segunda-feira, 30 de junho de 2014

Em suma



Mais uma excelente crónica de Alberto Gonçalves, do Forum do DN de 29/6, com temas diversos entre os quais, o do falhanço da selecção portuguesa, tema de que já Vasco Pulido Valente se ocupara no Público de 20/6 - “Uma história portuguesa, com certeza”- sobre a responsabilidade geral nesse falhanço – correspondendo ao falhanço económico – no excessivo das demonstrações patrioteiras, logo seguido das demonstrações de ironia fácil e raivosa. Mas são outros os temas que transcrevo do sociólogo Alberto Gonçalves, o 1º, A invenção do Mal, curiosa demonstração sobre as falsidades de um partido que, condenando as privatizações perpetradas pelo Governo, no seguimento da doutrinação marxista-leninista e de Engels, é detentor de inúmeras propriedades, que o colocam em liderança proprietária relativamente aos partidos que condena.
Também o 2º tema é revelador das irregularidades dos pontos de vista críticos relativamente à actuação desordeira das populações, na opinião, neste caso, de Costa e seus apoiantes – aceitável a desordem quando inflectida sobre o Governo, vergonhosa quando actuando sobre a esquerda de Costa.
O 3º assunto, “A lepra”, de 28/6 consiste numa mudança de opinião generalizada sobre a responsabilidade de José Sócrates no descalabro económico da nação.
Termina a página com o comentário «Teologia da libertação” a respeito da acção “mordente” de um jogador uruguaio sobre o adversário italiano e os conceitos doutrinários dos chefes  sul-americanos sobre a vergonha das sanções como ataque aos pobres etc, etc.
Não resisti a transcrever alguns dos comentários que tais artigos provocaram:

«A invenção do Mal», 22/6
«Como não se passa um dia sem que o PCP resmungue contra as privatizações, aproveito para recordar uma notícia velha de alguns meses, cortesia da TSF.
O PCP é o partido português com mais património imobiliário ("O proletariado só pode libertar-se através da abolição da propriedade privada em geral" - Engels). Possui mais de 60 terrenos e 200 apartamentos ou prédios, entre os quais a Quinta da Atalaia, de 250 mil metros quadrados, onde se faz a Festa do Avante! ("Não se pode vencer o Capitalismo sem tomar os bancos e sem abolir a propriedade privada" - Lenine). A lista de património imobiliário do partido, publicada em Diário da República, consta de outros 65 terrenos um pouco por todo o País, incluindo meia dúzia de quintas em Loures, Coimbra, Fornos de Algodres e Viseu ("Rousseau disse que a primeira pessoa a reclamar um pedaço da natureza para si e a transformá-la na forma transcendente da propriedade privada foi quem inventou o Mal" - Negri). Além dos terrenos, na lista de património imobiliário do PCP estão ainda 200 prédios urbanos ou outros imóveis como apartamentos ("A moderna propriedade privada burguesa é a expressão última e mais consumada da geração e apropriação dos produtos que repousam em oposições de classes" - Marx e Engels). Na comparação com os outros partidos, o PCP lidera, com enorme vantagem, no património imobiliário. PS e PSD têm, cada um, pouco mais de 70 edifícios ou apartamentos declarados, e o CDS-PP fica-se pelos dez ("A Teoria do Comunismo pode resumir-se numa frase: erradique-se toda a propriedade privada" - Marx e Engels).»

«Ermesinde saiu à rua», 27/6
Após António Costa ter subido ao "país real" e sido insultado com galhardia por algum povo, a PGR abriu um inquérito, Manuel Alegre considerou os incidentes "intoleráveis" e, com a originalidade que o define, o próprio Dr. Costa achou-os "inaceitáveis". Presumo que não ache inaceitável que, conforme demonstra um vídeo a correr por aí, uma senhora que lhe berra ao ouvido seja arrastada pelo pescoço por, ao que li, um seu assessor na autarquia lisboeta. Percebo-o: também não gostaria que me gritassem a menos de 30 centímetros de distância; infelizmente, falta-me o assessor.
Além da graça natural em tudo isto, a comédia intensifica-se quando se percebe que o escândalo em volta dos acontecimentos de Ermesinde não se deve à lendária ética republicana, que acomete certa esquerda de uma repulsa natural pelo desrespeito. Não, senhor: o problema com a revolta popular irrompe apenas quando a revolta é dirigida contra a própria esquerda. Por outras palavras, ofender o Dr. Costa é uma vergonha; ofender membros do Governo, ritualmente interrompidos em cerimónias públicas por algazarra e interpretações da Grândola, é um acto de cidadania.
Desigualdade de perspectivas? Nem por isso: provavelmente, considera-se que a quota de insultos ao dr. Costa já se encontra preenchida pelo Dr. Costa, sempre que abre a boca de modo a permitir a saída do vácuo comprimido na sua cabecinha. Tivesse esclarecimento para tanto, o Dr. Costa apresentaria uma queixa à PGR contra si.»

