” insuportável e ridículo. Além disso, a escola e os professores não custavam caro e, gastando dinheiro em tanta obra inútil ou nociva, os Governos, por uma questão de prestígio, não se importavam de fazer aqui o que se fazia lá fora. Não admira que no fim do século XIX o positivismo (na versão corrigida de Littré) se tornasse a ideologia preferida do “progressismo” dinástico e, depois, da República: bastava, segundo essa receita, que os portugueses passassem da fase “metafísica” para a fase “positiva”, para que chovessem sobre eles prosperidades sem número, para espanto e reverência do mundo inteiro.
Ainda anteontem, na televisão, o professor Marçal Grilo, antigo ministro, mostrou como o erro pode perdurar, com a frescura de uma ideia nova. Marçal Grilo, como de resto o esclarecido António Costa, veio pela enésima vez comunicar aos papalvos que o maior recurso de Portugal são as pessoas. Evidentemente com a condição de que o Estado as “forme” ou “eduque”. Esta escola de pensamento não conseguiu até agora perceber (e nunca perceberá) que as dezenas de milhares de emigrantes “qualificados” de hoje são o equivalente aos meninos de 1870, que os pais sensatamente guardavam em casa. Uma espécie de beato como Marçal Grilo não se rala com certeza com o capital, a justiça, a fiscalidade e a reorganização do Estado de que a educação precisa para ser de alguma utilidade aos portugueses. Mas que António Costa partilhe com amor esse velho erro não o recomenda a ninguém.»

