quarta-feira, 23 de abril de 2014

No pó do tempo




Dois artigos de Vasco Pulido Valente que me fizeram recuar, como já tenho feito, a 40 anos antes, em que a minha não direi  “pluma”,  mas sim “cana”, mais inclinada para o sopro - também não lhe chamarei vergastante mas ligeiro, “dessa cana”,  apesar de uma ou outra farpa poder aflorar em ligeiros vergões, causados por rupturas nos canaviais dos tempos. Tempos de “Pedras de Sal” (1974), mas também de “Cravos Roxos” (1981), que incluíram aquele, tempos de “Anuário” (1999), tempos de antanho e de ogano, em que, se não fui repelida também nunca fui bem aceite, no desprezo moderno por quem seguiu sempre uma linha refractária àquilo que Vasco Pulido Valente tão sabiamente define: “Sob a tutela, e com a colaboração, do PC e da extrema-esquerda, o MFA descolonizou, nacionalizou, ajudou a ocupar a terra no Alentejo e no Ribatejo, “saneou”, onde o deixaram, personagens que não lhe pareciam, e às vezes não eram, de confiança, censurou a imprensa e a televisão, prendeu a torto e a direito, sem processo ou mandato, e acabou com uma campanha que se destinava a desprestigiar e a suprimir a Assembleia Constituinte. Em quase tudo, seguiu, letra a letra, o manual de Lenine.” Eis o artigo onde colhi a referência, do Público de 18/4/2014:

«Legitimidades»

«Uma “revolução” (ou um pronunciamento militar) contra um regime político ilegítimo é, por definição, legítima. Mas dela não deriva uma legitimidade revolucionária. A legitimidade revolucionária não existe. Não passa de um poder de facto.
Desde o primeiro momento que os “capitães de Abril” não perceberam (ou mesmo rejeitaram) esta realidade. Quando saíram à rua, já traziam um “programa” para Portugal, feito não se sabe por quem e largamente copiado do programa do PCP. Não viram, ou viram bem de mais, que estavam assim a substituir a sua vontade à vontade do país. Por outras palavras, que estavam a criar uma nova ilegitimidade. Isto não os comoveu. Os putativos “valores” da “revolução” serviram para justificar qualquer espécie de arbítrio ou de violência.
Sob a tutela, e com a colaboração, do PC e da extrema-esquerda, o MFA descolonizou, nacionalizou, ajudou a ocupar a terra no Alentejo e no Ribatejo, “saneou”, onde o deixaram, personagens que não lhe pareciam, e às vezes não eram, de confiança, censurou a imprensa e a televisão, prendeu a torto e a direito, sem processo ou mandato, e acabou com uma campanha que se destinava a desprestigiar e a suprimir a Assembleia Constituinte. Em quase tudo, seguiu, letra a letra, o manual de Lenine. Quando, em 2014, as “luminárias” da política, do jornalismo e da cultura e até a dra. Assunção Esteves, a segunda figura do Estado, se esforçam por manifestar aos “capitães de Abril” o seu “carinho”, o seu “afecto” e a sua “gratidão”, esquecem que, entre os primeiros dias do Verão de 1974 e o “25 de Novembro” de 1975, não existiu em Portugal verdadeira liberdade; e que só oito anos mais tarde os portugueses conseguiram abolir a tutela militar do Conselho da Revolução.
O coronel Vasco Lourenço e os seus consócios querem agora falar na Assembleia da República, presumivelmente para defender aquilo a que chamam “ideais” de Abril, que, na sua douta opinião, o Governo anda por aí a trair. Sucede que o Governo foi eleito e que nenhum título assiste aos militares, que se consideram depositários de uma herança hoje desacreditada e morta, para expender no Parlamento as suas frustrações. Verdade que a fúria contra a “austeridade” vai tomando formas cada vez mais dúbias. Mas seria intolerável que a República se comprometesse com um gesto que afectaria gravemente a sua própria legitimidade.»

Também o artigo “A poeira”, de 20/04/2014, repõe, com amplo saber, verdades que nos distinguem como um povo que, endeusando figuras gratas aos paladares dos ambiciosos de mudança, lhes mantém as prerrogativas de mentores trapalhões e mal intencionados, que nunca amaram o seu país e continuam a destruí-lo, chamando à liça esses tais dos capitães, que em tempos desprezaram e agora acarinham num propósito vilmente pueril, que rasteiramente fingimos ignorar. Eis o texto de  Vasco Pulido Valente:
 