«A lepra», 28/6
Há três anos, Francisco Assis garantia que a história fará justiça a José Sócrates. Há pouco mais de um ano, o ex-ministro Nuno Severiano Teixeira assegurava que a história fará justiça a José Sócrates. Dia sim, dia não, os blogues anonimamente assinados por serviçais do antigo primeiro-ministro afiançavam que a história fará justiça a José Sócrates. Por uma vez, os videntes acertaram.
Embora muitos cidadãos tivessem preferido que a Justiça fizesse justiça ao Eng. Sócrates, a história começa a colocar o cavalheiro no lugar que merece. Depois de, nas recentes europeias, a mera presença do cavalheiro num almoço de campanha afundar decisivamente as pretensões eleitorais do seu partido, o partido desatou a tratá-lo com a deferência normalmente dedicada à lepra. E se não se estranha muito que alguns apoiantes do Dr. Seguro usem as palavras "descalabro" e "desastre" para avaliar a governação do Eng. Sócrates, estranha-se um bocadinho que o Dr. Costa já se refira aos "erros" da mesma.
Na prática, só falta o próprio Eng. Sócrates admitir que duplicar a dívida pública em meia dúzia de anos e colocar Portugal na dependência desesperada do exterior durante as próximas duas dúzias não foi uma proeza admirável ou, como ele repetia sempre que espirrava, um "momento histórico". Aí sim, será altura de colocar o homem sob o pedestal da posteridade.»

«Teologia da libertação»
«Um jogador da selecção uruguaia mordeu o adversário e foi corrido do Mundial. Para José Umjica, o cliché que preside aquele país, a sanção é, cito, uma "vergonha" e um "ataque aos pobres". Depois de o senhor Lula ter explicado a eliminação dos ingleses com a dificuldade destes em se adaptarem à elevada qualidade dos estádios brasileiros, é justo rever as palavras de Hugo Chávez, quando acusou os EUA de provocarem cancro a diversos chefes de Estado da América Latina: os cancros serão fortuitos, mas o surto de demência dá que pensar.»

Alguns comentários da Internet:

MMartins:
«Ao ver ontem o "Eixo do mal", fiquei intrigado por uma teoria apresentada por CFA cujo argumento sustenta que o espaço político da esquerda foi invadido por um novo pensamento de direita, baixo e sujo, cujos intervenientes pertenciam a uma nova geração de académicos e de profissionais muito bem formados. De facto concordo com esta teoria, exceptuando a qualificação de "baixo e sujo". E a explicação para tal não é complexa nem esotérica. Tem só a ver com a qualificação e formação. Incluo AG neste campo. Alguém inteligente e qualificado que não se coíbe da participação cívica em prol do seu país. Bem haja.

Spartacus:
Para a "esquerda" bem pensante, incluindo naturalmente a dra. Ferreira Alves, tudo que se conecte com a "direita", mesmo que se aproxime da excelência, é "baixo e sujo". Pelo contrário, se vier da "esquerda", mesmo que se revele de uma mediocridade confrangedora, ou mesmo da mais torpe baixeza, é silenciado ou visto como um erro menor ou uma "gaffe" sem a menor importância. Vide os ministros sem direito a usar da palavra, o "escurinho" do sr. Arménio ou as boçalidades "profes" do sr. Nogueira.»

«Sublime, tanto a história das injúrias ao Costa como a do PCP capitalista. Que pena não haver mais jornalistas assim!»

«Bem haja Alberto pela boa disposição que sinto depois de ler uma crónica como esta! Adorei a farpa às esquerdas acerca das manifestações anti-Costa. Se o visado fosse um governante ou pessoa de direita, chamar-lhe mimos como "traidor", etc, não passaria de um exercício saudável dos direitos de manifestação e da liberdade de expressão. Alguém tem dúvidas?»

«Os ricos de hoje são os outros ! houve uma transferência enorme da riqueza de tal modo que os pobres de ontem são os ricos de hoje , sem arriscar um tusto conseguiram grandes tachos em autarquias e em outros órgãos de cash flow constante e os comunistas não ficaram de fora , pelo contrário são sócios da corja que provocou a desgraça que caíu sobre o povo português . Além do património do partido são donos do seu próprio e de muitas colectividades cujos fundadores pingaram suor para conseguir um bem para os outros e que muitas já foram delapidadas em proveito próprio onde os chefões já engoliram o que era bom e de vez em quando as autarquias lá vão financiando para novamente os chefões»

Transcrevo ainda, como complemento de todos estes “pronunciamentos”, e porque ontem ouvi o Dr. Pacheco Pereira, no seu programa da Sic - “Ponto Contraponto” - fazer um retrato “lamecha” sobre o Dr. Álvaro Cunhal, além de ter antes apresentado o hino e a bandeira da República espanhola anterior à actual monarquia – o que interpretei, - (mau grado o prazer da erudita informação) - como sinuosa tentativa de deitar mais lume nas labaredas que o povo espanhol lançou pelas ruas antes da nomeação doe Filipe VI - um texto já antigo que em tempos transcrevi no meu blog, de Vasco Pulido Valente sobre o mesmo Dr. Álvaro Cunhal:

« Como hoje se lembram de Cunhal os militantes do PCP, os “companheiros de caminho” e umas largas dúzias de patetas. O indivíduo que planeava transformar Portugal numa espécie de Bulgária do Ocidente, o promotor do PREC, o responsável pelas “nacionalizações” e pela ocupação dos “latifúndios”, o desorganizador da economia, o inimigo da “Europa”, esse parece que desapareceu. Só resta, com muito sentimentalismo, como ele gostaria, a máscara do soberano, perante a qual ainda uma pequena parte do país se acha obrigada a genuflectir. A consciência histórica dos portugueses é um óptimo reflexo da inconsciência que os trouxe à miséria e ao desespero.»


sábado, 28 de junho de 2014

Monarquias, Democracias



Um artigo de Vasco Pulido Valente  (Público, 22/6 ) - “A monarquia de Espanha” – que, pondo os pontos nos ii relativamente à inutilidade de mudança de regime, a monarquia constituindo uma mais valia na unidade nacional, pela presença elegante e discreta de pessoas que foram educadas para assumirem responsabilidades de chefia, presentes e futuras, constitui retrato de extrema beleza sobre a família real espanhola.
Aparentemente, o que afirma parece estar certo, mas não sei se os tais territórios de linguagens e sentimentos diferentes, como a Catalunha, o País Basco, e até a Galiza, concordariam, numa luta que mantêm há muito com os Estados Centrais, o que prova a falta de coesão entre eles. Isso nos poderia levar a olhar-nos com certo orgulho, mau grado as vicissitudes que sempre vivemos, povo marginal, fronteiriço de um povo mais donairoso, trabalhador e arrebatado, consciente da sua extensão territorial, pátria de gente intelectualmente mais desenvolta e de acção cultural mais expressiva. (Lembro, a propósito, experiências de leitura em língua espanhola, por não haver traduções em português, de obras didácticas estrangeiras, nas bibliotecas universitárias por onde estudei). Por isso, estranho que esses territórios desejem a independência, devendo sentir-se, de facto, orgulhosos da grande nação a que pertencem, e respeitá-la sem os arrebatamentos populares que pretendem liquidar a monarquia. Afinal, têm atrás de si uma longa história, de lutas, navegações e descobertas, que o “Mio Cid” tão bem representa, tal como o imortal Dom Quixote com o seu não menos imortal Sancho Pança, passando por tantos grandes escritores, filósofos, artistas e monumentos que os imortalizaram, a par de um bem-estar económico que os distingue dos deste nosso pequeno país que admiro, apesar da nossa marginalidade cultural e económica. Povo que, apesar de uma certa vileza de condição, resultante, sobretudo, de segregacionismo cultural e económico, foi e vai defendendo a sua independência da poderosa Espanha, há cerca de 900 anos - apesar de alguns defensores de um integralismo cómodo, ao contrário dos tais territórios independentistas espanhóis.
Mas os protestos são fenómenos naturais hoje, a começar no Médio Oriente e a acabar na vila Morena, manobrada pelas forças sinistras (do latim, esquerdas), que, não tendo rei, pretendem eliminar o Governo – qualquer que ele seja – a fim de o  substituírem. A liberdade o permite, ligada às convulsões da deseducação.

O texto de Vasco Pulido Valente , 22/06/2014

«A monarquia de Espanha »
«Apesar da comitiva e da segurança, não dei por que os reis de Espanha estivessem no hotel. Um Secretário de Estado português teria sido mais conspícuo. Não vi o rei Juan Carlos que não saiu do último andar, excepto no dia em que se foi embora. Mas vi a rainha na varanda comum, a tomar um chá e a discutir com um secretário com muitos papéis não sei que problema. Na mesa do lado, a ler um livro, nunca me distraíram ou incomodaram. Aquela monarquia despretensiosa e bem-educada não me pareceu um perigo para ninguém. De resto, não passa de um símbolo, com algumas funções de representação e, constitucionalmente, sem sombra de poder político. Como em Inglaterra, o rei nem sequer dissolve o parlamento e lê no parlamento os discursos que o governo lhe manda.
Agora, Juan Carlos resolveu abdicar e foi substituído por Felipe VI. Parece que Juan Carlos perdeu o prestígio por causa de uns tantos casos de infidelidade conjugal (que não se percebe como interessam ao Estado) e por causa de uma caçada ao elefante no Botswana, em que partiu uma perna (um genro vigarista no tribunal também não ajudou). Nas cerimónias de sucessão, uns vagos milhares de pessoas gritaram “España mañana será republicana”, provavelmente inconciliáveis da guerra civil (1936-1939) ou anti-franquistas que guardaram uma velha vontade de revanche. Esperemos que nunca aí se chegue por duas razões. Primeira, porque o rei é melhor garantia da unidade do país. E, segunda, porque a República tarde ou cedo criaria um tumulto em Espanha e na Europa.
Um presidente sairia por força de uma das nacionalidades de Espanha que se autodenominam “históricas” (Castela, Catalunha, o País Basco e a Galiza), sendo suspeito aos grupos que ficassem de fora: uma receita infalível para a desordem e o conflito. Pior ainda, a dissolução de Espanha iria inevitavelmente encorajar o separatismo da Escócia e do norte de Itália. De qualquer maneira, não se compreende a ansiedade de um pequeno povo para se fechar na sua pequenez (nós por aqui sabemos bem quanto ela custa) ou o desejo de falar uma língua que ninguém mais fala ou escreve. Esta perversão do paroquialismo, numa economia global e num mundo em que o inglês se tornou de facto a “língua franca”, leva fatalmente ao isolamento e à fraqueza, pelo prazer de uma glória “nacional” sem sentido. A Escócia, pelo menos, quer ficar com a rainha e, de caminho, com a libra.»


