quarta-feira, 7 de maio de 2014

Se p’r’à esquerda ouço dizer…



Da «Arca de Noé, III Classe», de Aquilino Ribeiro, retiram-se várias histórias galhofeiras,  arrancadas à sua observação simultaneamente humanista e picaresca, ou mesmo poética, que, sem preocupação pela moral convencional, ou pela estrutura das histórias infantis, não deixa de assentar a fantasia numa realidade animal ou humana que põe na natureza ou nos costumes humanos os alicerces da sua existência. Tal, na primeira história – “Mestre Grilo cantava e a Giganta dormia” - o caso da abóbora giganta, que comia, dormia e crescia, indiferente às labutas ou aos ruídos dos insectos ou dos batráquios, ou ao chiar dos carros, mas que um dia de tempestade, roído o seu caule pela toupeira, ei-la que vai, sempre dormindo, rio abaixo, parar à azenha duns moleiros que depois de muitos trabalhos lá conseguiram içá-la para o seu caldo. Quanto aos donos – José Barnabé Pé de Jacaré e sua esposa, Feliciana Lauriana - que tantas esperanças depositavam naquele exemplar de abóbora, e se disputavam entre o telhado e a panelinha para ela, ficaram a ver navios, com o cri-cri-cri do grilo, a contar a história para cigarras, ralos, rãs, sapos, da catástrofe num dia de verão: “Cri-cri-cri! Muito me eu ri! Cri-cri-cri!”
São seis as histórias que compõem o livro infantil, que os crescidos saboreiam também, no seu universo fantasioso e realista, de intenção humorística, mas foi o conto “O  Filho da Felícia ou a Inocência recompensada” que os textos do Público , de Vasco Pulido Valente - «Aventuras do coronel Lourenço»,  de 2/5,  e «E nós?», de 3/5 - me fizeram acudir aos retratos aquilinianos implícitos ou explícitos do nosso quotidiano popular, tão bem interpretados pelos coronéis ao estilo  de Vasco Lourenço, e as suas trapalhadas verbais, olvidadas as aventuras “bélicas” de quarenta anos antes, contra tudo o que representasse fartura,  rimando com ditadura, menos democráticas e mais determinadas no vilipêndio ontem do que hoje, que entretanto lhes foi entrando na cabeça o termo democracia, passaporte para as manigâncias verbais actuais, as mesmas dos chefes dos partidos de hoje e de ontem, também de eloquência vãmente deslumbrada e inepta. Disso dão conta os magníficos retratos de Vasco Pulido Valente, que me fizeram evocar o retrato do pobre de espírito Pedro, que, tal o 31 que o sargento baralhou a respeito da viragem à esquerda ou à direita, na canção de Max, também se baralhou, embora por orgulho viril de não seguir rebanhos. Muito passou o pobre do Pedro, mas a fortuna também lhe sorriu, milagrosamente e inesperadamente mais do que uma vez. E tudo isso por ser filho da mãe Felícia, como esta declarava enlevadamente atenta no filho.
Não sei o que se passa com o estado da fortuna de Lourenço, mas desconfio  que Soares encontrou tesouro, tal como o inocente Pedro, e Seguro idem aspas, pois veste bem, como Sócrates vestia, preparando-se para assumir, como o Pedro também fazia, mesmo na sua desgraça, forcejando por concretizar as suas ambições. 

Era o filho de Felícia um pedaço de homem que vale a pena registar, à laia de apresentação, na prosa vernácula de Aquilino:

«Com a sua bolsinha de amostras às costas, tamancos ferrados trrape-trrape, carapuça na cabeça e quatro vinténs na algibeira, foi Pedro assentar praça. No quartel, depois de lhe darem o número 27, mandaram-no formar na parada. Botava uma boa mão travessa acima dos mais altos. Embora mirolho, o sargento Viriato Sacatrapo não pôde deixar de reparar nele e exclamou com os ares superiores, próprios da sua patente, para um galucho que não é nada neste mundo:
- Cáspite, que bela estampa de animal!
- Animal será ele – replicou Pedro. – Sou cristão e baptizado, Pedro da Felícia, para servir a quem se der ao respeito.»