Dele retiramos a seguinte frase: «Para ser de alguma utilidade aos portugueses, a educação precisa de capital, de justiça, de  fiscalidade e da reorganização do Estado.»
Vasco Pulido Valente o afirmou, pois, em percurso histórico pelas normas educativas que orientaram outros povos de longa data, os quais não se limitaram a “alfabetizar”, mas criaram regras de responsabilidades e orientação para a cidadania, em termos de “crescimento cultural”, uns, em função inicial do conhecimento bíblico, outros para combater o carácter supersticioso de uma educação de tipo religioso e dogmático. Certamente que lhes não faltaria o complemento de uma gradual abertura em estudos que distinguiriam competências e interesses e preparavam melhor para uma vida de progresso gradual, de acordo com o desenvolvimento científico, humanístico e económico, levando os povos a estabelecerem critérios de obediência a valores imprescindíveis na formação humana, e em função da  coesão nacional.
Não assim em Portugal, em que e ensino, feito inicialmente nos mosteiros, excluía do povo a participação na formação educativa, destinada ao clero e à nobreza, a percentagem de analfabetismo sendo elevadíssima ainda no século passado, apesar de graduais reformas feitas já desde Pombal e sobretudo a partir da época liberal, o Estado passando a responsabilizar-se sobre o ensino e, nos novos tempos, tornando-o obrigatório, (obrigatoriedade fixada actualmente em doze anos de escolaridade), e retirando-lhe a obrigatoriedade da orientação religiosa (Não esquecer a pecha de um ensino de moldagem jesuítica e inquisitorial, fechado à descoberta científica, mau grado os estudos e as realizações científicas que os Descobrimentos possibilitaram e que alguns nomes bastante dignificaram).
 Vasco Pulido Valente revela, todavia, o quanto é irrisória a qualificação e desprotegidos os qualificados, desde que ao espaço agrícola, feito outrora com a ajuda  da mão de obra filial, os estudos excluíram a participação laboral daquela. (Também não protegem hoje, suficientemente, as múltiplas formações académicas em termos de eficácia e racionalidade formativas, observado o aparato explosivo de tantas formações inúteis e perversas nas escolas, após o 25 de Abril, as quais multiplicaram o preenchimento de banalidades nos horários escolares, com cursos de técnicas precárias, muito distantes dos objectivos de formação cultural, que deveria ser ponto assente em termos de “iluminismo” formativo. Uma escola de “eduquês” surgiu assim, floreada e retórica no palavreado justificativo da avaliação discente e da auto-avaliação docente, inútil e pouco séria num convencionalismo de pseudo-rigor objectivo, na realidade impeditiva de uma formação cultural de respeito e de seriedade. Porque, repetimos, como afirma Vasco Pulido Valente,.«Para ser de alguma utilidade aos portugueses, a educação precisa de capital, de justiça, de  fiscalidade e da reorganização do Estado.»
Não é esse o nosso panorama educacional, pesem embora as afirmações de alguns políticos, feitas, provavelmente, como chamariz de votos,  de que o maior recurso em Portugal são as pessoas”.
Vem a propósito citar o artigo de João César das Neves, publicado no DN de hoje (28/7) com as suas achegas analíticas, de cunho menos pessimista, mas áspero na crítica:
«A charuteira»
«Será Portugal um país desenvolvido, rico, civilizado? Os recentes episódios que revelam a teia de poder à volta do Grupo Espírito Santo (GES) justificam que se pergunte se estaremos no Terceiro Mundo.
A resposta da elite é clássica, e descrita genialmente por João da Ega: "Isto é uma choldra torpe. Onde pus eu a charuteira?" (Eça de Queirós, 1888, Os Maias, c. IV). Os nossos intelectuais sempre desprezaram pedantemente o País e sentem prazer em humilhá-lo. Daí poderíamos até concluir que, com uma elite destas, é impossível Portugal ser civilizado. Mas dizer isso seria tomar a mesma atitude dela, contra ela.
Temos bons argumentos para nos considerar desenvolvidos. Podemos invocar a nossa história, cultura e projecção mundial, que nos mostra como entidade indiscutivelmente sólida, relevante e digna. Mas isso não basta como prova. Países com património e herança semelhantes mostram falhas fatais de funcionamento, como a Grécia ou a Argentina. Carácter, presença e longevidade são condições necessárias, não suficientes para a civilização.
O teste decisivo do nível de um povo está nas crises. É nos momentos difíceis que se sente a fibra colectiva. A blitz de Londres mostrou o Reino Unido sumamente civilizado, e foi sob ocupação que países como a França, a Polónia e depois a Alemanha revelaram a sua eminência.
As crises socioeconómicas têm pontuado as fases do nosso progresso comunitário. Após o 25 de Abril, os programas de ajustamento de 1978-79 e 1983-85 marcaram a nossa estabilização como sociedade livre, admitida ao clube dos parceiros europeus. O crescimento subsequente fez-nos um país rico, como provou a recessão de 1993, a primeira na CEE, com comportamento claramente diferente de instituições, empresas e consumidores. Assim, pelo menos desde meados dos anos 1990 o País participa naturalmente e de pleno direito do concerto das nações civilizadas.
Será então possível saber se passámos no teste? Existem sinais negativos mas inofensivos. Política e orçamento correram mal, como em todo o lado. Também não se devem confundir crimes e erros com falta de civilização. O caso BPN é paralelo a Madoff, enquanto BPP, Banif e BCP são menores do que o Lehman Brothers. Problemas assim, mesmo degradantes, são comuns em comunidades sofisticadas. Olhando para os dados objectivos, dos níveis de rendimento aos da saúde, passando por comportamentos sociais e culturais, Portugal é sem dúvida um país civilizado. O único problema está nas elites, que frequentemente nos arrastam para o Terceiro Mundo.
A primeira prova é mediática. Perante esta austeridade, intelectuais, jornais, dirigentes e até juízes, mesmo sem charuteira, não tiveram pejo em dizer os maiores disparates. Com a arrogância habitual, a elite omitiu, distorceu, barafustou infantilmente e propôs soluções tolas. Mas isso não é o pior.
Na última década respira-se em Portugal um clima de compadrio, maquinação e cabala ao mais alto nível, que cresceu silenciosa mas inexoravelmente. Os anos Sócrates manifestaram-no a vários níveis; nos referidos escândalos bancários, por exemplo, além de irregularidades financeiras, sentiram-se intrigas palacianas vastas, profundas e complexas, sobretudo no BCP, que são alheias a uma sociedade equilibrada.
A recente explosão do GES, com todas as suas ramificações, constitui a flagrante confirmação pública da podridão latente nos níveis altos do nosso poder político-económico. O pior não está na dimensão da dívida ou nos efeitos económicos, mas no grau de conspiração e decadência que revela. Fenómenos destes são característicos de sociedades atrasadas, regimes corruptos, sistemas perversos. A sua ausência é condição indispensável da civilização.
Corrupção há em todo o lado. Os países cultos são, não imunes à doença, mas aqueles onde tradições, regras e instituições dominam essas tendências. Portugal é um país civilizado. Mas alguma elite mostra traços do Terceiro Mundo, da choldra torpe de Eça. A forma como limparmos o caso GES mostrará se passámos o teste para país desenvolvido.»