«Floreça, fale, cante, ouça-se e viva a portuguesa língua»




Publicou Salles da Fonseca no seu “A Bem da Nação”, para festejar os simbólicos 800 anos da sua pretensa formação, o texto do Testamento de Afonso II, com uma introdução de  Pedro Aguiar Pinto.
 Foi um reviver de emoções, pois houve anos em que um ou outro manual de estudo literário continha o documento de 1214, como primeiro escrito em língua portuguesa, e foi possível transmiti-lo aos alunos, como curiosidade, nas sequências explicativas das origens do português. Por isso, foi com grande prazer que reli o documento, para o qual fiz breve comentário que transcrevo, e igualmente o de A. Palhinha Machado, como lição de história de muito interesse, sobre D. Afonso II, finalizando com o excerto de António Ferreira, da sua “Carta a Pedro de Andrade Caminha”, exortando este a só escrever em português. Realmente, António Ferreira foi o único poeta renascentista que só escreveu em português.

O texto de   Pedro Aguiar Pinto:

800 ANOS DA LÍNGUA PORTUGUESA
TESTAMENTO DE D. AFONSO II – 27 DE JUNHO DE 1214 
«Apesar de ser rei e soberano absoluto, D. Afonso II, em 27 de Junho de 1214, escreveu um texto que não é um Decreto. Ele obviamente não disse: “Decreto hoje fazer esta língua. E fica feita.” Não, D. Afonso II escreveu apenas o seu testamento; limitou-se a usar uma língua que obviamente já existia e já era usada pelo seu povo, antes de ele a usar também. O simbolismo deste momento e desse marco é que é a primeira vez que isso foi feito. Nunca antes dele, um Rei, um Estado, um soberano usara a nossa língua, escrevera oficialmente a nossa língua.    

Existem dois exemplares deste testamento: a cópia que foi enviada ao arcebispo de Braga e aquela que foi enviada ao arcebispo de Santiago.»

linha 1
«En'o nome de Deus. Eu rei don Afonso pela gracia de Deus rei de Portugal, seendo sano e saluo, temëte o dia de mia morte, a saude de mia alma e a proe de mia molier raina dona Orraca e de me(us) filios e de me(us) uassalos e de todo meu reino fiz mia mãda p(er) q(ue) de

linha 2
pos mia morte mia molier e me(us) filios e meu reino e me(us) uassalos e todas aq(ue)las cousas q(ue) De(us) mi deu en poder sten en paz e en folgãcia. P(ri)meiram(en)te mãdo q(ue) meu filio infante don Sancho q(ue) ei da raina dona Orraca agia meu reino enteg(ra)m(en)te e en paz. E ssi este for morto sen semmel, o maior filio q(ue) ouuer da raina dona Orraca agia o reino entegram(en)te e en paz. E ssi filio barõ nõ ouuermos, a maior filia q(ue) ouuuermos agia'o ...»

O meu comentário:

«São os 800 anos da língua portuguesa, a contar desse testamento que as selectas de estudo antigas contêm. Tal documento pressupõe que a língua portuguesa é mais antiga ainda, como revelam termos em romanço galego-português contidos em documentos em latim bárbaro. Mas é maravilhoso este regresso às origens. »

O comentário de  apmachado a 27 de Junho de 2014:

«D. Afonso II é um dos reis que a nossa historiografia mais maltratou. À nascença foi fadado, não com espírito guerreiro (nem sequer foi visto na conquista de Alcácer do Sal), mas com um raro espírito organizador. Foi dos primeiros reis europeus a ter uma chancelaria eficiente (foram seus Chanceleres os Juliões da aristocracia de Lisboa, donde saiu Pedro Julião), combateu fortemente a senhorialização do Reino contra as suas irmãs (e o seu ex-cunhado de Leão, mais os ricos homens de Entre-Douro-e-Minho e alguns bispos) que agitavam um dos vários testamentos de seu pai D. Sancho I. Contrariamente aos seus pai e avô, teve um reinado breve, mas fundamental para a consolidação do Reino. Não conseguiu seu filho D. Sancho II opor-se com igual sucesso às pressões senhoriais do partido de suas tias. A guerra civil que estalou quase varreu de vez o trabalho de D. Afonso II, um Grande Rei. É o seu filho segundo, D. Afonso III, que com coragem e com astúcia vai reerguer o edifício governativo que a guerra civil tinha destruído. Se o partido da senhorialização tivesse prevalecido, dificilmente o Reino teria resistido à força centrípeta de Leão e Castela.»