Quando a ordem, na formatura, é para volver à esquerda, Pedro volve à direita “contente que se não dissesse: um carneiro vai com os outros.” E esse jeito nos ficou, como já disse, também entoado por Max, como traço de idiossincrasia que nos chega na arte de Pulido Valente.
1º Artigo: «Aventuras do coronel Lourenço», 2/5/14
«Numa prosa atrapalhada e pouco gramatical, o coronel Vasco Lourenço veio agora dizer que a Associação 25 de Abril, a que preside, e os capitães de 1974 “não se querem arvorar em solução” ou “abrir expectativas a que não se pudesse dar resposta”. Melhor ainda, e avisando o público, o coronel Lourenço afasta a fantasia de uma nova revolução e declara o seu amor aos “meios democráticos”. A Associação é “espaço de intervenção cívica e cultural”, que vai “lutando contra aqueles que nos querem calar a voz e prender as mãos com slogans”. Os pobres capitães de Abril, afinal de contas, só se recusam a abdicar de “ser cidadãos de corpo inteiro e (de) usufruir a liberdade que (ajudaram) o povo português a conquistar”. Não se podia pedir nada de mais cívico e de mais cordato.
Nada impede o coronel Lourenço de servir estas piedades, porque de certeza o país já esqueceu o que ele andou a fazer nas semanas que precederam o “25 de Abril” e o que disse no comício do Largo do Carmo, em si próprio um insulto e um desafio à Assembleia da República. Ou, se calhar, ao contrário do país, que está atordoado, o coronel Lourenço não esqueceu uma única ameaça velada ou explícita que dirigiu em pessoa ou pela televisão ao Governo legitimamente constituído e é por isso que aparece agora a deitar um bocadinho de água na fervura, com a pele do proverbial carneiro manso. Seja como for, o gesto presume a completa impunidade dos políticos que por aí se apresentam com direito de incitar os portugueses a remover de cena os “neoliberais” de Passos Coelho e Companhia.
Os festejos do “25 de Abril” deviam servir para duas coisas. Primeiro, para reforçar o radicalismo na esquerda (e em particular a posição de Soares no Partido Socialista). Segundo, para intimidar a direita perante a putativa força do povo “organizado”. O plano falhou de fio a pavio. O coronel Lourenço e os seus companheiros não viram a lamentável figura que exibiam a um público em desespero, farto de retórica e ansioso por alguma lógica e bom senso. Presumo que essa inconsciência lhes lembrou os bons tempos de 1974-1975. De qualquer maneira, não ganhou um voto à direita para o próximo 25 de Maio, e afastou muita gente, que não se arranja dinheiro com demagogia política, sobretudo quando a demagogia põe em causa os fundamentos do Estado.»

2º Artigo E nós?» de 03/05/2014
A UGT conseguiu juntar algumas centenas de pessoas à volta da Torre de Belém e a CGTP juntou um milhar ou dois na Alameda Afonso Henriques, o resto de Lisboa ou ficou em casa, ou foi para a praia: achava o 1.º de Maio um feriado como qualquer outro e o que verdadeiramente lhe apetecia era espairecer da crise. Os partidos, apesar do ralhete de Cavaco no dia 25, continuaram a debicar entre si sobre pormenores que neste naufrágio colectivo não interessam a ninguém. O que não os coíbe de lamentar num tom de sacristão servil o desinteresse dos portugueses pela vida pública; ou de fingirem uma indignação teatral para consumo de um putativo eleitorado que os despreza. Se julgam, e talvez julguem, que daqui a três semanas os votos sairão espontaneamente de um buraco, estão enganados.
Há uma estranha atmosfera na política que hoje se faz. No PS, apareceu uma confusa franja “revolucionária”, que Seguro não contraria, critica ou sequer limita. À primeira vista, a ideia é a de atrair a esquerda a um grande saco, que o PS levaria depois para o governo, oficial ou oficiosamente, para salvar a Pátria. Daí que a direcção socialista não possa abrir a boca sobre questões de substância, porque elas se arriscam a irritar uma das partes dessa “unidade” imaginária de que ambiciona ser o centro. Entretanto, o PC já declarou o PS “um risco para a democracia”. A extrema-esquerda não lhe tocará com um pau. E Soares quer levar o seu novo radicalismo para caminhos de ilegalidade e violência, que o eleitor médio da seita certamente não aceitaria. Sobra o quê? Uma trapalhada inútil.
Informado ao pormenor sobre os malefícios de Pedro Passos Coelho, de Paulo Portas, da sra. ministra das Finanças e de mais meia dúzia de “notabilidades” sem consequência, o cidadão comum não percebe os propósitos do Governo ou da oposição. As futilidades que os chefes trocam na rua, na televisão e no Parlamento não lhe servem de nada. Mas, pelo menos, Coelho e Companhia são obrigados a mostrar a sombra de uma lógica pela acção que tomam. Dispensado da acção, o PS acabou por se tornar um puro mistério. Em princípio, é sempre contra tudo o que vem do Governo: palavras, decretos, previsões, desculpas. Só que se guarda cuidadosamente de explicar a razão desses contaminados frutos. A origem chega para os condenar. E nós, ainda com um vestígio de racionalidade, que havemos de pensar?»

Que precisamos urgentemente de “um milagre à Pedro”

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