Mas, retomando o tema “escola”, como mentora indispensável das populações, a nossa escola, estapafúrdia de indisciplina e reivindicação, é espelho de um povo indisciplinado e reivindicativo, que as mais das vezes não racionaliza os protestos, limitando-os à afirmação balofa de liberdades e direitos, sem o apoio esclarecedor de leituras, no sintetismo triunfal e lírico dos slogans ou das canções emblemáticas. Mas somos bonzinhos, coitadinhos, permitimos que a outra choldra as pregue, pela calada.
 

sábado, 26 de julho de 2014

Engolir os sapos do companheirismo na imortalidade



Costumo ouvir as entrevistas a Marcelo, na TVI de domingo à noite. Geralmente dizem-se coisas sábias, chorei a valer com a notícia chocante, numa análise contida na emoção e revolta, dele e de José Alberto de Carvalho, acerca da perda que sofrera a sua entrevistadora anterior,  Judite de Sousa. Admiro a rapidez de raciocínio que Rebelo de Sousa demonstra nas entrevistas profusas em assuntos, com, ainda, o pormenor dos livros referidos, mais as perguntas dos ouvintes, mais as coisas positivas que ele descobre neste país e que nos dão alegria... A minha mãe não o conseguia acompanhar nos raciocínios rápidos de quem tudo sabe e o dispara profusamente, e chamava-lhe “fala-barato”, mas era culpa sua por o não seguir.
Eu gosto geralmente do que diz, embora me assuste a rapidez do despacho dos assuntos, de quem tudo sabe e resolve, oráculo não tenebroso mas amistoso e isento.
Não foi assim no domingo passado. Falou de Cavaco Silva, contou-lhe a história, referiu o quanto Cavaco se distingue dos outros, por ter tido uma origem diferente dos outros presidentes, dos que viveram bem desde a nascença, que estudaram bem, sem dificuldades, pertenceram a umas elites que os projectaram…  Cavaco, ao que parece, nasceu  em Boliqueime, que não é sítio para o nascimento de um PR, e fez-se e conquistou um grande espaço de governação, numa presença teimosa, que não desiste de impor o seu parecer, com aplicação e coragem, apesar das críticas de que é alvo, num país mais dado às críticas do que a qualquer outro esforço de cooperação.
E  Marcelo, para demonstrar a teimosia “bovina” de Cavaco, referiu uma cena caricata de um Cavaco que fez ginástica perante ele, Marcelo, para comprovar uma boa forma física, sinónima de uma boa forma espiritual, segundo os ditames clássicos da mens sana in corpore sano.
Não percebi bem a intenção de Marcelo, se era de elogio ou de riso a referência a um corpo ginasticado que nunca aparentou sê-lo. Pareceu-me antes de riso, pela puerilidade, embora ao que parece, Marcelo também pratique os mergulhos no mar, como Sócrates as corridas pelo mundo. Nunca a ginástica desfavoreceu ninguém, falo por experiência própria, corpo que vai enferrujando dolorosamente e preguiçosamente, por falta de exercício.
Não percebi o porquê do retrato de Cavaco feito por Marcelo, mais de desprestígio do que de bondade. De hipócrita suavidade, me pareceu. Para não lhe referir as proezas do não se deixar guiar pelos pareceres alheios, na política de exaltação que vivemos, o que provoca a indignação dos mais directos atacantes, defensores das sopas e descanso para ele, Marcelo preferiu citar a questão do exibicionismo muscular de Cavaco, a demarcar-se de maneira original das críticas dos outros àquele, e a preparar a sua mente sana, para um dia ter o seu retrato pendurado ao lado de um natural de Boliqueime, por muito corpum sanum que este tenha.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Os galhos diferem, a massa é a mesma



As gerações estão cá para dar o corpo ao manifesto – ou não – conforme as decisões dos que governam, postos a governar por variados factores, dependentes muitas vezes das decisões das gerações, que depois se abstêm – ou não – entregues aos seus trabalhos e folias, cada macaco no seu galho.
O mal é quando os que assumem o galho da governança se meteram em aventuras desastradas e deram com os burrinhos na água, que é o que nos acontece sempre, porque afinal os da governança são da mesma massa das gerações em si, quer na indisciplina ou mesquinhez espiritual, quer, muitas vezes, na própria ausência de formação moral que possibilita tanto do descalabro que por aí vai. E as gerações futuras não poderão condenar as passadas, pois os descalabros não possibilitam melhorias, nem espirituais nem morais, que ajudariam às melhorias materiais que as gerações futuras estão condenadas a não saber conquistar.
Mas somos um povo que vive de glória Quem sabe se tantos destes dos galhos governativos de agora não serão um dia glorificados como heróis, por tanto se terem esforçado para salvar as gerações, sempre condicionados pelos obstáculos impostos pelos dos galhos que nunca se alheiam de atacar, que é o que sabem fazer melhor, embora não com as armas dos valentes heróis de outrora que só conhecem dos filmes.
Haverá sempre, pois, na nossa sequência geracional evolutiva, os macacos do galho do poder, os do galho do fazer o que se pode, e os do galho do desfazer ou impedir que se possa.
É o comentário que me merece o artigo de João César das Neves, DISSIMULAÇÃO, publicado no “A Bem da Nação”:

DISSIMULAÇÃO
Grande paradoxo é o alheamento das gerações face aos dramas que as assolam. Celebrando o centenário da Grande Guerra, os 70 anos do desembarque na Normandia, os 40 do 25 de Abril e os 25 da queda do Muro de Berlim, espanta notar como eles apanharam de surpresa quem os viveu. Para o bem ou para o mal, demorou muito até se entender a real magnitude. As pessoas não eram tontas ou distraídas mas dirigiam atenções e esforços para outros aspectos, na época decisivos, hoje insignificantes.
A mesma tragédia patética repete-se agora, diante dos nossos olhos, pois a crise financeira portuguesa segue o mesmo roteiro. Daqui a 25, 70 ou cem anos haverá dificuldade em entender como nos enredámos em pequenas tricas e ninharias, enquanto o problema crescia em silêncio. Nem é preciso esperar muito, pois é já evidente a dissimulação que nos trouxe ao resgate e, agora que ele acaba, vem surgindo a dissimulação que este incluiu.
Está documentado o alheamento dos dirigentes que, de 2008 a 2011, negaram a existência de problemas financeiros graves, confiando em analgésicos para tratar um cancro. É hoje inacreditável revisitar esses meses e os intensos debates que os ocupavam, sempre ociosos. O País só acordou para a dimensão da crise na noite de 6 de Abril de 2011, reparando na enorme dívida, acumulada à socapa. A euforia a crédito fora demorada e envolvera todos os extractos sociais, mas passara despercebida. Agora eram inevitáveis longos e penosos esforços de ajustamento.
A austeridade apertou severamente o País. O esforço foi grande e teve resultados positivos. Muita da nossa economia reestruturou, algumas reformas institucionais e regulamentares foram feitas, e conseguiram-se melhorias no Orçamento. Mas muito ficou por fazer. Terminando o programa de ajustamento, quando os tolos dão suspiros de alívio, surgem as verdades que se omitiram nestes anos. Apesar da dureza, manteve-se uma dissimulação, que agora desponta, e rebentará nos próximos tempos.
A austeridade foi forte e vasta, mas deixou de lado dois grupos principais. Primeiro, sectores públicos protegidos. Seja porque o Governo não lhes quis ou pode tocar ou porque o Tribunal Constitucional os defendeu, largos extractos tiveram as suas receitas resguardadas no meio da crise, à custa de impostos, que agravavam a crise. O segundo grupo é o "capitalismo de compadres", as elites sectoriais, também próximas do Estado, que se enredaram em favores e ilusões para esconder erros.
Não é difícil reconhecer os contornos da fantasia que manteve na sombra esses sectores da realidade, desviando a atenção para detalhes secundários. Fingia-se que o problema se limitava à dívida pública, que bastava uma reforma de políticas. Pior, o sofrimento e a confusão fez brotar os demagogos, acusando, barafustando e apregoando soluções fáceis. A discussão foi repetidamente desviada para a defesa de direitos adquiridos e falácias constitucionais. Como se a retórica e as queixas fizessem desaparecer o peso e os sacrifícios.
Agora a crise do GES relembra que a dívida privada é muito maior do que a pública. É inacreditável a surpresa, provavelmente genuína, apesar de os factos serem conhecidos há muito. Não é por falta de informação, diagnóstico ou terapêutica, nem sequer por ter falhado o tratamento. Os sinais que agora surgem têm simplesmente que ver com aqueles sectores que nos últimos anos fingiram que estava tudo bem. Pode demorar, mas a realidade acaba por surgir. Como já se vê, esses serão os protagonistas da próxima fase da crise.
Quando os nossos netos lembrarem os escombros da nossa era, não conseguirão compreender como foi possível ignorarmos o mal, enquanto nos entretínhamos com tricas menores. À distância, bloqueios ao encerramento de serviços e cortes de despesas, minudências do Tribunal Constitucional, embates de personalidades no Governo e oposição, propostas de repúdio ou reestruturação da dívida parecerão tontos e mesquinhos a quem já conhece o resultado. Mas cada geração vive alheada dos grandes dramas que a assolam.
João César das Neves
21 de Julho de 2014