Excerto da Carta de António Ferreira a Pedro de Andrade Caminha:

«… Floreça, fale, cante, ouça-se e viva
A portuguesa língua, e já, onde for,
Senhora vá de si, soberba e altiva.

Se tèqui esteve baixa e sem louvor,
Culpa é dos que a mal exercitaram,
Esquecimento nosso e desamor.

Mas tu farás que os que a mal julgaram
E inda as estranhas línguas mais desejam
Confessem cedo, ant’ela, quanto erraram.

E os que depois de nós vierem vejam
Quanto se trabalhou por seu proveito,
Porque eles pera os outros assi sejam…»


sexta-feira, 27 de junho de 2014

Uma história de “Abre-te, Sésamo”



«Durante anos, foi o aluno solitário de Português em Oxford. Depois, o único professor. Mas foi essa “solidão” que transformou Tom Earle num dos mais dedicados defensores dos Estudos Portugueses no Reino Unido, durante mais de 50 anos. A Revista 2 falou com ele e percebeu por que razão “infinitivo pessoal” é a declinação rebelde do britânico que se apaixonou pela língua portuguesa por causa da gramática.

Cheguei a Oxford pela primeira vez, em 2011, para leccionar Literatura Moçambicana, mas não fazia ideia sobre o que era um tutorial e como conduzir essa espécie de aula com apenas um ou dois alunos. Aconselharam-me a assistir a um sobre Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, com o experiente professor Thomas F. Earle, decano dos Estudos Portugueses no Reino Unido, especialista em Literatura Renascentista.
Ao receio de ser intrusa num momento quase íntimo entre professor e alunos, sentada, à parte, observando, tirando notas, seguiu-se o espanto, quase estupefacção, ouvindo aqueles miúdos de 19 anos entusiasmados com as viagens de Mendes Pinto, um texto do século XVI que eles leram na íntegra quando nós, em Portugal, lêramos apenas partes, das quais nem nos lembrávamos.
Esta nota pretende esclarecer o que há de especial num professor amado pelos seus colegas e alunos ao longo de 50 anos dedicados ao estudo e ao ensino de cultura e literatura portuguesas em Oxford. Esse encantamento não existe apenas do lado de lá da aula — ele vem do professor, apaixonado pela língua e por Portugal.

Não surpreende, então, que Tom Earle, 67 anos, reformado desde 2013, afirme à Revista 2:
“Lamento dizê-lo, mas um professor que venha de Oxford e chegue a uma universidade portuguesa para dar aulas fica muito desapontado com a reacção dos estudantes: é que muito raramente fazem perguntas!” Essa é uma das diferenças no ensino lá e cá: “Em Portugal, há esta ideia de que o aluno é uma espécie de recipiente vazio onde o professor despeja informação. É economicamente mais barato. É muito fácil dar uma aula, os alunos tiram notas e depois repetem tudo no exame. A educação britânica não é assim: a intenção é saber retirar do aluno o que ele ou ela tem para dar.” Daí a importância do diálogo, de que o tutorial é exemplo: “O objectivo do professor é instigar uma resposta pessoal no aluno. O professor faz perguntas e o aluno responde. O professor tenta, contudo, fazer perguntas que estimulem o aluno a reagir de uma forma informada, original, mas sempre pessoal.”

Se hoje Oxford é uma universidade onde o estudo de Português está a crescer consideravelmente (como em todo o Reino Unido, aliás), não era assim quando Earle começou, em 1964. Foi um aprendiz isolado, único aluno durante todo o curso e, depois, o único professor, antes de o departamento crescer — nos últimos quatro anos, as turmas passaram de dez alunos para 17, como acontecerá no ano lectivo de 2014-2015, um número recorde.
Nos anos 1960, ter uma formação clássica significava estudar Latim e Grego, “não havia mais nada”. Earle estava “ansioso por estudar outra língua, mais moderna: o Espanhol podia ser um escape, mas naquela altura toda a gente via o Espanhol como uma língua que nenhuma pessoa inteligente deveria estudar”, ri. Um professor que estudara Francês e Português, precisamente em Oxford, aconselhou-o a aprender Português. “Hoje admito que foi uma escolha muito acertada e decisiva na minha carreira: nunca tive muita competição, porque não havia outros estudantes!” Português era uma língua que ninguém queria aprender.
Eu estava maravilhado com os portugueses: eles ousaram inventar um tempo verbal que não estava no Latim.” “Infinitivo pessoal” era “uma espécie de rebelião da língua; foi essa pequena rebeldia que me levou a estudar Português