A poeira”
«Nunca em Portugal concorreram tantos partidos a uma eleição. Alguns, como o PPM e a Nova Democracia, são restos de uma direita morta. Outros vêm de uma extrema-esquerda que se divide e subdivide, por razões que escapam ao comum dos mortais. Os partidos da direita não incomodam ninguém. Os partidos da extrema-esquerda, com o seu atávico fanatismo, vivem num mundo que não existe. Não que deliberadamente escondam a verdade ao país, mas falam de um futuro impossível contra a evidência mais clara e comprovada, anunciam políticas que levariam Portugal a uma inconcebível miséria e alimentam esperanças que levarão inevitavelmente ao desespero. Contra isto não há nada a opor, excepto a paciência e a consoladora previsão que o eleitorado os varrerá de cena.
O pior é que, com meia dúzia de excepções, a extrema-esquerda espalha a intolerância e o ódio em nome da liberdade. Por enquanto, só verbalmente. Mas nada nos garante que o verbo não se torne em acção à medida que a crise for durando e que os fracassos se acumularem. Quando se vê o dr. Mário Soares, com a sua energia do costume, oferecer o seu apoio aos “capitães de Abril” e à gente inominável que os segue, negando um a um os princípios que defendeu no PREC e recolhendo à sua volta os pequenos ditadores que ele nessa altura detestava, o mundo parece virado do avesso. O dr. Soares não percebe talvez que este tributo que ele presta à irracionalidade e à raiva oferecem um exemplo e uma justificação a uma extrema-esquerda que provavelmente não saberá parar a tempo.
Estas desordens passaram também para o PS, onde Seguro mistura alhos com bugalhos. O “maior partido da oposição”, como ele se descreve e gosta que lhe chamem, não deu ainda por que em França Hollande, através de Manuel Valls, é obrigado a engolir, como nos sucedeu aqui, uma versão local do programa da troika, que durante anos jurou rejeitar. Do PC ao PS e à poeira de oportunismo e pura estupidez que os rodeia, a esquerda já não é racional. Ganhe ou não ganhe em 25 de Maio, a sua essencial mendacidade, consciente ou não, ficará à mostra. Os portugueses compreendem que o dinheiro que hoje nos chega da Europa e, em pequena parte, dos “mercados”, não chegaria, e não chegará, se o furor da esquerda e da extrema-esquerda se puder expandir à sua vontade. E, se por acaso não compreenderem, a realidade não desaparece por isso.»
Para acabar “em beleza”, transcrevo um breve texto de “Pedras de Sal”, que na altura foi escrito com o humor de quem se sentia mergulhar num atoleiro – aquele que fomos atravessando nos quarenta anos que nos separam dessa altura, com homens e mulheres em debandada do antigamente, oportunisticamente adaptados à mudança, que  muitos – os mesmos que a perpetraram - antevêem agora sem futuro – para melhor apearem o único governo que mantém firmeza de rectidão e seriedade nas soluções escolhidas:

As Democratas
«As democratas chiques vão às sedes dos democratas, tal como dantes era chique ir-se aos chás do Governo Geral. A diferença reside apenas nas luvas e no chá, de qualidade actual inferior, mas transmissores de um nobre sentido de orgulho e realização plena
Com efeito, sentem-se amplamente realizadas ao apelidarem-se de “democratas” coim os seus maridos ou os seus amigos, desprezam o conceito “démodé” de pátria, e acham generoso, também como eles, cederem a África aos africanos.
Para procederem de acordo com esse nobre ideal, fazem as bagagens para levantar nobremente ferro, mas outras democratas mais destemidas não levantam nada, ansiosas por virem a usufruir, com os seus maridos ou os seus amigos, as regalias a que têm jus da parte dos futuros governantes africanos, agradecidos pelo auxílio inestimável dos democratas generosos.
As democratas chiques fazem grupinhos com outras também chiques e também democratas, escutam com reverência insuspeita as africanas e os africanos que se fartam de dizer coisas sorridentes, desprezam as reacionárias, ou seja, as não chiques e apenas patriotas ou sensatas . Também  adoptam ares intelectuais, pois tão nobres doutrinas surgiram, sem dúvida alguma, não na camada dos que lutaram alguma vez (1) mas na camada dos que leram dez ou vinte livros na sua vida de profundo êxito intelectual, sobretudo manifestado nestes tempos de liberdade de manifestações.
Eu fico extasiada a olhá-las, gosto muito das suas aparências, que se vê logo serem do mais puro democrata, ou seja, do mais puro chiquismo.

(1)   Perdoe-se-me a ingenuidade da crença, anterior ao 27/7/74*


*Em 27 de Julho de 1974, num discurso justificadamente classificado de histórico, o general António de Spínola, presidente da República Portuguesa, reconheceu às populações da Guiné, Angola e Moçambique o direito à autodeterminação e à independência, declarando-se pronto a iniciar imediatamente o processo de transferência de poderes. (Internet)

No mesmo livro “Pedras de Sal” me referi a essa data da seguinte forma:

A Data Histórica

27 DE JULHO DE 1974

FIM DO IMPÉRIO UILTRAMARINO PORTUGUÊS



«DITOSA PÁTRIA QUE TAIS FILHOS TEM!»






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