Chegou a Portugal em 1964. “Foi extremamente interessante”, diz. O país, as pessoas, a comida, o clima? Nada disso: “Interessante de um ponto de vista gramatical”, explica, revelando-se um professor apaixonado pela sua “musa”, a língua portuguesa: “O meu treino em Latim e Grego era muito rigoroso, muito rígido. Era muito difícil imaginar línguas modernas que conseguissem sair da rigidez sintáctica e gramatical do Latim. Lembro-me de ficar totalmente surpreendido e fascinado por a língua portuguesa ter uma coisa que se chamava ‘infinitivo pessoal’.”
Revisão da matéria: infinitivo pessoal, forma inflexionada de um verbo no infinitivo. Forma-se a partir do próprio infinitivo, com a adição do sufixo. Exemplo: para eu fazer, para tu fazeres, para nós fazermos. “O Latim tinha este prestígio extraordinário durante muitos séculos. Não podia haver derivações extravagantes à língua e tudo o que já não fosse Latim seria uma derivação. Em Latim, o infinitivo não declina. Eu estava maravilhado com os portugueses: eles ousaram inventar um tempo verbal que não estava no Latim.” “Infinitivo pessoal” era “uma espécie de rebelião da língua; foi essa pequena rebeldia que me levou a estudar Português”.
O jovem Earle chegou a Lisboa, a um “lar universtiário só de rapazes”, na Rua Nova de São Mamede, ao Rato. “Aquela introdução a Portugal foi excelente, porque vinha de um colégio privado em Inglaterra, uma escola muito tradicional, muito institucionalizada. O lar não era muito diferente da escola, mas a atmosfera era muito melhor. Claro, eu quase não falava português, mas os rapazes eram simpáticos. E as refeições excelentes!”, conta. Esta era a grande diferença: “Estes jovens sentavam-se a horas concretas para o pequeno-almoço, almoço e jantar e conversavam” — o que não acontecia nos silenciosos e sóbrios colégios britânicos. “E bebíamos sempre vinho. Parece que na época o bastonário da Ordem dos Médicos tinha recomendado tomar 2dl de vinho tinto a cada refeição”, conta Earle, rindo. “As garrafas estavam sempre disponíveis, excepto ao pequeno-almoço.”
Diz que era “inocente e muito pouco politizado”, mas apercebeu-se, ao viajar por Espanha e Portugal, de como as ditaduras impunham um ambiente opressor nos dois países. A questão da Guerra Colonial foi a que mais o impressionou: “Muitos daqueles rapazes estavam à espera de ir para a tropa. Podiam terminar os estudos e fazer depois o serviço militar, mas já naquela altura me chocava que após uma licenciatura de cinco anos, aos 23 anos, eles ainda teriam de fazer mais quatro de tropa. Isso queria dizer que antes dos 30 não podiam ser adultos livres. Impressionou-me muito.”
Não se pense, contudo, que os tentáculos do Estado Novo não chegavam a Oxford. Começando a leccionar imediatamente após concluir o curso, Earle fazia, ao mesmo tempo, o doutoramento no King’s College, em Londres, a mais antiga Cátedra de Estudos Portugueses no Reino Unido (aberta desde 1919), sob orientação de Luís de Sousa Rebelo. E conhece Hélder Macedo, então aluno no King’s. Apesar de o ensino de Português em Oxford nunca ter sofrido interrupções desde os anos 1930, quando Earle começa a leccionar, em 1968, dá-se um conflito diplomático entre a universidade e o Estado português. Vários alunos portugueses em Oxford queixaram-se ao vice-chanceler de que os Leitores enviados pela Junta Nacional de Educação e Saúde não eram realmente professores de Português, “mas agentes da PIDE, que espiavam os portugueses que aqui estudavam”, explica Earle. “Esse problema nunca se pôs no King’s”, conta Hélder Macedo à Revista 2. Nos anos 1960, o director da cátedra do King’s, Charles Boxer, “disse que não queria Leitores de Portugal, precisamente por causa das interferências políticas. Só depois do 25 de Abril é que tivemos Leitores no King’s, havia vários candidatos e eu escolhia quem queria no departamento”, diz Macedo.
Para Oxford, vieram novos Leitores depois dos protestos e em 1969 chegou Manuel Lourenço, “um excelente Leitor, tão, mas tão longe de ser um agente pidesco”, pai do escritor e classicista Frederico Lourenço. Desde então, por Oxford (e também pelo King’s), passaram ilustres nomes da literatura portuguesa, como Maria Velho da Costa, José Cardoso Pires, Gastão Cruz, em Londres, ou Luís Miguel Nava, em Oxford. Numa edição especial da revista de poesia Relâmpago, dedicada aos dez anos da morte de Nava (em Bruxelas em 1995), lia-se, num testemunho do seu amigo Andrew Benson, sobre os tempos do poeta em Oxford: “O Luís Miguel nunca se adaptou muito bem à Inglaterra — o clima húmido de Oxford, a (naquele tempo) falta de cafés ou bares que fechassem tarde, os excêntricos costumes e os hábitos culinários britânicos, as singularidades da tradição de Oxford, os longos e escuros invernos, a política metida numa camisa de forças, o aparente conservadorismo puritano, que mascara uma suposta hipocrisia, as insondáveis e impronunciáveis subtilezas da língua inglesa.” Páginas adiante, uma foto de grupo: Gastão Cruz, Luís Miguel Nava, Maria Lúcia Lepecki e Tom Earle, numa visita especial de Eugénio de Andrade.

Havia uma certa solidão em Oxford, sempre ambivalente entre pertencer ou ser-se um outsider. Mas foi também essa “solidão” que fortaleceu Earle, primeiro como aluno, depois como professor. “Tive muito trabalho, mas que me deu um background incrível. Hoje a literatura portuguesa faz todo o sentido para mim”, explica. Teve de ler tudo, desde a fundação do país até “aos autores que estavam na moda nos anos 60 e 70”: os neo-realistas, Alves Redol, Carlos de Oliveira, Fernando Namora. Para um renascentista, entusiasmado com a poesia de Sá de Miranda (tema do seu doutoramento), tudo era novo. “Isto mostra bem como, por vezes, não podemos planear as nossas vidas: gostei de ir a Portugal, de aprender português, e confesso que gostei de ser a única pessoa a fazê-lo. De certa maneira, isso deu-me algum prestígio.”

Nos anos 1990, abriu em Oxford a primeira Cátedra de Estudos Portugueses, intitulada rei D. João II. O rei do Renascimento e a área de estudos de Earle é mera coincidência — hoje, o lugar é do professor Phillip Rothwell, especialista em Literatura Lusófona. “Andávamos atarefados, a tentar conseguir financiamento para os Estudos Portugueses”, conta Earle. Na altura, Fernando Abecassis, engenheiro que fizera o doutoramento em Oxford, “ajudou-nos a estabelecer contactos e arranjar mecenas”. Como não havia um significativo, “perguntei ao senhor engenheiro que nome é que ele queria para a cátedra”. Ele escolheu Rei D. João II, que era “o seu rei favorito”. “Foi por acaso: podia ter-se chamado Espírito Santo ou Stanley Ho, se eles tivessem doado dinheiro”, graceja Earle.
O mais jovem estudante de doutoramento de Earle é Simon Park, 25 anos. Ele está do “outro lado” do fio que une estes 50 anos: “Perguntaram-me na entrevista para Oxford por que queria estudar Português. E apercebi-me de que esta língua deveria ser uma espécie de tesouro porque, excepto de Saramago e de Paulo Coelho, nunca tinha ouvido falar de mais nenhum autor, não se encontravam autores portugueses nas livrarias britânicas”, conta Park. “Senti que deveria haver uma quantidade enorme de literatura que ainda ninguém tinha ‘descoberto’ ou lido.” É essa a premissa de Tom Earle no seu livro sobre a poesia de Sá de Miranda: como falar de um assunto sobre o qual ninguém sabe nada no Reino Unido, numa língua que quase ninguém estudou? Parece que, 50 anos depois, o mito da língua misteriosa ainda se mantém, ainda que as coisas hoje estejam a mudar.
A essa mudança também não é alheio o trabalho de Earle, incansável nos estudos renascentistas. José Cardoso Bernardes, professor da Universidade de Coimbra, começou por conhecer Earle, de quem hoje é amigo, “de livro”, a partir do trabalho sobre Sá de Miranda: “Li esse livro com muito agrado, sentindo-me atraído, desde logo, por algumas características preciosas: tratava-se de uma tese fundamentada e clara, permitindo-nos concordar ou discordar. Nem sempre é assim nos estudos literários”, diz Bernardes. A obra de Earle, continua, “impressiona, desde logo, pela quantidade” e depois pela variedade “das edições aos trabalhos de crítica e de história literária”. Mas impressiona também “pela imprevisibilidade ou pelo não alinhamento académico de alguns temas”, diz Bernardes, que destaca o inefável trabalho de editor de Earle: “Se não fosse ele, não teríamos ainda hoje uma edição fiável da obra de António Ferreira ou das Comédias de Sá de Miranda.”
O objectivo de Earle foi sempre fazer brilhar os poetas, “trazer a poesia à superfície”, para ser lida, desfrutada. Quando se trata de textos renascentistas, é importante o processo de organizar, não só de publicar os textos, mas fixá-los, “traduzi-los” de maneira a ser compreensível para o leitor contemporâneo. Em Portugal, essa tarefa é quase inglória, diz Earle, que publicou edições críticas de Damião de Góis ou António Ferreira: “O que precisamos é de antologias poéticas. O ideal era que cada autor tivesse várias edições, todas elas diferentes, para um mercado diferente.” Isto é: edições anotadas para estudantes, comentários críticos para académicos e de bolso, acessíveis ao leitor comum. “Há 50 anos, entrava-se numa livraria em Portugal e podiam-se comprar livros de Sá de Miranda, de Camões. Agora não.” Continua: “É deprimente. Em Portugal, muitos alunos lêem clássicos em fotocópias! Ou então compram a edição fac-similada de luxo da poesia de Sá de Miranda e andam com o tijolo pelas aulas em Coimbra.”
Algo de errado se passou com a literatura portuguesa, diz Earle. Claro, está a acontecer no mundo inteiro, as pessoas lêem cada vez menos, mas há “conquistas da Primeira República” em Portugal, “muitas continuadas pelo Estado Novo, como a fixação de um cânone literário que produzia para cada movimento literário um autor português seu equivalente”, que se estão a perder. A literatura “era vista como um tesouro nacional, e mesmo que o Estado Novo não tivesse de facto feito o melhor uso dele, pelo menos ele estava ali, disponível”. Hoje, o ensino de literatura no secundário está reduzido “a um número insignificante de escritores: uma peça de Gil Vicente — em Oxford, os alunos lêem mais de dez peças de Gil Vicente —, um bocadinho de Lusíadas, um sermão do Padre António Vieira, e no século XIX, Camilo e Eça”. Pouco mais.
A luta de Earle pela literatura portuguesa, diz Bernardes, “é muito positiva e esperançosa, bem mais positiva do que aquela que parece existir em alguns académicos portugueses”. Talvez por isso Earle revele “alguma dificuldade em compreender e aceitar que, num país que tem poucos filósofos, poucos músicos, poucos pintores mas muitos escritores, não se valorize mais a literatura quer no ensino quer na investigação”.
Será que em Portugal ainda vemos os poetas como mitos, longe de nós, humanos? Será quase um sacrilégio ler Sá de Miranda ou Camões numa edição de bolso, na cama ou na praia, como lemos um contemporâneo? Earle concorda: “Consideramos estes autores inacessíveis. Os Lusíadas, por exemplo, são um texto mágico, belíssimo, que serve apenas para exibir na sala com uma encadernação muito bonita, mas nunca para ser aberto.” Há, sim, uma espécie de “veneração e distância” na relação dos portugueses com os poetas. “Talvez porque, no mundo anglo-saxónico, a literatura seja valorizada por puro prazer estético, quase como um substituto da religião.” Em Portugal, não: “Shakespeare, por exemplo, é uma espécie de Bíblia, uma fonte de beleza e de verdade. Em Portugal, ainda se vê a literatura como contendo apenas informação cultural sobre o passado. Para muitos, não importa o que Camões escreveu porque não estão particularmente interessados nesse período.”
Há uns anos, num tutorial, Earle perguntava ao seu aluno: “Simon, gosta de Camões?” Simon não sabia responder. Sentia que Camões era interessante, mas o professor dizia-lhe, surpreendido, que não parecia gostar muito de Camões nem estar “muito apaixonado pelo assunto”. Simon ficou a pensar na pergunta e regressou meses depois para ler António Ferreira. “Algo em Ferreira me tocou, o que não aconteceu com Camões”, diz.
Se considerarmos que o Camões tem aquele extravasar de emoções, toda aquela paixão, talvez António Ferreira seja quase britânico, reservado, tímido, sempre bem comportado
No final do ano, Earle explicou o porquê da pergunta: “Simon, eu não entendia por que não gostava de Camões, mas agora percebo porque gosta mais de Ferreira. O Simon é mais um Ferreira-man, do que um Camões-man.” Surpreendido com aquela revelação sobre a sua identidade, Simon perguntou: “Como assim?” “Well”, disse Earle: “O Simon parece-me muito reservado e não muito em contacto com os seus sentimentos.” Simon matutou. E chegou a esta conclusão: “Se considerarmos que o Camões tem aquele extravasar de emoções, toda aquela paixão, talvez Ferreira seja quase britânico, reservado, tímido, sempre bem comportado, escreve boa poesia mas não é de modo nenhum selvagem ou rebelde.” Por isso, pergunta Simon: “Haverá um lado camoniano em Tom Earle?” Será Earle um Camões-man?
“Há qualquer coisa no Camões…”, ri-se Tom, tímido, quando lhe devolvemos a pergunta. Camões é melhor poeta do que Ferreira: “Ele consegue controlar aquela retórica confiante, extremamente difícil, a mesma retórica que as pessoas encontram no Shakespeare: não conseguimos parar de ler porque as palavras simplesmente voam.”
Talvez ainda não consigamos olhar para Camões como um homem. Daí que Earle diga que “pusemos Camões num rochedo, como Adamastor”. É preciso “libertar Camões”, ou seja, “libertar o leitor de Camões, para que ele leia naquele texto o que quiser. Nós transformámos o poeta no rochedo — ele pode ter sido o herói do Estado Novo ou, como alguns críticos apontam, um precursor de Marx. Mas ambas as coisas não se excluem. É preciso aceitar Camões pelo que ele é”.
“Tom é um personagem”, conclui Simon, rindo. Minutos antes, Earle passara de bicicleta e com a “pasta folclórica”, como os alunos de Coimbra apelidaram a sua pasta velha quase a desfazer-se, da qual o professor não se separa. “Só em Oxford é possível captar Tom Earle na plenitude dos seus atributos: a pasta, claro, mas também a bicicleta a que recorre todas as manhãs, mesmo quando tem de enfrentar intempéries. Apreciadas no seu conjunto, pasta e bicicleta, representam bem a honrada tenacidade do scholar de eleição”, conta Bernardes. Não esqueçamos o bule de chá com que sempre nos recebe num tutorial. “Tom é muito reservado”, diz Simon, “mas calculo que, como Camões, ele também deve ter um lado selvagem. Algo que o fazia saltar o portão do colégio, de noite, como quando era estudante em Oxford.”